Na reportagem de capa da edição 121 da Rolling Stone Brasil, filho, amigos e companheiros de banda traçam um perfil do vocalista do Legião Urbana, que morreu há duas décadas
Mauro Ferreira
Publicado em 13/09/2016, às 18h22 - Atualizado às 18h47Em 23 de julho de 1983, Renato Russo era quase um desconhecido em sua cidade natal, Rio de Janeiro. Fato que mudaria naquela noite, quando um show feito pelo Legião Urbana no projeto Rock Voador deixou alucinada a plateia que foi ao Circo Voador para ver Lobão, Capital Inicial e a então novata banda formada por Renato em Brasília no ano anterior. Quando a agitadora cultural Maria Juçá, produtora do projeto, foi ao camarim cumprimentar o Legião, se surpreendeu ao encontrar Renato quieto, recolhido, quase deprimido. Mesmo assim, rasgou elogios à performance dele no palco. “Ele me escutou calado e, muito sério, se voltou para mim e disse: ‘Eu não mereço isso. Esse carinho todo do público é muito maior do que o que eu ofereço a ele. Eu esperei muito por esse momento, por esse show. Chamei todos os meus amigos, mas agora não quero falar com ninguém’”, conta Maria. “Com um olhar deprimido, Renato me deu um abraço e, naquela noite, não quis nada além de se recolher à solidão dele.”
O episódio deu a pista do que seria dali em diante o comportamento controvertido e inusitado de Renato Manfredini Jr., cantor, compositor, músico e grande ícone do rock brasileiro. “Renato era do signo de Áries e tinha reações inesperadas como as de uma criança”, reitera Marcelo Bonfá, baterista do Legião Urbana e parceiro de Renato em canções há anos enraizadas no imaginário nacional.
Nascido na madrugada de 27 de março de 1960, em uma abastada clínica do Rio de Janeiro, Renato Russo morreu na primeira hora de outra madrugada, a de 11 de outubro de 1996, na mesma cidade – que, a essa altura, já sabia muito bem quem era o artista que se tornou espécie de messias pop da juventude dos anos 1980 e 1990.
Vítima de complicações decorrentes da contaminação pelo vírus da aids, Renato viveu apenas 36 anos. Tempo suficiente para deixar obra imortal, que será revitalizada a partir de outubro. Um álbum com regravações de músicas do astro por bandas da cena independente brasileira, reedições de discos, lançamentos de livros, montagem de peça escrita pelo artista e uma megaexposição, prevista para 2017, vão reavivar a obra e a personalidade de Renato 20 anos após a despedida do poeta.
A obra de Renato Russo permanece forte como o mito alimentado em torno da figura dele, um homem de temperamento ansioso e humores oscilantes. Mas ele era também, e sobretudo, um ser humano generoso, inteligente ao extremo e com sensibilidade à flor da pele. “Para mim, era como se o Renato fosse um irmão mais velho”, caracteriza Dado Villa-Lobos, guitarrista do Legião Urbana. “Ele era agregador no sentido de realizar ideias em comunidade. Renato era inteligente, perspicaz, um grande sedutor. As ideias e o discurso dele eram incríveis. Ele era catalisador, fazia com que as pessoas pensassem e produzissem mais.” Dado tinha 15 anos quando sentiu o sangue correr mais forte nas veias ao ver e ouvir, em 1980, Renato tocar guitarra em um show do Aborto Elétrico, banda punk de Brasília formada em 1978. Dado não poderia imaginar que, em março de 1983, seria convidado a ocupar o posto do guitarrista Ico Ouro Preto no Legião Urbana, a banda criada por Renato em 1982 após a dissolução do Aborto Elétrico (e depois de uma breve fase em que Renato se apresentou sozinho ao violão e com o epíteto de Trovador Solitário).
Embora constantemente o rondasse, a solidão nem sempre fez parte do cotidiano do poeta. Filho de Renato, Giuliano Manfredini lembra com saudade e emoção dos períodos lúdicos vividos com o pai no apartamento do bairro carioca de Ipanema que concentrava o acervo pessoal do artista, atualmente em processo de restauração pelo MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo. “O período em que morei com meu pai neste apartamento foia fase mais feliz da minha vida”, diz Giuliano, na sala do local, repleto de discos, livros e quadros. “Eu passava brincando por esta sala, desenhando, enquanto o meu pai compunha. Ele estava sempre com um papel e uma caneta na mão. Era um cara muito família, brincava comigo de cavalinho, de guerra de travesseiro, e lia muito pra mim. Também tenho várias memórias dele me levando para ver peças de teatro. Tinha esse lado paizão. Ao mesmo tempo, também era um pai tradicional, daquele que diz ‘isso não pode’. Ele sempre foi e é muito presente na minha vida. Eu acordo pensando nele, durmo pensando nele. Meu pai é o meu herói.”
Renato também tinha os próprios heróis. Os Beatles e os Rolling Stones, entre eles. Foi um garoto que amou as duas bandas inglesas na adolescência vivida nos anos 1970.
