Por Trás dos Quadrinhos, Histórias (Parte I)

No primeiro capítulo dessa série sobre os principais nomes das HQs independentes nacionais, conheça a mente hardcore por trás da Escória Comix, a autodescoberta de Ing Lee por meio da arte e o afrofuturismo de Eryk Souza

Igor Brunaldi

Publicado em 12/08/2020, às 07h00 - Atualizado às 13h19
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- Lobo Ramirez desenhado por Victor Bello e autorretratos de Ing Lee e Eryk Souza

Quando alguém diz "história em quadrinhos", qual é a primeira imagem que vem à sua cabeça? Homem-Aranha? Superman? Talvez Turma da Mônica? Se você é uma das pessoas que logo assimila o termo a super-heróis, está no lugar certo.

Mas não por esse ser um texto sobre personagens com capas, roupas justíssimas e poderes bizarros. Muito pelo contrário. Esse é um texto sobre alguns dos brasileiros mais importantes atualmente para o mundo dos quadrinhos independentes, que fogem, propositalmente ou não, da filosofia de produção repetitiva e em massa de editoras como Marvel e DC.

Que o Brasil é um país rico em cultura (quase) todo mundo sabe. Mas que o nosso país é casa de quadrinistas incríveis e contadores versáteis de histórias, pouquíssimos sabem, pois infelizmente esses artistas não têm o trabalho divulgado da mesma forma que o "novo" arco em que um Batman "diferente" enfrenta um Coringa "inédito".

Mas não se preocupe. Estou aqui para ajudar a preencher essa lacuna cultural na sua vida.

O universo das HQs independentes do Brasil respira (de máscara e respeitando as recomendações de distanciamento social da OMS), e independente se você não conhecia por pura preguiça de pesquisar, ou por simplesmente não se interessar, vai poder se considerar um bom conhecedor do assunto após a leitura dessa e das próximas duas partes que serão publicadas ao longo das próximas semanas.

Escória Comix - uma editora nos moldes de um selo de hardcore

Lobo Ramirez, editor, criador e único funcionário da Escória Comix começou a se envolver com o mundo das publicações independentes fazendo zine pra bandas de hardcore e metal. A estética e a filosofia desse rolê o acompanham até hoje. Basta ver algumas páginas de publicações da editora e a paixão com a qual ele fala sobre o próprio trabalho.

A ideia de colocar a mão na massa e fazer as coisas acontecerem sem depender de ninguém surgiu quando ele percebeu que as histórias escrachadas e por vezes até nojentonas que queria habitavam dentro de um nicho que fica dentro de outro nicho.

Ao invés de se desanimar com isso, se dedicou a começar um projeto pelo qual conseguisse divulgar o próprio trabalho e também ajudar outros artistas que tivessem a mesma pegada.

"Tem muita gente que faz um trampo foda, mas não sabe como vender. E por isso você não fica conhecendo o trabalho do cara. Eu quis montar uma editora que juntasse todos os quadrinhos que eu gosto, uns trecos meio punk que sempre existiram, mas ficavam mais dispersos."

Imagem: Esgoto Carceráreo (2019), Emilly Bonna 

E foi com esse objetivo de unir, ajudar e fazer acontecer que nasceu a Escória. Mas muito além desses fatores, que podem ser considerados os pilares da fundação, Ramirez tem como objetivo ressignificar a ideia de que publicações punk, hardcore e metal (gêneros musicais que serviram de trilha sonora para a evolução dele como artista) são necessariamente "meio podres".

Para isso, ele investe na qualidade dos gibis que lança pela editora. Com isso, mantém toda a estética à qual as obras pertencem, mas subverte as expectativas ao apresentar um produto "tão bom quanto qualquer outro quadrinho". Dessa forma, os artistas driblam o preconceito existente contra esse tipo de material e consequentemente aumentam o alcance das publicações.

Para a parte administrativa da editora, Ramirez aproveitou toda a experiência que adquiriu ao longo dos anos vendendo CDs de bandas.

"A Escória Comix é como se fosse uma editora nos moldes de um selo de hardcore"

Ele lembra de quando começou a colocar a ideia em prática, lá em 2016, que publicava HQs de amigos que já tinham coisas prontas ou quase finalizadas. Mas uma hora essa fonte de conteúdo se esgotou. Para resolver esse problema, foi às redes sociais em busca de artistas que se encaixassem no estilo e na filosofia da editora, evitando também criar as infames "panelinhas".

