Na adolescência, o jornalista morto nesta segunda-feira, 11, era mais fã de Karl Marx do que de Jimi Hendrix
Redação Publicado em 11/02/2019, às 15h27
O jornalista Ricardo Boechat, um dos mais importantes do País, morreu aos 66 anos nesta segunda-feira, 11, em um acidente de helicóptero. A aeronave responsável por levá-lo de Campinas a São Paulo caiu e se chocou contra um caminhão, na altura do quilômetro 7 do Rodoanel, sentido Rodovia Castelo Branco.
Carismático, piadista e assertivo, Boechat se tornou uma figura importante do jornalismo e da política brasileira.
Em 2015, cedeu uma longa entrevista à Rolling Stone Brasil, publicada na edição de fevereiro daquele ano, na qual relembrava sua trajetória, seu início no jornal Diário de Notícias, no Rio de Janeiro, seu gosto pela literatura comunista na adolescência, sobre seu famoso carro Twingo e sua então preferência pelo transporte sobre duas rodas, em motocicletas.
No papo com o jornalista Edgardo Martolio, Boechat se recordava, aos risos (como de costume), a respeito do seu hábito de andar pela cidade de São Paulo sobre a garupa de motocicletas.
O jornalista foi dono, por 10 anos, de um carro antigo, modelo Twingo, então responsável por levá-lo de lá para cá. Acontece que o carro se tornou atração, depois de ser mencionado no ar tantas e tantas vezes.
“Você tem que ver no que resultou”, divertiu-se, Boechat. “Mas um belo dia o Twingo falou ‘chega’, começou a ficar cansado. É uma relação, confesso aqui, amorosa, mas como muitas relações amorosas, chegou ao final. E aproveito para esclarecer que eu nunca fiz propaganda. Eu o citava porque era meu carro e tinha uma história de dez anos.”
Certa vez, por exemplo, ele deu carona ao filósofo e ensaísta Luiz Felipe Pondé, mas o trajeto foi interrompido porque o veículo parou de funcionar. O âncora, então, decidiu recorrer a um motoboy para chegar a tempo a um compromisso na Band.
O hábito nasceu, contava ele, quando se viu preso a um enorme engarrafamento de carros na saída do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Novamente, ele seria impedido de chegar a tempo na emissora. O jornalista, então, parou o carro em uma rua próxima ao aeroporto.
“Fiquei fazendo sinal para os motoboys, até que finalmente parou um. Eu disse: ‘Meu irmão, tem 100 pratas aqui pra me levar pro Morumbi’. O cara falou que só tinha um capacete, ao que eu respondi: ‘Bom, se tivesse dois, eu te daria só 50’ [risos]. A partir daí, passei a usar moto com frequência, só que agora são dois ou três motociclistas conhecidos que me levam.” (Como é possível ver abaixo, em foto de arquivo pessoal publicada pela edição da revista)
Confira, abaixo, os principais trechos da matéria publicada em 12 de fevereiro de 2015:
Dormir é perda de tempo?
Ricardo Boechat sempre dormiu pouco, ele contava. Acumular cinco horas de sono em uma única noite era considerado um excesso.
“Fico animado, vendo filme oriental, de samurai, coisas assim”, revelou o jornalista sobre as madrugadas insones. Ele também se dizia viciado em trabalho: lê quatro jornais por dia – “que eu manuseio para formar um panorama das coisas” –, exceto aos fins de semana, quando fica com apenas um.
Nascido na Argentina, criado em Niterói
À frente do Jornal da Band, no canal de TV Bandeirantes, e também apresentador da rádio BandNews FM, Boechat mostrava com frequência o lado crítico ao comentar o noticiário diário em ambas as mídias.
Mas não é apenas a seriedade que fzz dele um âncora difícil de ignorar: o carisma do argentino, nascido em Buenos Aires e criado em Niterói (Rio de Janeiro), também ajudou a transformá-lo em uma personalidade para além dos programas que apresenta.
