Além de um bom elenco e time de filmagem, a série alemã tem uma excelente percepção de como contribuir e inovar com o gênero de viagem no tempo
Vinicius Santos Publicado em 26/06/2020, às 07h00
No começo de 2020, a plataforma online Rotten Tomatoes, que agrega notas e crítica de séries e filmes dos quatro cantos da web, realizou uma pesquisa com os usuários. Era uma competição de votos entre as séries originais da Netflix que público considerava as melhores em diversas etapas, até que a melhor produção exclusiva fosse eleita.
O páreo era duro. Tinha desde Stranger Things a Black Mirror, Peaky Blinders, Bojack Horseman, Narcos, The Crown, Mindhunter e muitos outros. Porém, surpreendentemente, a vencedora foi a complexa Dark, a primeira produção alemã da Netflix:
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Mas, como isso foi possível? Afinal, a história trágica dos habitantes da pequena cidade de Winden sempre arrancou elogios merecidos da crítica, entretanto nunca bateu os recordes de audiência noticiados pela plataforma como Stranger Things, nem conta com grandes celebridades no elenco como em Black Mirror.
Talvez o segredo do sucesso esteja inserido de forma mais sutil na produção assinada pelo casal Baran Bo Odar e Jantje Friese. Pois, acima de todos os concorrentes, Dark soube, com uma grande consciência e respeito por obras anteriores, inovar no gênero de narrativas com viagens no tempo, além de contar uma boa história.
Vamos então explorar alguns pontos-chave que fazem Dark se destacar das outras exclusivas Netflix. Sempre é bom avisar, para quem não assistiu, que a partir deste momento haverão spoilers das duas temporadas e um pouco do que se espera da terceira.
Antes de tudo, Dark sabe muito bem de onde veio e respeita essas origens, não só com referências inteligentes, mas com aspectos nostálgicos que são incorporados de forma dinâmica na produção.
Assim como no clássico De Volta Para o Futuro (1985) a substância que permite as viagens no tempo é material radioativo e, apesar de uma tecnologia como essas ser um avanço sem precedentes na história da ciência, o foco nunca deixa uma pequena cidadezinha na Alemanha, em um paralelo evidente a Hill Valley, o lar de Marty McFly e Doc Brown.
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Além disso, a franquia criada por Robert Zemeckis aborda, de início três períodos: os anos 1980, 1950 e o futuro (para a época) dos anos 2010. E Dark, intencionalmente, também passa por esses momentos.
As similaridades não param por aí. Uma mesma escola mostrada em épocas diferentes, com personagens encontrando os pais mais jovens e vendo como eles começam a namorar? Alusões a músicas e filmes similares na trilha sonora? Nada disso é mera coincidência.
Além disso, também existe um cientista excêntrico e que explica os mistérios que envolvem as viagens, na pele de H.G. Tanhaus (Christian Steyer), enquanto o garoto Jonas (Louis Hoffman) começa a jornada para salvar uma pessoa querida. São várias homenagens que agradam muito os fãs de sci-fi.
O respeito com a fórmula de colocar pessoas normais numa viagem através do tempo, entretanto, não impede que a série inove na receita clássica. Os ingredientes novos, como uma intricada trama de investigação policial e profundas doses de melancolia e filosofia são muito bem-vindos e mostram a ousadia dos showrunners.
"Quando começamos o show, obviamente não tínhamos certeza se conseguiríamos algum público, porque é uma narrativa incomum," disse Friese ao site Indie Wire, em 2019. "Não estávamos 100% convencidos de seriamos capazes de entreter as pessoas e em seguida provocar reflexões que o público levaria para conversas e teorias. Era nossa intenção, mas nunca esperamos tamanho sucesso."
A empreitada ambiciosa rendeu bons frutos justamente na área que os showrunners estavam mais inseguros. Segundo dados da Variety, 90% da audiência de Dark vem de fora da Alemanha.
“Narrativas ou histórias são sempre sobre comportamento humano e conexão humana. E mesmo que a cultura seja diferente em todo o mundo, há certas coisas que estão por toda parte. As mesmas pessoas riem, choram, nascem, morrem - apenas coisas humanas fundamentais.”, disse Friese.
Mesmo com um elemento tão grande como viagem no tempo presente na trama, ela nunca deixa de ser sobre sentimentos e conexões sobre pessoas. Essa decisão de manter o fator humano ao invés do científico é um dos grandes triunfos de Dark, por isso deve ser abordado separadamente.
Como dito antes, Friese e Odar queriam tornar a série global, mas sem tirar a identidade alemã. "O que é alemão? O que podemos colocar no programa - além de Segunda Guerra Mundial - parar expor ao resto do mundo sobre nossa identidade?" Esse questionamento do casal apontou eles a vários grandes filósofos nativos do país, principalmente Friedrich Nietzsche.
Algo que os showrunners assumem e que pode ser visto diversas vezes em Dark são cenas que incorporam o conceito eterno retorno. Para Nietzsche, toda a energia do universo irá se mover da mesma maneira infinitas vezes, criando um ciclo. O ciclo existe não só no portal que conecta 3 épocas separadas por 33 anos, mas também nas ações dos personagens.
Quando o Jonas adulto (Andreas Pietschmann) percebe que pode salvar a versão mais jovem de si mesmo de passar por todos os problemas até conseguir viajar de volta a 2019, ele decide repetir o ciclo e causar o início da mesma jornada trágica. Porque a meta dele só pode ser atingida através da repetição.
Essa transformação do eterno retorno é um elemento narrativo recorrente e que complementa a viagem no tempo de forma magistral. O policial Ulrich Nielsen também volta no tempo para resgatar o filho Mikkel, porém é a tentativa dele de pegar o criminoso que traumatiza o menino Helge a ponto dele se tornar o sequestrador de crianças no futuro. Em um esforço ambicioso, a ficção científica tenta explicar o pré-determinismo proposto pelo filósofo.
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Essas tramas que lembram tragédias gregas fazem público e os personagens questionarem o livre-arbítrio, assim como Nietzsche faz em sua obra. O próprio Jonas diz, em certo momento: "Não somos livres no que fazemos, porque não somos livres no que queremos. Não podemos superar o que está dentro de nós."
Conseguir conectar a estética alemã a temas filosóficos universais não só torna o programa atrativo para qualquer público, o que ajuda a explicar o sucesso da história no Brasil, mas também colabora para desconstruir os estereótipos sobre um povo nas produções audiovisuais, que, com muita frequência, voltam a bater na tecla do nazismo. Um respiro de originalidade era necessário e foi muito bem aceito.
Encarar Dark como uma simples história sobre viagem no tempo é, como também é dito nos episódios, olhar apenas para uma gota de um oceano muito maior, focado na humanidade em aspectos muito mais profundos do que estamos acostumados a ver.
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