O que são os discursos sexistas apresentados nas produções e como repensá-los?
Isabela Guiduci
Publicado em 12/06/2020, às 07h00Não é a primeira vez que apontamos o machismo nas séries clássicas como Friends, The Office, How I Met Your Mother, Gossip Girl e outras. O debate sobre esses discursos, contudo, é muito importante para a desconstrução pessoal de cada um. Por isso, constantemente voltamos ao assunto e agora, explicaremos o por quê precisamos repensar o machismo nestas produções audiovisuais.
"É importante falar sobre todas essas questões para que as pessoas possam refletir. Quanto mais a gente fala, mais se reflete", afirmou Andreza Delgado, ativista feminista, uma das fundadoras da Perifacon - primeira Comic Con das favelas - e criadora de conteúdo para a Revista Capitolina, em uma entrevista à Rolling Stone Brasil.
Para entender o por quê precisamos repensar o machismo nas séries, também é necessário compreender o que é esse discurso, como ele acontece e como os personagens e os relacionamentos podem reforçar o sexismo e a opressão feminina - até porque, as produções são um reflexo da realidade.
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Esses seriados foram lançados em outra época quando o machismo era menos debatido. Mas, é necessário entender que, atualmente, com o avanço do discurso feminista, esses assuntos devem ser pautados. Através do feminismo, precisamos enxergar os comportamentos preocupantes de personagens apresentados nessas séries.
De maneira simples, direta e objetiva, bell hooks no livro O feminismo é para todo mundo explica que o feminismo existe “para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão.”. Portanto, para entendê-lo é preciso compreender o que é o sexismo e como ele afeta a vida das mulheres. Vale lembrar que o movimento não é anti-homem, mas sim, anti-machista e antissexismo.
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O machismo é o enaltecimento do sexo masculino sobre o feminino, a partir de comportamentos, opiniões e sentimentos que declaram a desigualdade de direitos entre os dois. Um discurso machista é aquele cujo acredita que homens e mulheres têm papéis e responsabilidades distintas na sociedade, e nos casos mais complexos, julga a mulher como inferior em aspectos físicos, intelectuais e sociais - o que causa opressão, objetificação e outros.
Já o sexismo é similar, mas vai além - em uma explicação direta e objetiva, é a discriminação de gênero. Mais detalhadamente, o sexismo reforça os costumes enraizados e ensinados desde a infância, como, por exemplo, o que deve ser respeitados por cada sexo, como o modo de vestir até o comportamento social "adequado". Em uma sociedade cujo há o machismo estrutural - o sexismo é o expoente do preconceito de gênero.
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Um exemplo de pensamento sexista é o medo de que um menino "vire gay" por brincar com boneca, e há exatamente essa cena em Friends - Ross surta ao ver Ben brincando com uma boneca. Outro exemplo no sitcom é quando Ross não aceita uma babá homem, porque não acredita que ser babá é “um trabalho para homem” - isso também é um pensamento sexista.
Os relacionamentos - reais e retratados nas séries - são machistas. Neles, é possível identificar um controle maior por parte de um dos parceiros envolvidos na relação amorosa. Se um controla, o outro é dominado, portanto, é sexista e pode ser até abusivo, como é o caso de Chuck e Blair em Gossip Girl.
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Principalmente no caso de Chuck, porque o personagem quer ter controle sobre Blair - como a relação deles é romantizada, parte do público não consegue compreender a gravidade de um relacionamento sexista e machista quanto o dos dois.
Uma das principais questões, que inclusive acontecem nas séries, é a naturalização dos comportamentos sexistas e nas piores hipóteses, opressores - em relacionamentos abusivos ou assédio, por exemplo. Essas atitudes são um retrato da sociedade, que pode ser um dos fatores os quais dificulta o público entender o teor preocupante das ações sexistas.
Ainda, vale pontuar que homens e mulheres podem ter comportamentos sexistas, por isso é tão importante a conscientização. No livro O feminismo é para todo mundo, bell hooks explica: "A conscientização feminista revolucionária enfatizou a importância de aprender sobre o patriarcado como sistema de dominação, como ele se institucionalizou e como é disseminado e mantido. Compreender a maneira como a dominação masculina e o sexismo eram expressos no dia a dia conscientizou mulheres sobre como éramos vitimizadas, exploradas e, em piores cenários, oprimidas."
Sobre a questão da consciência, bell hooks também fala: "A diferença está apenas no fato de que os homens se beneficiaram mais do sexismo do que as mulheres e, como consequência, era menos provável que eles quisessem abrir mão dos privilégios do patriarcado. Antes que as mulheres pudessem mudar o patriarcado, era necessário mudar a nós mesmas; precisávamos criar consciência."
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"É muito importante que a gente debata a questão do machismo em todas essas séries, porque é importante que não se naturalize determinados comportamentos. Sou muito fã de The Office e acredito que tem algumas coisas que acontecem na série que precisam ser muito debatidas, como, por exemplo, o jeito que o Michael assedia as funcionárias", disse Andreza.
