Em entrevista à Rolling Stone, o baterista do Nirvana comenta as gravações do disco derradeiro da banda, In Utero
David Fricke/ Tradução: J.M. Trevisan
Publicado em 29/09/2013, às 15h36 - Atualizado às 15h39“Há diversos modos de se analisar”, diz Dave Grohl sobre In Utero, último álbum de estúdio gravado por ele no posto de baterista do Nirvana, marcando a volta ao som mais punk depois do sucesso monstruoso e multiplatinado Nevermind (1991). “Você pode descrevê-lo como um grande feito.” Ele faz uma pausa. “E também pode lembrar dele como o produto de uma época completamente fodida.”
É manhã no 606, estúdio de Grohl no Vale San Fernando, em Los Angeles. No andar de baixo, na sala de controle, o produtor Butch Vig e membros do Foo Fighters estão se preparando para trabalhar na pré-produção de um novo álbum. No andar de cima, no lounge, Grohl marca o vigésimo aniversário de In Utero – lançado em setembro de 1993 e relançado este mês em uma edição de luxo, incluindo demos raras, faixas ao vivo e uma nova mixagem – com uma das mais longas e profundas entrevistas sobre os últimos dias do Nirvana e de seu desafortunado líder, o vocalista, guitarrista e compositor Kurt Cobain.
Na capa da edição 83 da Rolling Stone Brasil: In Utero, último disco do Nirvana, nasceu no Brasil.
Grohl e o baixista do Nirvana, Krist Novoselic, falaram bastante sobre In Utero e o trágico clímax do disco – o suicídio de Cobain com um tiro de espingarda em abril de 1994 – para a Rolling Stone EUA. O baterista foi especialmente detalhista em suas memórias sobre In Utero e sobre os vários sinais contidos nas músicas de Cobain. O que se segue é a conversa com Grohl, depois que ele mostrou à reportagem da Rolling Stone o 606 inteiro, incluindo um corredor dedicado ao Nirvana, repleto de cartazes de turnê antigos e discos de ouro e platina de todo o mundo.
Você entrou no Nirvana bem a tempo de tocar em Nevermind. Houve tempo para desenvolver uma ligação com Kurt?
Toda banda que eu havia feito parte até aquele ponto era formada por amigos que ou se juntaram para fazer música ou se transformavam em uma família durante as turnês. O Nirvana foi um pouco diferente. Conviver com Kurt era engraçado. Ele se isolava em vários sentidos, emocionalmente. Mas ele tinha uma natureza doce, genuína. Nunca deixava você desconfortável intencionalmente. Morar com ele naquele apartamentozinho apertado em Olympia, Washington, funcionava como um tipo de elo entre a gente. Mas era bem diferente da relação dele com Krist.
Por dentro do relançamento repleto de raridades de In Utero.
Como você definiria a relação deles?
Eu via Krist e Kurt como almas gêmeas. Os dois tinham uma compreensão mútua tão linda, silenciosa. Aqueles dois caras, juntos, definiam totalmente o Nirvana. Cada trejeito, todas as coisas estranhas do Nirvana vinham de Krist e Kurt. Acho que o fato de os dois terem sido criados em Aberdeen – por terem passado por experiências juntos nestes anos tão importantes na formação de uma pessoa – teve muito a ver com isso.
Musicalmente a química era simples. Tudo o que tínhamos que fazer era sermos nós mesmos. Quando você entra numa banda sem nem sequer ter conhecido os outros membros antes, tudo o que você quer é ser musicalmente contundente. Muitas vezes me senti um estranho no ninho. Estava acostumado a me ver cercado de gente conhecida desde que tinha 13 anos de idade. E de repente eu estava morando na porra de Olympia, com alguém que eu nem conhecia. Não tinha sol. Era só a música.
Fico sempre lembrando da primeira frase de "Serve the Servants”: "Teenage angst has paid off well” [“A angústia juvenil rendeu bem”]. Para você rendeu mesmo, com o Foo Fighters, este estúdio. Kurt poderia ter tido isso também. A principal vulnerabilidade dele era a incapacidade de ter prazer com as conquistas do próprio trabalho.
Não sei de onde isso saiu. Muita gente não considera o próprio trabalho válido. Porque é dela. Entendo isso. Conheço muita gente que não se sentiria confortável com toda a carga resultante de ser uma banda grande como o Nirvana. O que eu não entendo é não conseguir apreciar o simples dom de poder tocar.