Imagem: Porta do Inferno (2018), Lobo Ramirez

Ao mesmo tempo que essa estratégia contribuiu para a expansão dos horizontes da Escória, serviu também para ensinar a Ramirez como selecionar os artistas com os quais trabalhar, sem se basear apenas na compatibilidade estética.

Ele conta que muitas pessoas com as quais entrou em contato para sugerir uma colaboração, ou que entraram em contato com ele, "tem uma ideia para um quadrinho. Mas eu também tenho uma ideia para um quadrinho. Você tem que me mostra alguma coisa", diz, antes de garantir que a editora não é um espaço para quem quer fazer gibi apenas por hobby.

"Eu tenho que priorizar quem está nesse caminho e quer continuar nele, não quem quer fazer uma HQ e depois ir fazer outra coisa"

Imagem: Rogeria (2019), Lobo Ramirez e Fabio Mozine

Quando questionado sobre o aspecto que mais odeia sobre ser dono de uma empresa com apenas um funcionário, a resposta vem sem qualquer demora: fazer todo o processo que envolve correio, ficar esperando em filas para pegar caixas, filas para enviar os quadrinhos e "perceber de última hora que acabou o clipes para prender uma paradinha. Odeio isso."

Com a mesma facilidade seleciona o aspecto que mais ama, e vindo de uma mente criativa e proativa, não deveria ser surpresa ler que a resposta foi a liberdade, principalmente em poder explorar formas interessantes de divulgar os lançamentos, como a criação de gifs, mini-novelas para o Instagram, animações e vídeos.

E sem dúvida alguma isso tudo resulta na criação de uma identidade divertida e cativante, que diferencia a Escória Comix de grandes editoras nas quais os posts das redes sociais são feitos por alguém responsável apenas por isso e, consequentemente, não carregam a personalidade da obra divulgada.

Imagem: Úlcera Vórtex Volume 2 (2017), Victor Bello


P&R com Ing Lee - autodescoberta por meio da arte

Quem vê a lista impressionante de 19 títulos (entre HQs, zines e projetos experimentais) publicados em menos de cinco anos não imagina que Ing Lee, artista nascida e criada em Belo Horizonte, tem apenas 25 anos.

Com uma matemática bem básica (e a única que me acompanha tantos anos após a escola), podemos dizer que ao longo de apenas 1/5 da vida, ela publicou um número de histórias quase igual a 3/4 da idade dela. Fez sentido? Talvez não.

Mas se esse monte de conta possivelmente desnecessário e desconexo que eu fiz indica alguma coisa, é o comprometimento de Ing com o mundo da arte impressa.

Ing não apenas assina HQs como roteirista e ilustradora, mas é também umas das idealizadoras do selo O Quiabo, projeto que busca ser um palco para artistas independentes voltado para experimentações gráficas.

Mas muito melhor do que eu ficar aqui falando sobre ela e sobre o trabalho exemplar dela, é vocês lerem na íntegra a conversa inspiradora que tivemos.

Imagem: Karaokê Box (2019)

Me conta um pouco sobre como você começou a desenhar, e suas primeiras memórias relacionadas a ilustrações e quadrinhos.

Comecei a desenhar assistindo Pokémon. Lembro de me debruçar sobre papéis e canetas enquanto assistia. A possibilidade de criar novos universos por meio do desenho e narrativas gráficas é algo que me impressionava muito e ainda me impressiona até hoje.

De que formas você acha que o envolvimento com arte contribuiu para o seu crescimento e amadurecimento como ser humano?

Acredito que o fazer artístico diz muito sobre si mesmo. O ato de criar vem muito de nossa subjetividade, do repertório que carregamos, como uma forma de canalizar uma pletora de sentimentos, memórias e interesses.

Quanto mais mergulho na minha produção, mais percebo o quanto certas coisas sempre estiveram ali, e apenas ganharam novas formas e desdobramentos com o passar do tempo. Conforme amadureci como pessoa, vi meu trabalho crescer junto.

Minha trajetória envolve muitas questões sobre autoconhecimento. Não romantizo minhas dores e demônios internos, mas creio que posso transformar e gerar outros significados para elas, como uma forma de cura.

De que maneiras as HQs independentes podem ser usadas como ferramenta essencial à militância amarela?

Essa linguagem consiste numa forma de criar histórias e fazê-las circularem de algum jeito, fazendo com que ganhem corpo sob forma de escritos, situações, cenários, personagens ou até mesmo a completa abstração. O cenário de HQs independentes, embora seja inovador em muitos aspectos, é, infelizmente, ainda muito dominado por narrativas que surgem de um ponto de partida similar: pessoas brancas, de classe média/alta, do sudeste/sul, cis e heterossexuais.

