David Bowie em cena do clipe de "Blackstar" - Reprodução/Vídeo

Pelo direito de chorar por David Bowie

Bruna Veloso Publicado em 11/01/2016, às 23h33 - Atualizado em 12/01/2016, às 15h44

O senso comum que dita que o lado racional é o que conta – e que demonstrar determinadas emoções pode ser tido como sinal de fraqueza – teima em me fazer sentir certa estranheza por chorar tanto por alguém que não conheci. Sequer vi David Bowie no palco, ao vivo – na primeira vez em que ele se apresentou no Brasil, em 1990, eu tinha 4 anos. Enquanto colegas jornalistas relembram em seus textos terem vivido o auge do artista nas rádios na primeira metade da década de 1980 ou os shows a que assistiram, ou as entrevistas que fizeram com Bowie, eu remoo a sensação de que sequer teria o “direito” de sentir a tristeza que sinto agora pela morte dele. Afinal, não vivi; não estava lá; nem era nascida em boa parte da carreira dele.

Não me lembro ao certo a primeira vez que ouvi David Bowie – ou a primeira vez que me dei conta de que o estava ouvindo. Deve ter sido por volta dos 12 anos, quando li Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada, Prostituída pela primeira vez. A menina alemã que narrava sua trajetória como uma viciada em heroína era fã de Bowie. Tanto quanto aquele pesado relato me impressionou, deve ter me impressionado a descrição daquele artista.

Como muitos já frisaram, David Bowie tinha o poder de fazer com que qualquer um se sentisse “normal”. Não que sempre advogasse em favor das minorias ou que fosse um defensor inigualável dos sem voz, longe disso. Mas ele de fato tinha esse poder. Andrógino, de olhos enigmáticos, de dentes imperfeitos, dotado de coragem para se dizer gay e bissexual quando tais rótulos eram considerados ultrajantes. Bowie não tinha medo de ser quem era – quem quer que fosse – e, por consequência, injetava coragem em quem o via magnânimo sob a própria pele. Sentir-se confortável sob a própria pele é uma luta para um sem número de seres humanos; talvez seja a luta mais mundana pela qual passamos em nossa existência. Mas Bowie parece jamais ter tido de travá-la. É, para mim, uma de suas características mais sedutoras.

Não se faz necessário, aqui, detalhar as inúmeras formas como Bowie revolucionou a música; o modo como ditou tendências em vez de segui-las, o modo como compôs canções belíssimas, em melodia e letra; o modo como sua voz era única; o modo como seu jeito de falar exalava charme; o modo como ele podia ser cínico, enquanto, paradoxalmente, causava empatia; o modo como flutuava pelo palco (posso não tê-lo visto ao vivo, da plateia, mas ainda bem que temos os registros em home video); o modo como era, ao mesmo tempo, erudito e popular, arrogante e simples, vaidoso e generoso. Não se faz necessário (e nos links relacionados abaixo, de textos publicados neste site nesta segunda, 11, é possível entender tudo isso).

Neste momento, sinto se fazer necessário apenas aceitar que a arte tem mesmo o poder de nos fazer chorar por quem jamais conhecemos ou por alguém com quem nunca convivemos. Seja você o maior colecionador de obras relacionadas a David Bowie, tenha você apenas um disco – ou nenhum; seja você um especialista em cada um dos singles e personas, seja você alguém que canta as letras com as palavras trocadas ou com a pronúncia equivocada.

Bowie era um artista em um amplo sentido: viveu arte e morreu arte, como mostra o clipe de “Lazarus”, ao qual agora não consigo assistir. Que a arte dele seja capaz de fazer com que esqueçamos, ao menos momentaneamente, nosso lado racional e nos faça sentir livres para chorar sem julgamentos. Livres de julgamentos, como viveu e produziu David Bowie.

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