No ar, entre as notícias, divertia os ouvintes com histórias sobre o antigo carro modelo Twingo que costumava conduzir por São Paulo às memórias a respeito de quando ainda não ostentava a lustrosa careca (“Você tem que ver aquele cabelo, era uma coisa horrorosa”, ele brinca), Boechat era um locutor eloquente e instigante.
Pai preso pelo regime militar
Filho de Dalton, diplomata tão brasileiro quanto esquerdista, e dona Mercedes, uma aguerrida portenha, ele herdou os dons de ambos: do pai, a dialética professoral, e da mãe o tom firme do discurso.
O pai, que na época do golpe militar de 1964 trabalhava na Petrobras e também como professor, foi preso diversas vezes durante o regime. Depois de um período de reclusão do progenitor, em 1966, Boechat, aos 14 anos, acabou compelido a se juntar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), enquanto dona Mercedes cuidava dele e de mais seis filhos, incluindo gêmeos recém-nascidos.
“Vivíamos até então em uma democracia, meu pai tinha a militância dele. A consciência política passou a fazer parte de mim”, ele relembrou. “Você tinha a opção do quê? Foi um choque de informação compulsória.”
Mais fã de Karl Marx do que de Jimi Hendrix
Esse cenário fez de Boechat um menino diferente da maioria de seus vizinhos, com mais livros bolcheviques do que vinis de Elvis Presley nas estantes do quarto, menos festas do que encontros políticos.
Karl Marx era um nome mais familiar para ele do que Jimi Hendrix e, diferente do que acontecia com seus colegas da mesma faixa etária, Che Guevara era um personagem mais notório do que Janis Joplin.
Nesses anos de chumbo, a morte de Carlos Marighella o comoveria muito mais do que o decesso de Jim Morrison; na geografia de seu mapa-múndi revolucionário, “la Sierra Maestra” cubana tinha mais representatividade do que Woodstock.
O comportamento peculiar e um tanto rebelde do garoto – responsável por encorajá-lo a abandonar a escola antes de completar o antigo 2º grau, por exemplo – forjou uma personalidade idealista que, com o tempo, o levaria à posição de âncora televisivo.
Drogas, comunismo e garotas
Durante a adolescência, nos anos 1960, Ricardo Boechat viu nascer entre os amigos as experimentações com as drogas (“Basicamente fumavam maconha, cocaína era uma raridade; também tinha anfetaminas e alguns líquidos inaláveis, essas besteiras”).
Ele contou que não via apelo nas substâncias – a droga de Boechat era o comunismo. “Eu adorava falar, sempre fui muito verborrágico, então enveredei na direção da militância política dentro do ‘partidão’”, conta sobre a entrada para o PCB. Ele não tinha pudor, no entanto, de afirmar que nem tudo era política.
“Sim, a gente ia às manifestações também porque se comentava que as únicas garotas que davam eram as comunistas. Só que na verdade o Partido Comunista sempre foi muito careta”, relembrou.
“A meninada que estava mais liberada em todo esse aspecto era de alguns outros partidos, como o Liberdade e Luta, o Convergência Socialista. Todas elas eram muito intelectualizadas, liberadas sexualmente, mas viam os comunistas como uns atrasados.”
Beatles vieram mais tarde; Jethro Tull também
Ainda naqueles tempos, Boechat foi seduzido pela efervescência musical dos Beatles e da Invasão Britânica, mas, como outros jovens de esquerda, se viu impulsionado a acreditar que embarcar na onda do sucesso estrangeiro era caminhar de mãos dadas com um “complô” de alienação cultural, de “imperialismo ianque”. Ainda que sem querer, começou a apreciar o Fab Four; apaixonou- se pela Jovem Guarda e “não perdia Roberto Carlos”. Curioso: o atraía justamente o cantor mais romântico do movimento, o menos politizado.
Depois, vieram outros gostos. Jethro Tull e o disco Thick as a Brick (1972), por exemplo, dividido em duas faixas homônimas, com partes I e II.