Por isso, quero que feiras de arte independente e quadrinhos tenham mais pessoas amarelas expondo e tendo visibilidade, mas não apenas isso. Me proponho, como artista, a disputar esse lugar, para que junto com meus trabalhos, coexistam mais outras produções de corpos tidos como dissidentes - e isso não se limita somente à militância amarela. A maior potência política dentro das HQs é, justamente, a possibilidade de trazer narrativas diversas e singulares.

Imagem: Geum, em Histórias Quentinhas Sobre Existir (2020)

Quais foram, no começo, suas maiores influências no mundo da arte? Elas mudaram atualmente?

Como mencionei, fui uma criança muito fissurada em Pokémon. E isso se estendia muito à cultura pop japonesa no geral, que conquistou um público imenso na minha geração e se tornou a porta de entrada para este mundo para muita gente.

Mas para além de uma admiração por essas expressões culturais nipônicas, existia uma sensação de pertencimento, por mais que eu tenha ascendência coreana e não japonesa. Fui criada bem afastada da comunidade e tradições coreanas, e isso gerava um vazio imenso em mim. Creio que foi por isso que houve um apego tão forte.

Fui uma ávida leitora de mangás e tive um repertório imenso de animes, dos clássicos aos underground. Nunca neguei isso, mesmo dentro da faculdade de Artes Visuais, onde costumam esnobar esse tipo de referência por fugir de uma formação artística eurocentrista e "erudita".

Decidi então me aprofundar dentro do universo no qual eu já estava inserida. E assim conheci o movimento Superflat, do Takashi Murakami, que tem justamente essa narrativa crítica dentro da exportação da cultura de massas japonesa. Entrei em contato com outras produções leste-asiáticas também, ampliando meu leque para novas expressões artísticas, como o cinema, design, música e literatura.

Também estou me aprofundando em estudos sobre história e política coreana, indo atrás de questões por conta própria e afirmando minha autonomia sobre minha ancestralidade.

Não acho que minhas influências tenham mudado tanto assim, mas sim que novos ciclos surgiram e neles fui conseguindo lapidar melhor o repertório que fui criando e acumulando com o passar do tempo. Esse maior entendimento que tenho hoje, por me aprofundar nessas questões, não somente enriqueceram minha produção artística, como também a mim mesma como pessoa.

O universo dos gibis independentes tem o alcance um tanto quanto limitado, mas apesar disso, quem está por dentro vê que não faltam artistas competentes e ótimos contadores de histórias. O que você acha que precisa mudar urgentemente nesse mundo das publicações independentes?

Acho que ainda falta um público mais diverso para acessar esses trabalhos. As feiras estão muito centradas em São Paulo e, realmente, lá é um dos únicos lugares onde eu tenho um retorno quase sempre muito positivo.

Aqui onde eu moro, em Belo Horizonte, apesar de ser na região sudeste, temos muitos artistas e produções incríveis, uma cena efervescente, mas no quesito de público, há ainda uma desvalorização imensa do nosso trabalho. É um desafio criar um público que entenda que quem está na mesa, em feiras gráficas, geralmente é o autor de todos aqueles trabalhos ali expostos e tem contas a pagar.

Sinto também que críticos e plataformas que se propõem a divulgar e analisar trabalhos de HQs, cultivam um foco muito grande de trabalhos vindos de fora, que já são consagrados na gringa e vendem horrores por aqui, enquanto é muito raro ver o mesmo ocorrendo com artistas locais.

E quando tratam de produções brasileiras, falam de autores já bem reconhecidos no mercado e, em sua maioria, pessoas brancas de classe média alta. Percebo que as editoras tentam variar na escolha de títulos e autores publicados, mas me pergunto se é por um interesse real de quebrar isso ou se querem meramente preencher "cotas" de diversidade, já que seus catálogos ainda permanecem bastante homogêneos como um todo.

Imagem: Que Se Exploda, publicado em Cápsula (2019)

E o que você vê como a característica mais positiva desse universo dos quadrinhos independentes?

Acredito que o fator da troca é simplesmente fantástico. Nessa pandemia, posso dizer com toda certeza que o ambiente do qual mais sinto falta é o da feira, de poder estar não somente fazendo meu trabalho circular, como conhecer novas pessoas e fortalecer laços com outras, sejam elas também artistas ou não.

Me conta sobre o seu projeto O Quiabo. Como surgiu a ideia para a criação do selo, e qual o objetivo dele?

