Clichês da indústria cinematográfica norte-americana reproduzem preconceitos, homogeneizando culturas e desrespeitando as diferenças entre os indivíduos
Camilla Millan I @camillamillan Publicado em 14/05/2020, às 07h00
A indústria cinematográfica Hollywoodiana é uma das mais famosas do mundo, com produções que ganham notoriedade pelos astros, sets de filmagens, direção e um orçamento muito alto - mas o preço de tanta notoriedade é a disseminação de muitos estereótipos e visões distorcidas de mundo.
Desde os primórdios, a produção de Hollywood reflete e reforça preconceitos e estereótipos presentes na sociedade norte-americana. Paródias, personagens caricaturescos e técnicas de filmagens são alguns dos elementos utilizados até a atualidade para reproduzir culturas e regiões de uma forma totalmente depreciativa.
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Um exemplo recente que gerou comentários nas redes sociais foi Resgate, novo filme protagonizado por Chris Hemsworth, conhecido pelo papel de Thor. O longa foi dirigido por Sam Hargrave e conta a história do mercenário Tyler Rake (Hemsworth), que luta para sobreviver durante missão para resgatar o filho de um chefe do crime em Bangladesh.
O longa original da Netflix, além de contar com uma série de estereótipos que ainda serão explicados ao longo da matéria, utilizou um recurso de edição conhecido para afirmar uma visão errônea de Bangladesh, o filtro amarelo.
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O recurso, usado frequentemente em produções Hollywoodianas como a famosa série Breaking Bad, é recorrente para retratar países emergentes, como o México. O filtro causa sensação de calor extremamente mais intenso para os países - todos aparentemente afetados por um sol desértico intenso e escaldante no qual não dá para permanecer sem suar.
A ferramenta de edição, criticada nas redes sociais, representa apenas uma parte dos estereótipos propagados por Hollywood. Há uma série de outros recursos - principalmente quando se trata de personagens - responsáveis por afirmar visões padronizadas e distorcidas que a sociedade norte-americana tem de nações fora dos Estados Unidos, assim como de povos e culturas postas socialmente à margem.
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Diversos indivíduos e nações para além do homem branco norte-americano são tratados com alteridade, representados erroneamente e pejorativamente por meio de vários aclamados filmes de Hollywood.
Os negros são extremamente afetados negativamente pela indústria cinematográfica Hollywoodiana. Não importa o gênero da produção. Tanto filmes infantis quanto longas dramáticos ou cômicos são construídos tendo como base uma série de estereótipos racistas - tanto explícita quanto implicitamente.
O racismo relacionado ao negro iniciou na indústria cinematográfica no começo da história do cinema, quando atores brancos eram pintados para fazerem personagens negros - prática conhecida como blackface.
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Um dos filmes no qual ocorre o blackface é o famoso O Nascimento de uma Nação, de 1915, assim como O Cantor de Jazz, de 1927. A prática, além de ridicularizar a figura do negro com personagens esdrúxulos, excluía negros de trabalharem no cinema, algo reproduzido até a atualidade quando se trata de premiações e papéis de sucesso com menor número de astros negros.
Inclusive, por esse motivo, diversos astros e estrelas negros resolveram boicotar o Oscar em 2016. O motivo era um reflexo de preconceitos e racismo presentes atualmente na entrega de prêmios. Com apenas 2% das estatuetas entregues à profissionais afrodescendentes, os atores pediam igualdade.
Apesar dos filmes erradicarem o blackface, há resquícios da exclusão e menosprezo do negro nas produções atuais. Além das premiações desiguais, o roteiro de grandes filmes Hollywoodianos faz uso de estereótipos racistas que contribuem para uma visão pejorativa e irreal dos negros.
Um dos exemplos de práticas é o do “negro mágico”. Você já assistiu a um filme com protagonistas brancos ajudados por um senhor negro, sábio e místico que salva o dia? São produções como Todo o Poderoso, À Espera de um Milagre e outros. Filmes nos quais um personagem muito humilde, como empregadas, zeladores e moradores de rua, ou muito sábios e místico, tem praticamente um único objetivo: salvar o protagonista branco.
Também há a negra expansiva. Personagem negra cujo comportamento é estereotipadamente expansivo, gerando um padrão da negra barulhenta, barraqueira e centro das atenções. O estereótipo, que representou a entrada das mulheres negras no cinema, é replicado assiduamente pela indústria cinematográfica, deixando de oferecer uma visão mais realista e múltipla das diferentes personalidades e jeitos da mulher negra.
Por último, o estereótipo comum do branco salvador não pode ser deixado de lado. O protagonista branco que salva personagens de outras etnias é um padrão replicado na indústria cinematográfica, e inclui longas como o recente Resgate, Histórias Cruzadas e Mentes Perigosas. Em Hollywood, são raras as vezes que o negro protagoniza um herói e contr a própria história - um exemplo é o Pantera Negra, primeiro super-herói negro a ter um filme solo.
