Com tramas envolvendo abuso e crimes, as produções derivam da pornografia e continuam populares apesar das críticas
Larissa Catharine Oliveira | @whosanniecarol Publicado em 07/07/2020, às 07h00
O filme 365 Dias, lançamento da Netflix, foi divulgado como “o novo Cinquenta Tons de Cinza” e gerou diversas polêmicas. Com a proposta de ser um drama erótico, a trama baseada nos livros de Blanka Lipińska foi criticada por glamourizar comportamentos abusivos e criminosos, como sequestro e tráfico sexual.
A adaptação cinematográfica de Cinquenta Tons de Cinza foi classificada pela Rolling Stone EUA como uma versão “higienizada” e um “pornô Cinderela” da história, mas o comportamento abusivo do protagonista, Christian Grey, ainda assim foi criticado e classificado como de abusador por veículos como The Independent.
365 Dias é diferente. Ainda antes da estreia, prometia ser “mais erótico que Cinquenta Tons de Cinza”. De fato, o filme apresenta diversas cenas de nudez, masturbação e sexo quase explícito - ao ponto do elenco ser questionado se as cenas foram reais ou não. A história de Massimo e Laura também superou o envolvimento de Grey e Anastasia na problemática.
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Quando o primeiro filme da trilogia Cinquenta Tons de Cinza chegou aos cinemas, em 2015, termos como “cultura do estupro” e o movimento Me Too ainda não eram temas recorrentes na grande mídia. Pautas relacionadas a relacionamentos abusivos, consentimento e a romantização desses problemas começaram a ganhar força a partir de 2016, e o movimento pela abordagem correta dessas temáticas ganhou força na indústria audiovisual.
Antes de aceitar o papel no remake do clássico A Bela e a Fera, por exemplo, Emma Watson explicou publicamente os motivos pelos quais Bela não sofria de Síndrome de Estocolmo na história. A relação entre Coringa e Arlequina, da DC Comics, também foi alvo de debates pela romantização dos abusos sofridos pela parceira do Palhaço do Crime, e a personagem retornou em Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa para superar os traumas da relação.
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Após diversas críticas do público sobre o conteúdo de 365 Dias, a cantora Duffy enviou uma carta ao CEO da plataforma de streaming para criticar o lançamento. Dez anos atrás, a britânica foi vítima de sequestro e estupro. “365 Dias glamouriza a realidade brutal do tráfico sexual, do sequestro e do estupro. Não deveria ser a ideia de entretenimento para ninguém, nem ser descrito como tal ou comercializado desta maneira”, escreveu. “Enquanto escrevo essas palavras, cerca de 25 milhões de pessoas são vítimas de tráfico [sexual] em todo o mundo. Por favor, tire um momento para pensar neste número”.
Diante desse contexto, o sucesso de 365 Dias e a popularidade do personagem Massimo levantam diversas questões. Como um assassino e sequestrador - além de abusador sexual, como uma das primeiras cenas mostra - ainda triunfa como galã e exemplo de “homem dos sonhos”?
Para a escritora Iara de Dupont, autora dos livros Crônicas para inspirar e despertar, a imagem do “macho alfa” atraente, poderoso e rico - como Massimo e Christian Grey - segue forte na sociedade, não apenas pela maneira como mulheres são ensinadas a buscar realização pessoal no relacionamento amoroso, mas também pelo peso da jornada dupla, profissional e doméstica.
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“A socialização feminina é direcionada ao romantismo e a algo mais perigoso: estamos cansadas, exaustas e cheias de obrigações, então a socialização nos induz a sonhar com homens poderosos e ricos, que tomem conta de nós e assumam responsabilidade por nossa vida”, explicou. “Então as mulheres assistem esses filmes e começam a sonhar com um marido que mande trazer a comida de helicóptero!”
Não por acaso, as cenas de sexo do filme reproduzem uma série de padrões ditados pela indústria pornográfica, e o consentimento feminino não é considerado - ou, no caso de Laura, a mulher é manipulada e agredida emocionalmente até ceder ao sequestrador. Para Iara, existe um interesse econômico nesse tipo de filme “romântico-violento”.
“É uma mistura nauseante, colocam o personagem como um homem atraente e que talvez ame a mulher, mas para ela ser amada precisa ter disposição de entrar nos jogos pesados dele”, revela a escritora, que recebe mensagens de diversas mulheres sobre experiências negativas em relacionamentos. “É uma violência com a mulher em todos os sentidos, sei de muitos namorados que usam esses filmes para convencer as mulheres a práticas sexuais que elas não querem”.
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Em entrevista à Rolling Stone Brasil sobre a romantização desse tipo de relação, a psicóloga Fabíola Luciano explicou a diferença entre retratar relações problemáticas e a romantização ou glamourização dessa dinâmica, como no caso de 365 Dias. “Quando vem de forma romantizada, existe uma tendência à justificar ou minimizar os comportamentos abusivos. Ou seja, o abuso é sempre apresentado como parte do amor, da intensidade da paixão”, pontuou.
“Estamos vivendo a ‘pornografização’ da existência humana, tudo é ligado a pornografia, que é uma indústria que move bilhões de dólares no mundo. Para ter mulheres como consumidoras, estão ‘comendo pelas bordas’”, continua Iara.
De fato, a pornografia se estabeleceu como um dos ramos mais lucrativos do entretenimento. Em 2019, apenas o Pornhub recebeu mais de 42 bilhões de visitantes, segundo dados do próprio site. O valor de mercado do domínio é estimado de US$ 2 bilhões, segundo levantamento do Worth of Web - pouco menos que o valor de redes sociais populares como Instagram e Twitter, estimadas por volta dos US$ 3 bilhões.
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Os dados do Pornhub sobre acessos de mulheres mostram um crescimento de 8% entre 2015 e 2019, e o público feminino do maior site de pornografia do mundo representa 32% do total. Aliada ao processo de socialização feminino, essa tendência pode explicar como, apesar dos avanços no debate público sobre relacionamentos abusivos, personagens masculinos dominadores e pouco preocupados com o consentimento feminino ainda encontram tanto destaque.
Na prática, a glamourização de abusadores na figura do galã desejável tem grandes riscos. “As mulheres já tem muitos problemas de autoestima e jogar um conteúdo onde elas não tem espaço para dizer ‘não’’ é muito problemático”, alerta Iara. “Seja no filme 50 Tons ou 365 dias, fica clara a posição da mulher: ela não tem voz, nem vontade. E qual o ponto em comum nas duas histórias? Os homens são milionários e atraentes. Qual a mensagem? Que se for assim tudo bem ser sequestrada e estuprada? Não se pode amenizar, relativizar nem romantizar um sequestro e um estupro”.
O sucesso comercial desse tipo de trama prova o longo caminho a ser percorrido até a violência contra a mulher ser repudiada pela sociedade. Como Duffy pontuou, qualquer filme que retratasse crimes como pedofilia, homofobia, genocídio ou "qualquer outro crime contra a humanidade", mas o mesmo ainda não acontece quando as vítimas são mulheres - infelizmente, a perseguição, sequestro e até estupro ainda são entendidos como amor. Cada vez mais, porém, existe uma parte da sociedade para negar essa mentira. Há muito trabalho a ser feito.
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