Fundei O Quiabo com minha amiga muito querida e a melhor dupla de trabalho que eu poderia ter, a designer e produtora gráfica Larissa Kamei. O cerne se encontra em nossa parceria, com suas inúmeras possibilidades gráficas e editoriais, seja na linguagem das zines, quadrinhos e outros impressos/publicações experimentais que podemos explorar juntas.

E por meio d'O Quiabo, temos como objetivo estabelecer também outras parcerias, com artistas independentes e coletivos, com enfoque em produções vindas de contextos racializados, LGBTQI+, PcD e periféricos.

Olhando para tudo que você já conquistou como artista, do que mais sente orgulho?

Eu me orgulho do quanto me sinto mais conectada comigo mesma a cada trabalho feito. E como me conecto, da mesma forma, com outras pessoas. Valorizo muito esses atravessamentos e vínculos que vão se tecendo ao longo de minha trajetória. Acho que, talvez, posso afirmar que o meu eu criança ficaria bem feliz em saber o que meu eu atual está fazendo!

Qual objetivo você ainda não realizou, mas não vai descansar enquanto não conquistar?

Estou começando um projeto de HQ solo, autoral, que ainda é segredo em grande parte. No que posso revelar ainda, envolve histórias fictícias de diversas famílias asiático-brasileiras, com códigos e questões de nosso contexto diaspórico. Quem sabe até o fim do ano eu consigo soltar este projeto. Fica aí o mistério no ar.

Imagem: Fantasma (2020)


Eryk Souza - do cotidiano periférico ao afrofuturismo

Eryk Souza tem um espaço um tanto quanto especial nesse texto. Foi após ler Pomo, quadrinho incrível assinado por ele e publicado este ano pela Editora Mino, que me veio a ideia de elaborar uma pauta sobre quadrinistas e selos independentes nacionais.

Descrita de forma bem econômica, Pomo é uma obra afrofuturista semi-biográfica sobre sexualidade e religião, contada através de uma arte excepcional e diálogos enxutos que não falam mais do que o necessário para deixar o leitor preso à narrativa e curioso sobre o universo ali criado. 

Da mesma forma como o artista de 29 anos responsável pela criação disso tudo.

Imagem: Capa da HQ Pomo (2020)

Eryk me conta que as primeiras memórias relacionadas a ilustração que carrega consigo envolvem o pai, Edvaldo Soares, um soteropolitano que, apesar de não trabalhar com isso, sempre desenhou e fez artesanatos carregados de referências à arte nordestina.

Além dessa influência vinda diretamente de dentro da família, o contato com animes e mangás na adolescência foram peças fundamentais para que ele chegasse no traço que o acompanha nos dias de hoje.

Ele aponta principalmente o impacto que Neon Genesis Evangelion teve na formação dele como quadrinista, e a forma como Yoshiyuki Sadamoto (roteirista e ilustrador tanto da obra impressa quanto do desenho) criou um mundo ameaçador no qual a humanidade se viu obrigada a usar medidas extremas na ciência e na tecnologia para não ser dizimada.

Apesar de já trabalhar há dez anos com arte e se considerar um artista ainda no processo de se entender como tal, Eryk sempre buscou ter um estilo próprio, mas sem necessariamente tentar esconder as referências que, além de Sadamoto, incluem o francês Moebius e o brasileiro João Farkas, mais especificamente o livro Caretas de Maragojipe.

Com o olhar ainda voltado para a própria trajetória, ele lembrou que nunca considerou trabalhar com outra coisa que não fosse arte.

Essa determinação e dedicação em se tornar um criador de universos paralelos visuais certamente refletiu na composição exemplar de um corpo de trabalho nem um pouco tímido em transbordar criatividade.

A mistura de tantos elementos distintos como a vida do artista, referências de moda, afrofuturismo e cyberpunk não tinham como resultar em nada menos do que único. 

Através da arte, Eryk embarcar em uma busca estética para provar, a partir do próprio cotidiano e de pessoas semelhantes a ele, que também é possível contar histórias doidas de ficção científica baseadas na realidade do Brasil.

Pomo foi publicado através do projeto Narrativas Periféricas, realizado pela Editora Mino em parceria com o Chiaroscuro Studio, com o objetivo de dar destaque a artistas da periferia que produzem conteúdo diferente daqueles comumente assimilados à arte periférica.

Antes de Pomo, Eryk publicou outros dois quadrinhos: Uma e o Pombo (2016), pela Sê-lo, e Káros (2018), pela Riscø HQ.

Imagem: Pomo (2020)

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