Letras sexistas, machistas, racistas e homofóbicas eram comuns no passado, mas a luta pela igualdade social não permite mais isso
Yolanda Reis Publicado em 23/06/2019, às 10h00
Desde a Constituição de 1988 e uma nova nação focada, idealmente, em igualdade e direitos humanos, assuntos de preconceito e violência ganham espaço. Mesmo assim, o Brasil é um dos piores lugares em relação à violência contra minoria sociais. Somos o país que mais mata pessoas LGBTQ+, temos também uma taxa de feminicídio (homicídio de mulher estimulado pelo gênero) 74% maior do que a média mundial, além de um racismo estrutural resultante de uma abolição tardia da escravidão e uma negligência com a reintegração na sociedade.
Historicamente, porém, o Brasil não temações diretas para combater esses problemas. A violência contra a mulher, por exemplo, só ganhou sua principal lei, chamada Maria da Penha, em 2006 - pouco mais de uma década atrás, e ainda não faz um ano que nasceu uma lei contra importunação sexual. Em relação a questão de preconceito contra LGBTQ+, não há ainda uma lei específica de criminalização - uma votação corre na justiça, mas o presidente Jair Bolsonaro acredita que é uma decisão “errada” tratar o ato como criminoso. Já o preconceito racial é um crime desde 1988, mas não há medidas efetivas em vigor e as políticas públicas de inclusão social são menosprezadas - e não à toa, 71% das pessoas que são assassinadas no Brasil são pretas ou pardas.
O Brasil enfrentou, e ainda enfrenta, muitos problemas de discriminação. Mas, nos últimos anos, com leis e conscientização social, o panorama, aos poucos, ganha esperança de mudança. O preconceito e a violência com minorias socias agora gera respostas - vide os movimentos de exposição de abusos sexual e a mudança dos “rostos padrão” de toda a mídia, além da inclusão crescente da comunidade LGBTQ+ em pautas governamentais e culturais, e a discussão em âmbito governamental para fim da violência dessas minorias.
Com esse crescimento de conscientização, algumas atitudes que eram aceitas antes não seriam hoje. Como exemplo, separamos 14 músicas antigas, lançadas entre 1929 e 1999, com teor racista, sexista, machista e homofóbicos que provavelmente (e ainda bem) não veriam a luz do dia em 2019. Veja trechos:
A música fala sobre um problema tão sério no Brasil que gerou a Lei de Importunação Sexual em 2018: abuso, muitas vezes sem contato físico direto, em público. Na letra, o eu-lírico conta a história de como ele entrou em um trem, colocou o pênis para fora da calça e encoxou as mulheres que estavam ali.
“O coletivo é muito bom para sarrar /
Pois o povo aglomerado sempre tende a se esfregar /
Com as nega véia é perna aqui perna acolá /
E se a xereca é mal lavada faz a ricota suar /
Se é nos calombos ou nas freiadas /
Se é nas curvas ou nas estradas /
São situações propícias para o ato de sarrar /
No coletivo o que manda é a lei do pau /
Quem tem esfrega nos outros /
Quem não tem só se dá mal”
De moderninha, não tem nada. A letra da canção cai em uma armadilha que tenta destruir - um cara tentando não ser machista, mas sendo extremamente machista. O eu-lírico não quer controlar a namorada, mas não gosta nem de deixá-la sair, e não quer que ela tenha amigos.
"Eu quero levar uma vida moderninha /
Deixar minha menininha sair sozinha /
Não ser machista e não bancar o possessivo /
Ser mais seguro e não ser tão impulsivo /
Mas eu me mordo de ciúme /
[...]
Ela me diz que é muito bom ter liberdade /
E que não há mal nenhum em ter outra amizade /
E que brigar por isso é muita crueldade /
Mas eu me mordo de ciúme"
Além de ser bem sexista, a letra de "Me Lambe" ainda normaliza o relacionamento sexual entre um adulto e uma mulher menor de idade. Enquanto isso, o Brasil é o 11º país com mais casos de abuso sexual de menores de idade, cerca de 50 denúncias por dia. Porém, historicamente, a maioria dos casos de abuso infantil não são denunciados, portanto é impossível saber o número real.
“O quê o que que essa criança tá fazendo aí toda mocinha? /
Vê, já sabe rebolar, e hoje em dia quem não sabe /
Se ela der mole eu juro que eu não faço nada /
Dá cadeia e é contra o costume /
Mas se eu tiver na rua e ela de mão dada com outro cara eu morro de ciúme!
[...]
Me fala a verdade, quantos anos você tem? /
Eu acho que com a sua idade /
Já dá pra brincar de fazer neném /
Como a vista é linda da roda gigante é tão grande /
Acho que ela viajou que eu era um picolé me lambe /
No parque de diversões foi que ela virou mulher das forte /
Menina pega a boneca e bota ela de pé”
Já foi permitido por lei, aqui no Brasil, matar uma mulher que traísse. E mesmo anos e anos depois disso ser proibido, em média, a cada quatro horas, uma mulher é morta no Brasil por alguém que é próximo dela, normalmente um cônjuge. Portanto, na letra de “Corra Por Sua Vida”, é muito difícil ver o humor que muitas vezes alegam que músicas do teor têm.