Crítico de Crítico de rock que conviveu com o artista nos bastidores de shows e gravadoras, o jornalista carioca Jamari França lembra o entusiasmo de Renato com o universo pop dos anos 1960, a ponto de ele ter juntado, ao vivo, “Gimme Shelter”, clássico dos Rolling Stones de 1969, com “Ainda É Cedo”, música do primeiro álbum do Legião Urbana, lançado em janeiro de 1985, sem alarde, no mês em que todos os olhos da imprensa musical estavam voltados para a primeira e histórica edição do festival Rock in Rio. “Renato tinha um fascínio grande pelo rock dos anos 1960 e 1970. Uma vez conversamos sobre isso no Noites Cariocas [extinta casa de shows situada no Morro da Urca, no Rio]. Ele me perguntou sobre a sensação de ter comprado aquele e outros discos na época em que saíram, quando a linguagem do rock ainda estava sendo escrita”, recorda França. “Renato dizia que os anos 1980, no Brasil, eram na verdade os anos 1960. Por isso, escreveu ‘Bem-vindos aos anos 70’ no encarte de V, o primeiro álbum lançado pelo Legião na década de 1990. No show daquela noite, ele me dedicou ‘Ainda É Cedo’ e falou que eu tinha comprado o álbum Let It Bleed [lançado pelos Stones em 1969] quando o disco saiu.”
Renato Russo, porém, nem sempre era afetuoso. “Ele era alegre, divertido, intenso, sensível e contestador. Mas também era perturbador. O telefone tocava de modo diferente quando ele ligava para falar sobre alguma coisa”, afirma Marcelo Bonfá. A perturbação poderia se manifestar no corte dos pulsos, como Renato fez em 1984, ou em um ataque de cólera como o presenciado pela produtora do Circo Voador, Maria Juçá, quando ela sugeriu que o Legião Urbana migrasse de Brasília para o Rio de Janeiro. A cidade concentrava as matrizes das grandes gravadoras e viver nela baratearia os custos das apresentações da banda no Circo Voador, palco então decisivo para a consolidação da carreira de qualquer grupo de rock no Rio e, por extensão, no Brasil. “Ele explodiu, dizendo que eu queria transformar o Legião em uma peça de alcatra, exposta em um açougue para ser consumida por um bando de famigerados. E que ele jamais permitiria isso, que não viria morar no Rio de jeito nenhum. Bem, eu fiquei puta e devolvi, dizendo: ‘Eu não quero te transformar numa peça de alcatra – você já é uma peça de alcatra e todos irão te consumir’.”
Maria foi profética: em agosto de 1985, o Legião acabou se mudando para o Rio de Janeiro. Nessa época, a banda já estava sendo “consumida” por milhares de ouvintes e compradores de discos. Após meses de quase nenhum burburinho em sua volta, o álbum Legião Urbana decolou espontaneamente, a reboque do estouro de “Será”, primeiro dos hits radiofônicos do repertório do disco. Na sequência, a gravação e a edição em 1986 do álbum Dois, de tom mais contemplativo, ampliaram o alcance – o número de hits cresceu e transformou o Legião Urbana não em uma peça de alcatra mas no filé-mignon da gravadora EMI-Odeon. Tanto que a companhia ignorou a crise de criatividade de Renato Russo como compositor e pressionou a banda a fazer o terceiro álbum em 1987. O impasse foi resolvido com a decisão de gravar o repertório do seminal Aborto Elétrico no álbum que veio a ser intitulado Que País É Este? 1978-1987. A faixa-título e “Faroeste Caboclo” foram feixes de pólvora que atearam fogo à relação já passional do Legião com o público em um momento em que o Brasil atravessava um turbulento processo de redemocratização e tentava domar o dragão da inflação.
“Renato tinha uma personalidade complexa, que, associada aos acontecimentos políticos e sociais da época, o tornou uma das pessoas mais emblemáticas da história da redemocratização do Brasil”, interpreta Marcelo Bonfá. Importância que, no entender do filho, Giuliano, não se dissolveu ao longo destes 20 anos sem Renato. “A obra dele continua atual. Quanto mais o tempo passa, mais ela vai ficando atual. Tanto que a música ‘Que País É Este?’, composta por meu pai quando ele tinha 15 anos, virou um hino de indignação nas recentes manifestações políticas do país”, argumenta Giuliano. “Renato entendeu que não podia passar a vida em vão e ajudou a criar uma identidade para o rock do Brasil”, completa Dado Villa-Lobos.
Você lê mais histórias sobre Renato Russo na Rolling Stone Brasil 121, que estará nas bancas a partir desta quarta, 14.
A edição também traz: um especial sobre Star Trek, com entrevista com Chris Pine, o atual Capitão Kirk, e uma análise sobre o que fez da franquia uma potência pop; bate-papo exclusivo com Angus Young (“Axl Rose tem sido muito bom para o AC/DC, se prepara, fica pronto para a ação. Tem que ser divertido para ele e para nós”); bastidores do novo disco do Green Day; reportagem especial: como duas empresas, uma brasileira e outra norueguesa, exploravam a Caatinga do Piauí usando mão de obra em condições análogas à escravidão, desmatando de maneira insustentável e sendo coniventes com a caça de animais em extinção; Rolling Stone Brasil 10 Anos, parte 3: uma retrospectiva sobre o que de melhor foi visto no cinema e na TV desde a chegada da RS ao país; MC Soffia, a rapper de 12 anos que foi destaque da abertura das Olimpíadas (“Quando eu vejo racismo, faço uma música. É meu modo de falar”) e discografia Motown, com uma seleção das vozes da lendária gravadora.