Quando o Nirvana se tornou popular, a transição foi difícil. Você faz parte de uma cena punk underground com heróis como Ian McKaye (Fugazi) ou Calvin Johnson (Beat Happening). Deseja desesperadamente a aprovação destas pessoas, porque isso o validará como músico: “Sou para valer”.
Tive sorte, porque voltei para Washington, D.C, e vi todos os meus heróis me dizerem que estavam orgulhosos por eu ter virado uma porra de uma estrela do rock corporativo [risos]. Este peso foi tirado dos meus ombros logo de cara. Nunca me preocupei com isso. Talvez tenha algo a ver com a ansiedade do Kurt. Ele tinha medo que as pessoas da cena não aprovassem o que ele se tornou.
Você disse que as coisas foram estranhas para o Nirvana em 1992. Aconteceram ensaios mas poucas gravações e turnês. Voces estavam nesta posição incrível, de poder fazer o que quisessem, mas não sabiam o que iam fazer nem como.
A organização do Lollapalooza ligava: “Vocês têm que ser a atração principal do festival”. Fui ver o U2 tocar com o Pixies e fui arrastado até o camarim do Bono: “Vocês têm que sair em turnê com a gente”. O pessoal do Guns N’ Roses ligava. E eu ficava, tipo: “O que cacete está acontecendo?” Era bom para a gente não fazer muita coisa. Mas era como segurar um fósforo aceso e ficar só assistindo enquanto ele queima seus dedos. Era só uma questão de tempo até alguma coisa acontecer.
Estávamos gravando algumas músicas, uma para o single com o Jesus Lizard e uma cover do Wipers. Kurt disse: “Oh, tenho uma ideia para uma música”. E ele tocou “Frances Farmer” ["Frances Farmer Will Have Her Revenge on Seattle"]. E foi tipo: “Meu Deus, vamos gravar outro disco”.
Em que estágio estava a faixa quando ele a tocou pela primeira vez? Em que ponto ele trazia a música para mostrar?
Naquele dia, ele estava no meu porão. Ele disse “olha só isso” e tocou o riff. Também tocou “Very Ape”. Talvez tenhamos improvisado um pouco em cima no dia. Normalmente, quando o Nirvana fazia música, não havia muita conversa. Queríamos que tudo fosse surreal. Não queríamos nada certinho, calculado. Em uma música como “Heart Shaped Box” – a gente simplesmente começava a tocar e improvisava. Kurt tocava o riff, Krist encaixava o que ele estava fazendo, e eu ia acompanhando os dois. Entrávamos naquela dinâmica, de tocar alto, depois baixo, e aí alto. Muita dessa coisa de alto-baixo veio desse experimentalismo.
Como você lidava com o vício de Kurt?
Parei com as drogas quando tinha 20 anos. Nunca usei heroína ou comprimidos. Tomei muito ácido, fumei muita maconha, me diverti bastante. Quando se trata de narcóticos, é uma outra história. Não era algo do qual eu fazia parte, felizmente. O que não quer dizer que eu não me importava.
Não viajávamos mais de van, não fazíamos mais parte daquele clubinho. Era palpável uma certa distância emocional, mas de um jeito melancólico. Havia vezes em que ninguém falava nada o dia todo, embora estivéssemos em turnê e tocando. E aí a gente se trombava nos corredores e dizia algo tipo: “A gente deveria arrumar umas minimotos quando voltarmos para casa. Conheço uma trilha que a gente pode fazer, que sai de trás de casa”. Ou: “Aquele lugar que vende cortador de gramas também tem karts. Vamos comprar uns daqueles”. Havia esses momentos em que a gente se conectava emocionalmente.
E rolava? Chegaram a comprar os karts?
Claro que não [risos]. Nessas horas tudo o que você precisa é aquele momento de validação: ainda estávamos juntos.
O que você lembra das sessões de In Utero? Kurt estava usando heroína na época? Krist disse que achava que não.
Não sei, cara. Era um troço estranho. Estávamos isolados naquela causa, no meio da neve, em fevereiro, no Minessota. Gravando com Steve [Albini] – ele apertava o botão, começava a gravar, a gente fazia a tomada, e ele [bate palmas]: “OK, qual a próxima?” Espera, mas ficou bom?
Trabalhar com [o produtor] Butch Vig em Nevermind foi completamente diferente. Fizemos aquele álbum para ser exatamente aquele álbum. Estávamos empolgados para caralho. Havíamos passado tanto tempo praticando. Estávamos tão soltos e tão entrosados quanto era necessário.