“Eu faço ginástica, e é engraçado. Essas músicas do ‘Zé Tutu’ [ele brincvaa com o nome da banda] têm, juntas, 43 minutos, então a minha esteira dura 43 minutos. Todos os dias eu ouço as mesmas duas músicas. Todos os dias”, frisava. Esse é um dos exemplos que caracterizam o lado fiel de Boechat, que ele mesmo ressaltava.
Início no jornalismo - sem férias por nove anos
A carreira começou no extinto jornal Diário de Notícias, aos 17 anos, seguindo a dica do pai de um ex-colega de colégio. À época, Boechat já tinha parado de estudar e havia batido à porta da família para vender livros, ofício que era, então, exercido pelos pais (“Meu pai se tornou o maior vendedor da Enciclopédia Barsa no Brasil”, conta).
Depois de um ano e meio no Diário, Boechat se viu trabalhando ao lado do inventor do colunismo social carioca, Ibrahim Sued.
“Ele era um jornalista selvagem, um animal selvagem. Ibrahim era um mau patrão e, ao modo dele, um magnífico professor: utilizava como instrumento pedagógico o porrete, no tempo em que chefes davam esporro em jovens na redação e isso não era visto como bullying, assédio nem nada parecido.” Foram 14 anos ao lado de Sued; durante os nove primeiros, Boechat não tirou férias por medo de ser demitido.
Ainda assim, ele conta que há duas pessoas por quem tem “uma gratidão filha da puta na vida, a dona Mirtes [diretora do colégio no qual estudou] e o Ibrahim”. Quando tinha 33 anos, Boechat deixou o mentor e partiu para o jornal O Globo.
O trauma das orelhas?
Ricardo Boechat zombou de si mesmo mostrando as orelhas, dizendo que são grandes porque, no começo da carreira, trabalhava ao mesmo tempo com quatro telefones na mesa – chegava a atender três deles simultaneamente.
“Eu sempre digo que a minha orelha é assim porque eu lutei jiu-jitsu, mas é mentira: é do telefone, não lutei bosta nenhuma, se entro numa briga eu apanho pra caramba”, ele riu. Eram mais de 50 ligações diárias, que resultavam em longas jornadas de trabalho. “O jornalismo é isso, trabalha-se muito; dez horas é banal.”
O gosto por informar
Em meio às – literalmente – centenas de processos judiciais que já enfrentou e uma ou outra ameaça comprometendo sua integridade física (“Confesso que eu nem penso sobre isso”, afirmou), Boechat prefere focar no lado bom da profissão que escolheu – as horas diárias no ar no rádio e na TV.
A aproximação do público é, segundo ele, o “grande presente” que recebeu da vida. “Me dá um enorme prazer, um enorme orgulho, uma pessoa me abordar e dizer que ouviu algo que eu falei”, afirmou. “Significa que estão me escutando, não estão apenas me vendo.”
O caso das hemorroidas
Nos idos de 2014. Ricardo Boechat foi chamado para integrar o time da TV Record, uma semana antes do início da Copa do Mundo. Noticiou-se, na época, que o jornalista, um ateu assumido, havia recusado a oferta por ter uma visão diferente da chefia da emissora.
“Não, eu não recusei trabalhar na Record por razão religiosa, eu não sou um cruzado nem um anticruzado. Simplesmente estou muito bem no Grupo Bandeirantes”, afirmou, então.
“Naqueles dias, atacando outro boato, eu não deixei de trabalhar porque estava negociando com eles: não trabalhei na Band porque fiz uma cirurgia de hemorroidas. Se você tem um infarto, todo mundo se solidariza: se tiver que fazer um transplante, as pessoas acompanham, perguntam se foi tudo bem. Agora, se a operação for de hemorroidas, você tem que cair na clandestinidade, como se o cu não fizesse parte da anatomia humana. Nesse mesmo período eu tinha feito uma crítica a alguém e acharam que eu tinha sido afastado por causa dessa crítica; não, eu fui afastado por causa da minha bunda”.
E ria, daquele jeito que os ouvintes da BandNews FM se acostumaram a ouvir ao longo de tantas manhãs.
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