A produção dirigida por Shaka King concorre a 6 categorias no Oscar 2021, inclusive a de Melhor Filme
Camilla Millan Publicado em 06/04/2021, às 13h15
[Cuidado: Pode conter spoilers de Judas e o Messias Negro]
A história é cíclica, infelizmente. Por isso, é preciso olhar para o passado, para que todas as atrocidades cometidas anteriormente, todo o racismo e o fascismo já vividos sejam combatidos nos dias atuais. Judas e o Messias Negro é uma narrativa crua que reflete um momento da história necessário de ser retomado.
É uma história que dói por revisitar a falta de limites da crueldade humana, mas o faz na tentativa de evitar a repetição de violências, preconceitos, perseguições e situações as quais precisam ser confrontadas. Contudo, a trama também escancara um passado revolucionário para inspirar o presente.
Dirigido por Shaka King, Judas e o Messias Negro é um drama histórico que estreou em fevereiro de 2021. A trama retoma o ano de 1969, e acompanha Fred Hampton (Daniel Kaluuya), presidente da filial de Illinois do Partido dos Panteras Negras e Bill O'Neal (Lakeith Stanfield), informante do FBI no partido que contribui para o assassinato de Hampton aos 21 anos.
O filme concorre a seis categorias no Oscar 2021, inclusive a de Melhor Filme, e se propõe uma cinebiografia de Fred Hampton. Contudo, a narrativa extrapola a vida (e morte) do revolucionário com um conteúdo atual em uma história de paranoias e de personagens que buscam se encontrar - um enquanto líder em busca de igualdade, outro na tentativa de descobrir a si mesmo.
Curiosamente, apesar da importância e eloquência de Fred Hampton, interpretado brilhantemente por Daniel Kaluuya e evidenciado pela escolha de ângulos de filmagem certeiros, o personagem não é o protagonista dessa história. Em seu lugar, ganha evidência a traição de Bill O’Neal, o “Judas”, em comparação à traição do apóstolo que entregou Jesus, segundo a tradição católica.
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Apesar de o ator LaKeith Stanfield ter sido estranhamento indicado à Melhor Ator Coadjuvante no Oscar 2021, o papel dele se destaca, e um dos motivos é a atuação intensa, principalmente a partir da segunda metade da trama.
O filme inicia - e termina - com Bill O’Neal, misturando cenas do astro e momentos reais de O’Neal no documentário Eyes on the Prize. Dessa forma, o espectador facilmente se situa: o homem se infiltra no Partido dos Panteras Negras em troca do FBI retirar as acusações de roubo.
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Em um arco notável, Bill O’Neal se transforma ao longo da narrativa à medida que se aproxima de Fred Hampton e busca pela própria identidade. É um homem introduzido à trama sem engajamento na causa do Partido dos Panteras Negras, e que aceita ser infiltrado. No entanto, com o tempo, ele enfrenta um conflito interno para se descobrir.
Forma-se, então, duas narrativas as quais o diretor Shaka King parece não complementar reciprocamente. Quase paralelamente, há um líder que, com 21 anos, entende o seu papel no mundo e busca a união para promover igualdade em meio à brutalidade contra a comunidade negra nos Estados Unidos. Contudo, também há um jovem que tenta se encontrar enquanto negro norte-americano - e no processo, vai confrontar os próprios valores.
Em alguns momentos, as histórias se cruzam, mas na maioria das vezes parecem ser introduzidas ao espectador quase como independentes, como se King tentasse explicitar o afastamento ideológico e moral entre os dois personagens, que nunca poderiam se aliar verdadeiramente. As escolhas do diretor e o roteiro bem-planejado também parecem refletir o objetivo de não se ater a apenas um retrato do líder dos Panteras Negras Fred Hampton, ao dar espaço para Bill O’Neal brilhar em seus diversos conflitos internos.