A representação estereotipada de asiáticos no cinema de Hollywood também é algo antigo. Desde quando a indústria cinematográfica começou a borbulhar, caricaturas preconceituosas de asiáticos foram replicadas em filmes de sucesso em um movimento de homogeneização da cultura asiática.
No início das produções, o asiático tinha duas formas distorcidas de representação: personagens misteriosos e ameaçadores ou caricaturas ofensivas, como é o exemplo de Mr. Yunioshi no famoso filme de Audrey Hepburn Breakfast at Tiffany's. Outra prática comum dos produtores de Hollywood é o yellowface, no qual atores brancos interpretam papéis de asiáticos.
As críticas à prática - tão preconceituosa e problemática quanto o blackface - parece não ter afetado tanto os produtores norte-americanos, uma vez que o yellowface ainda é replicado em diversos filmes com atores brancos se vestindo como asiáticos. A prática também ganhou repercussão quando Scarlett Johansson foi elencada para o papel da protagonista no filme baseado na série japonesa Ghost in the Shell(A Vigilante do Amanhã).
Com a evolução da indústria cinematográfica, alguns estereótipos foram sendo deixados de lado para dar uma nova visão ao espectador: a do asiático das artes marciais.
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Mais recentemente, o oriental metódico e inteligente também começou a ser propagado nas produções - responsáveis por construir toda uma ideologia de “nerd” e “gênio” sobre os indivíduos.
Tais estereótipos contribuem para um imaginário adulterado e errôneo sobre a cultura asiática. Assim, jovens espectadores de produções com esses clichês aprendem fatos errados e preconceituosos sobre a população.
Além disso, os estereótipos contribuem para a exclusão dos asiáticos das produções de Hollywood, alimentando o padrão de não haver protagonistas asiáticos - ou você já percebeu que astros asiáticos populares são, quase que exclusivamente, Bruce Lee e Jackie Chan?
Os primeiros filmes de Hollywood que abordaram a cultura árabe criaram estereótipos até hoje replicados nas produções: uma terra de fantasia com desertos, gênios e homens ricos, como em As Mil e uma Noites (1942).
Inicialmente inofensivas, as representações acabaram se fincando à cultura imaginária dos filmes sobre o povo árabe, sendo reproduzidas por meio de músicas, personagens e trama em Aladdin, da Disney, quando foi lançado em 1992.
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O mundo de barbárie e indivíduos caricaturescos está presente na animação, na qual os bons personagens Aladdin e Jasmine têm traços europeus e sotaque norte-americano, mesmo sendo de origem árabe.
Desde os ataques às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos iniciaram um movimento que teve como grave consequência a xenofobia. A burocracia para entrar no país assim como as atitudes incisivas política e estrategicamente fizeram crescer o preconceito com a cultura muçulmana - o que foi replicado na indústria cinematográfica.
O atentado realizado pela Al-Qaeda e planejado por Osama bin Laden, nascido na Arábia Saudita, causou comoção nacional e homogeneizou a visão do norte-americano sobre o Oriente Médio, principalmente os árabes.
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Propagaram-se clichês de que “todos os árabes são terroristas”, ocasionando diversos preconceitos replicados nas telonas. Hollywood passou a endemonizar a nação e contar a própria história dos árabes, sem dar espaço para eles próprios se manifestarem.
Assim, atores brancos norte-americanos continuaram a interpretar papéis de indivíduos do mundo árabe, e mesmo após a diminuição do pejorativo estereótipo de terrorista, o mundo árabe permanece caracterizado como exótico - e um exemplo é o recente live-action de Aladdin.
Em 2007, a ONG Islamic Human Rights mostrou o incômodo com as produções. Ela divulgou um estudo acusando Hollywood de reforçar preconceitos contra os muçulmanos. Na divulgação, a organização criticou, entre diversas produções, o filme Nova York cidade sitiada.
É impossível falar de Hollywood e propagação de estereótipos sem citar a pejorativa visão construída sobre as mulheres. A indústria cinematográfica norte-americana é uma das principais disseminadoras de padrões tóxicos sobre “obrigações” das mulheres quanto ao corpo, vestimentas e comportamento.
Por muito tempo, as mulheres brancas fictícias de Hollywood representaram o padrão a ser seguido ao redor do mundo. Mais do que isso, as mulheres de outras nacionalidades também foram estereotipadas, como o exemplo já explicado da mulher negra expansiva.
Para além desse exemplo, a mulher asiática foi inserida no clichê errôneo de submissa ao marido e, principalmente, ao homem branco. A prática, conhecida como China Doll, apresenta a mulher em posição servil, dócil e vítima de alguma situação na qual ela precisa de ajuda de um homem para se salvar.
Assim, a mulher asiática passa por um processo violento de fetichização e exotificação do corpo, no qual ela perde o gênero em detrimento à nacionalidade. É um processo no qual a identidade é retirada, contribuindo para uma cultura misógina com violência contra a mulher, contra o corpo e a dignidade.
A fetichização do corpo feminino, transformado quase em uma mercadoria por este processo, remonta também aos longas no qual a mulher tem a vida transformada a partir de uma mudança radical de visual - e o mais problemático é que muitas vezes isso acontece em produções para jovens.