Ela completou: "Gosto muito da série e parece muito explícito para as pessoas enxergarem que aquele comportamento não é normal, que é jocoso e preocupante, mas também entendo que há pessoas que você precisa pegar pela mão e desenhar que esse tipo de comportamento não é legal e não pode ser naturalizado."
Há uma dificuldade, porém, por parte do público de entender o motivo de ser tão importante reconhecer o machismo. Pode ser relacionado com apego ao personagem ou até mesmo com a série em questão. Contudo, Andreza lembra de uma comparação interessante sobre compreender apenas o que é cômodo e convergente com as ideias já pré-estabelecidas pelas pessoas, sem se permitir refletir sobre diferentes pautas.
"Rola uma dificuldade, não sei se é dificuldade ou maldade, mas a gente tem muita ficção que trata sobre muitos assuntos legais em relação às diferenças e as pessoas parecem que não entendem. É como à questão do Star Wars. Se você assistiu todos os filmes e continua defendendo a militarização, a intervenção militar, não faz sentido nenhum. É como se você defendesse O Império em Star Wars", explicou a ativista. O mesmo vale para o machismo, claro, cada um à sua maneira e com divergências, mas é uma comparação válida.
Citamos apenas alguns exemplos, porém, não é recluso aos listados. Dentro das produções, há outros personagens que reproduzem discursos sexistas, inclusive mulheres, porque é um problema estrutural. Por isso, é tão importante repensar o machismo nas séries clássicas.
Ao ter consciência do que são os comportamentos machistas e sexistas - os quais falhamos ao notar até mesmo no cotidiano - fica mais acessível repensá-los nas séries clássicas como Friends e The Office. Como repensar o machismo a partir da tomada de consciência?
Em momentos de maratonas, ou ao reassistir aos episódios favoritos, ou até mesmo acompanhar a série mais uma vez, é preciso analisar com cautela as conversas, as desigualdades entre homens e mulheres, relacionamentos com opressão, controle e abusos psicológicos - que estão bem mais presentes nas produções do que parece.
O debate sobre o machismo e os discursos sexistas nas séries são essenciais para a desconstrução. Até porque, as produções são reflexos da realidade e é preciso repensar como isso pode atrasar os debates sobre feminismo e o avanço do mesmo para acabar com a desigualdade de gênero.
Além disso, outra opção para repensar o machismo é assistir séries que trilham o caminho contrário e buscam apresentar discussão sobre a masculinidade tóxica, machismo, sexismo, sexualidade, como é possível encontrar em Sex Education, por exemplo, principalmente na segunda temporada, porque há uma atenção ao assunto após Aimee sofrer assédio no transporte público. A personagem passa então a tentar lidar com os traumas e as cenas são bem complexas e importantes.
"Com certeza os relacionamentos machistas têm muito da época e reprodução da sociedade. Tem-se criado um caminho muito bacana para os personagens masculinos que vão pensar sobre a própria masculinidade tóxica. Isso é bem legal, a gente tem um avanço na melhoria dos personagens e é bem interessante", lembrou Andreza.
A ativista também falou: "Os personagens de Brooklyn Nine-Nine trazem discussões muito interessantes, eles até falam a palavra masculinidade tóxica e isso é fod*. Isso é muito importante."
Além de Brooklyn Nine-Nine, Andreza também reforçou sobre Sex Education: "Os personagens de Sex Education repensam sobre a masculinidade tóxica e a heterossexualidade, por exemplo. Outro exemplo é a cena da Aimee, que passou por um assédio, e junto das amigas, falam sobre o machismo e as consequências dele.". Ainda, concluiu: "A reformulação dos personagens e como os debates feministas são colocados é sensacional."
Mais uma vez, vale relembrar que a ideia não é parar de gostar das séries ou criticá-las como uma produção, mas sim, apontar os discursos machistas e sexistas e repensá-los para a desconstrução pessoal. É claro e também parar de romantizar relações machistas e opressoras - no real e na ficção.
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Algumas séries, como o exemplo de Sex Education, já pensam sobre protagonistas feministas que propõe debates antissexismos e personagens masculinos dispostos a repensar sobre a masculinidade tóxica.
Para além dos personagens, também é preciso ter mulheres diretoras e criadoras de séries, porque como comentou Andreza as produções "são também sobre as nossas vivências".
Um exemplo bem claro da diferença de representação de protagonistas mulheres é um caso citado por Andreza sobre a Mulher-Maravilha, filme dirigido por uma mulher - Patty Jenkins - e como o mesmo foca na narrativa de empoderamento de Diana.
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Em contrapartida, Arlequina em Esquadrão Suicida é totalmente sexualizada, e o longa foi dirigido por um homem - David Ayer -, enquanto em Aves de Rapina, comandado por uma mulher - Cathy Yan -, não há essa sexualização.
Portanto, para além de personagens e protagonistas, criadoras e diretoras mulheres é essencial para dialogar com a desconstrução do discurso sexista. Certamente, Sex Education, exemplo usado ao longo do texto, é uma série criada por uma mulher - Laurie Nunn.
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