Apesar de duas histórias praticamente paralelas, o roteiro consegue transformá-las em uma grande narrativa de traição e revolução sem pontas soltas. Em ordem cronológica, mas com algumas cenas do verdadeiro Bill O'Neal em participação no documentário Eyes on the Prize, a trama consegue costurar os acontecimentos quase que em capítulos, além de se apoiar em filmagens históricas da época e nas escolhas certeiras de fotografia de Sean Bobbitt.
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Não por acaso, uma das categorias as quais o filme concorre no Oscar 2021 é Melhor Fotografia. Os movimentos de câmera, assim como o uso da luz e o enquadramento dos astros, são essenciais - e juntos à atuação de Lakeith Stanfield no papel de Bill O'Neal, transmitem a angústia de alguém que batalha internamente.
Todo esse embate moral do personagem é cercado por um contexto histórico que não pode ser ignorado - e que é o motivo de o filme ser tão atual e necessário. Nas décadas de 1960 e 1970, comparável aos dias atuais, o processo de descoberta de um jovem negro nos Estados Unidos não era tão simples assim. A produção explica o quanto a causa em busca de igualdade era polarizada, e os Panteras Negras eram demonizados pelo governo e os aparelhos nos quais se apoia, como o FBI.
A década de 1960 protagonizou diversos momentos notórios. Em 1965, Malcolm X foi assassinado. O Partido dos Panteras Negras foi fundado um ano depois. Em 1968, Martin Luther King Jr. foi morto a tiros. A Guerra do Vietnã estava em andamento, com diversos soldados negros sendo enviados para a linha de frente (assunto tratado em Destacamento Blood), e o comunismo era o grande terror o qual os Estados Unidos buscavam confrontar.
Diante disso, tudo entendido por comunismo - inclusive a busca dos negros por igualdade - tratava de ser eliminado pelo governo. Assim, os Panteras Negras, além de diversos defensores da democracia, entraram na mira de políticos do alto escalão norte-americano. Como a história se repete, a busca pelos direitos continua na atualidade, assim como a crítica a governos autoritários e ao fascismo iminente - e as décadas de 1960 e 1970 são grandes momentos a serem retomados pela indústria cinematográfica.
Não é coincidência que Os 7 de Chicago, também indicado ao Oscar 2021, aborde o mesmo momento histórico de Judas e o Messias Negro. As produções inclusive conectam-se quando Bobby Seale, fundador dos Panteras Negras e presente no controverso julgamento em Chicago, é citado no filme do diretor Shaka King.
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O momento vivido atualmente é de retomada de situações que, por mais absurdas, aconteceram - e continuam a ser presenciadas na atualidade. Judas e o Messias Negro conta com atuações impecáveis e uma direção certeira para contar uma história chocante, mas real.
A trilha sonora também contribui para a urgência que a obra carrega. Com grandes nomes do hip-hop, as faixas dão continuidade ao ritmo do filme, com beats certeiros e letra sobre o combate ao racismo. Ganha destaque "Fight For You", música da artista H.E.R., que concorre à Melhor Canção Original - e na faixa, a importância da luta é colocada em evidência: "Parece que a única solução é uma nova evolução/ Não aguentamos mais/ Não, não pode ser ignorado/ Quando eles baterem à sua porta, você estará pronto para a guerra?"
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Ao longo da trama, o roteiro, trilha sonora e fotografia tentam alimentar uma esperança nos espectadores para uma mudança no que parece, desde o princípio, o destino dos personagens. Espera-se uma reviravolta, mas isso não acontece. A produção destrói as expectativas para refletir a realidade, relacionada aos fatos pelos quais o longa é inspirado e nos acontecimentos atuais.
A realidade permanece crua, caso contrário não haveria protestos do movimento Black Lives Matters, pessoas pedindo por justiça de George Floyd, de João Pedro ou de Marielle Franco. Mais do que retomar histórias de violência, o filme opta por evidenciar o legado de Hampton, quase como uma proposta para não esquecermos o motivo pelo qual a luta deve continuar.
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