Em Diário de uma Princesa, por exemplo, a protagonista faz uma mudança total no visual, mudando o cabelo cacheado para liso - disseminado como padrão de beleza feminina -, usando maquiagem e novas roupas. E tal transformação é a única responsável por causar grandes melhorias na vida da personagem - mudanças que frequentemente envolvem um homem.
Pois, afinal, o maior estereótipo de Hollywood é que a felicidade de uma mulher é alcançada ao encontrar o homem da vida dela. Assim, o clichê da mulher que larga tudo pelo amor de um homem também é um dos mais utilizados em produções norte-americanas, como Casa Comigo?.
Importante também dizer que tais padrões são tão repetidos nos longas que o roteiro da trama já é previsível. E tais práticas estereotipadas viraram regra no pensamento popular durante muito tempo - disseminando tal padrão irreal da mulher, tóxico tanto para a saúde mental quanto física.
No entanto, atualmente ganhou força um movimento de mostrar mulheres reais nos cinemas. Sem protagonistas unicamente brancas, de corpos padronizados e comportamento tido como ideal. Inclusive, diversos documentários, como Embrace e What Happened Miss Simone tratam justamente de representatividade e de mulheres reais.
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As diversas produções de Hollywood frequentemente guardam apenas um lugar para os outros países localizados na América: a identidade latino-americana. Ignorando diferenças de línguas e culturas, Hollywood costuma homogeneizar homens e mulheres latino-americanos.
A latino-americana frequentemente é a mulher sexy, temperamental e sedutora - normalmente a amante. Enquanto isso, o homem - sempre com pele morena e cabelo escuro - também faz o papel do amante ou do indivíduo que sabe dançar e seduzir.
Além disso, os latinos normalmente são representados em papéis cuja classe social não é privilegiada, além de ter vida sofrida e empregos como faxineiros, empregadas e outros. Sempre fadados a carregarem a imigração de parentes, latino-americanos nos cinemas costumam ter grandes famílias e muitos irmãos.
Apesar de atores latinos terem ganhado mais notoriedade no cinema, muitos papéis destinados a eles continuam estereotipados, como a atriz e cantora Jennifer Lopez (de ascendência porto-riquenha) no papel da latina Marisa Ventura em Encontro de Amor. No filme, a mãe solteira trabalha como camareira em um hotel de luxo.
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Todos esses estereótipos contribuem para padrões no imaginário dos espectadores, homogeneizando as diversas culturas dos países e criando o clichê da pobreza e falta de escolaridade, o que alimenta preconceitos e exclusão.
Por muito tempo, a homossexualidade apareceu de forma insinuada e escondida nas produções cinematográficas. Devido ao código hollywoodiano que impedia a exploração de temas sexuais, o universo LGBTQ+ foi introduzido aos poucos, camuflado em uma amizade entre pessoas do mesmo sexo, como em Ben Hur (1959).
No entanto, quando foi apresentado de forma mais explícita, o homossexual era sempre destinado à decadência. Segundo reportagem da Cult, entre 1961 e 1976, 32 filmes abordaram o tema, e contaram com 13 personagens homossexuais que se matavam, 18 mortos por amantes e um castrado.
Assim, mesmo em produções que tratam do tema, o homossexual era estereotipado como um homem gay afeminado exposto de modo cômico. Também havia a possíbilidade dele ser apresentado como alguém reprimido que acaba explodindo violentamente, como em Os pecados de todos nós (1967), de John Huston.
Tais estereótipos do sofrimento permaneceram décadas depois. No entanto, foi com a explosão da Aids que uma nova cultura do cinema gay e lésbico se iniciou em paralelo ao mainstream - e depois junto a ele. Segundo Luiz Nazário, professor de Teoria e História do Cinema na escola de Belas Artes/UFMG, os tabus da homossexualidade foram quebrados aos poucos pelo audiovisual, mas a intolerância permanece.
Os homossexuais em produções cinematográficas muitas vezes são apresentados como conhecedores apenas de música, moda e mundo pop, como em Brüno (2009). E tal fator os exclui de serem representados em diferentes áreas profissionais. Além disso, eles são constantemente apresentados como inferiores ou acessórios de uma mulher poderosa.
Apesar de a situação ter melhorado desde a década de 1990, a falta de representatividade permanece. A organização estado-unidense de monitoramento de mídia Glaad (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation, ou Aliança de Gays e Lésbicas Contra Difamação, em tradução livre) publicou um relatório em 2015 sobre a representação da população LGBT nos estúdios de Hollywood.
A publicação indicou que em 2014 apenas 17,5% dos 114 longas analisados possuíam pelo menos um personagem identificado como LGBT - sendo a maioria homens gays e brancos, sem transexuais, travestis ou transgêneros.
Tais números e estereótipos distorcem o mundo real, entregando uma visão clichê responsável por excluir certos indivíduos de ganharem a importância temática em produções. Apesar da melhora ao longo das décadas, ainda há muito o que mudar.
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