“Bom, eu preferia te ver morta, garotinha /
Do que te ver com outro homem /
Melhor ficar esperta, garotinha /
Ou você não vai saber que estou aqui /
Melhor correr por sua vida, garotinha /
Se esconda, garotinha /
Se eu te pegar com outro homem /
É o seu fim, garotinha”
A música começa como uma declaração de amor, com um homem querendo encher a mulher de presentes e adorá-la, mas no meio tem uma ameaça de espancamento se ela "vacilar" com ele.
“Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela /
Vou lhe dar uma banda de frente /
Quebrar cinco dentes e quatro costelas /
Vou pegar a tal faixa amarela /
Gravada com o nome dela /
E mandar incendiar /
Na entrada da favela”
A estimativa é de que apenas metade dos casos de violência contra a mulher sejam denunciados. Mesmo assim, em 2014, 405 mulheres eram atendidos em postos públicos de saúde todos os dias, a maioria vítima de espancamento - 70% causados por parceiros ou ex-parceiros. Difícil dizer que amor é violento, mas é o que o mito do “amor de malandro” diz, desde esta música de Chico Alves e muitos anos depois, também.
“O amor é o do malandro /
Oh, meu bem /
Melhor do que ele ninguém /
Se ele te bate é porque gosta de ti /
Pois bater-se em quem não se gosta /
Eu nunca vi”
John Lennon e Paul McCartney arrependeram-se de algumas das letras misóginas dos Beatles - mas, ao mesmo tempo, Lennon disse mais de uma vez que batia em mulheres. Uma indicação disso talvez fossem as letras em tom de ameaça, como esta que critica uma mulher por falar com outro homem.
“Eu tenho algo a dizer que pode lhe causar dor /
Se eu pegá-la falando com aquele garoto novamente /
Eu vou decepcioná-la /
E deixá-la chateada /
Pois eu já lhe disse /
Você não pode fazer isso”
Este ano, comemoram-se 50 anos do início da luta LGBTQ+ pela igualdade social. Portanto, uma letra de fetichização de garotas lésbicas não seria bem quista.
“Subi no muro do quintal /
E vi uma transa que não é normal /
Eu vi duas mulheres /
Botando aranha prá brigar /
Vem cá mulher deixa de manha /
Minha cobra quer comer sua aranha /
Meu corpo todo se tremeu /
E nem a cobra entendeu /
Como é que pode duas aranhas se esfregando /
Eu tô sabendo, alguma coisa tá faltando”
De novo, um caso de traição sendo tratado com violência - além de um xingamento gratuito.
“Todo homem que sabe o que quer /
Pega o pau pra bater na mulher /
Ô Silvia, piranha! Ô Silvia, piranha!”
Elza Soares é mulher e é negra, mas cantou uma música de Ataulfo Alves considerada racista e sexista. Fala de uma mulher negra que é linda - a ponto do eu-lírico não parar de olhar para ela, e desejar até a escravidão para poder tê-la por força.
“Ai, mulata assanhada /
Ai, meu Deus, que bom seria /
Se voltasse a escravidão /
Eu comprava essa mulata /
E prendia no meu coração /
E depois a pretoria /
É quem resolvia a questão”
Os “Reis do Gado” e “inventores do pagode” caíam em estereótipos da época, e tinham músicas bem racistas e sexistas, inclusive em uma que conta a história de um trabalhar de fazenda, um homem negro, que é demitido de seu emprego por estar muito velho mas mesmo assim salva a filha do patrão de um atropelamento, o que faz dele um “preto de alma branca”.
A música é uma exemplificação bem clara de uma violência doméstica e sexismo, já que o eu-lirico não quer que sua esposa fique na janela, então ao vê-la parada, bate nela e a joga na cozinha. Além disso, também tem um teor racista e compara a mulher, que é negra, a um macaco.
“Minha nega na janela /
Diz que está tirando linha /
Êta nega tu é feia /
Que parece macaquinha /
Olhei pra ela e disse /
Vai já pra cozinha /
Dei um murro nela /
E joguei ela dentro da pia /
Quem foi que disse /
Que essa nega não cabia?”
Na música, Axl Rose canta sobre ser “um garoto branco” de cidade pequena que tenta se descobrir como pessoa em meio a uma metrópole - mas não gosta de ver gente diferente, como negros, imigrantes e “bichas”.
“Imigrantes e bichas /
não fazem sentido para mim /
eles vêm ao meu país /
e acham que podem fazer o que quiserem /
como começar um mini-Irã /
Ou espalhar doenças /
e falam de cada jeito /
é tudo grego para mim”
A música é bem ofensiva à mulheres. Mas é quase uma menção honrosa nesta lista, pois Gabriel, O Pensador, sabia bem que as letras não são adequadas para 2019, portanto refez a faixa e arrumou o que tinha de errado. Veja as duas composições:
“Existem mulheres que são uma beleza /
Mas quando abrem a boca /
Hmm que tristeza! /
Não não é o seu hálito que apodrece o ar /
O problema é o que elas falam que não dá pra agüentar /
Nada na cabeça /
Personalidade fraca /
Tem a feminilidade e a sensualidade de uma vaca”
“Existem mulheres que são uma beleza /
Não, hoje eu sei e afirmo com certeza /
Que a beleza na verdade tá em toda mulher /
Tá em todos os sentidos, só não vê quem não quer /
Se quer saber, o quê /
Onde é lugar de mulher /
É na empresa, na balada e mais onde ela quiser /
Liberdade na cabeça, personalidade forte”
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