Passamos por In Utero voando. Acabei minha parte em três dias. Tive mais dez dias para ficar sentado com a bunda na neve sem fazer nada. Depois que terminamos a parte instrumental, era a vez do Kurt gravar os vocais e overdubs. Lembro que todo mundo estava preocupado com o tempo de "Heart-Shaped Box”. Mas tocar usando metrônomo não é legal. Kurt e Steve tiveram uma ideia – a gente poderia usar uma luz strobo [risos]. Tivemos uma longa conversa sobre como a luz não iria ditar o tempo, e sim fazer com que o tempo fosse apenas implícito.
Ou iria hipnotizar vocês.
Eu disse: “OK, cara, o que quer que vocês queiram que eu faça, beleza”. Sentei lá por uma tomada ou duas com aquela porra de strobo na minha cara até praticamente ter uma convulsão. Eu disse: “Será que a gente não pode simplesmente tocar? Deixar fluir. É só não encanar”.
Ficou surpreso por Kurt querer gravar sua música “Marigold” durante as sessões de In Utero? É a única canção original em um disco do Nirvana em que ele não teve qualquer envolvimento na composição.
Compus a música em uma mesa quatro canais que havia na casa. Ele estava no quarto dele. Não queria acordá-lo. Por isso eu gravava as coisas sussurrando baixinho no microfone. Eu estava gravando a harmonia vocal do refrão, e a porta abriu. Ele disse: “O que é isso aí?” “É só um negócio que eu compus”. “Deixa eu ouvir”.
Ficamos lá sentados, tocamos algumas vezes. Eu fazia a harmonia mais aguda e ele fazia a grave. É engraçado compor em parceria. Eu nunca tinha feito isso. Componho para o Foo Fighters e depois a banda toca comigo. Mas sentar cara a cara com alguém é outra viagem. Não sei se ele já tinha feito isso alguma outra vez. Era como um encontro às escuras desconfortável. “Ah, você também canta? Vamos fazer a harmonia juntos então”. Eu era meio tímido na época também.
Fiquei envaidecido. Mas lembro, acho que foi Steve quem disse: “Talvez "Marigold" devesse entrar no álbum”. Fiquei apavorado [risos]. Não, não, espera. É tipo aquela piada: "Qual a última coisa que o baterista disse antes de ser expulso da banda? 'Ei, compus uma música'."
Obviamente, a faixa não entrou [“Marigold” saiu como o lado B de “Heart-Shaped Box”]. Fiquei feliz. Porque o álbum manteve a integridade da visão de Kurt. Mas fiquei incrivelmente envaidecido. “Sério, vocês gostaram mesmo?”
Lembra da última vez que viu Kurt e o que disse a ele?
Liguei para Kurt depois do que houve em Roma [em março de 1994, durante uma turnê europeia, Cobain tomou uma overdose de comprimidos e álcool em um hotel em Roma. O Nirvana voltou para Seattle, onde Cobain morreu um mês depois]. Eu disse: “Ei, cara, você deu um belo de um susto em todo mundo. Não quero que você morra”.
Depois o encontrei no escritório do nosso contador [em Seattle]. Ele estava saindo quando eu estava chegando. Ele sorriu e disse: “Ei, e aí?” E eu disse: “Te ligo”. E ele disse: “Ok”.
Há algo em In Utero que as pessoas devam ouvir e saber para entender Kurt melhor como homem e artista e menos como uma figura trágica? É difícil escutar o álbum do modo como ele pretendia que fosse, por conta da carga de tudo o que veio depois.
O álbum deveria ser ouvido como se tivesse acabado de sair. É este o meu problema com ele. Eu costumava ouvi-lo muito. E não ouço mais, por causa disso. Para mim, se você escuta o disco sem pensar na morte do Kurt, ainda é capaz de entender o sentido original. Como meus filhos. Eles sabem que eu fiz parte do Nirvana. Ele sabem que Kurt morreu. Não contei a eles que Kurt se matou. Eles têm quatro e sete anos. Por isso, quando eles ouvem In Utero, o fazem de uma perspectiva totalmente diferente – como ouvintes de primeira viagem, como era originalmente a intenção do álbum.
Um dia eles vão saber o que aconteceu. E aí o significado vai mudar. Foi o que aconteceu comigo.