Em 2010, Robert Downey Jr. falava sobre a ascensão como Homem de Ferro, a turbulenta vida passada e mais
Redação
Publicado em 26/09/2020, às 10h00Acomodado em uma cadeira de náilon na praia de Venice, Robert Downey Jr. está vestido para que ninguém o incomode, com um suéter de lã preto com capuz e óculos enormes de lentes azuis, do tipo mosca, que o deixam igualzinho ao famoso retrato falado que o FBI divulgou do terrorista Unabomber.
Usa calça folgada, tipo pijama, modelo que a maior parte dos homens só veste quando todas as outras calças estão lavando. As roupas largas facilitam os movimentos - dão liberdade para se contorcer, se flexionar, se esticar, se agitar e até rolar na areia ou se deitar no chão e ficar olhando para o céu -, e isso ajuda Downey, 45 anos (em 2010), a descarregar sua energia turbulenta quando ele começa a falar sem parar. Sóbrio e cheio de sucesso, o pilar de bilhões de dólares de Sherlock Holmes e da série Homem de Ferro é pelo menos tão vibrante e ciclônico quanto o cara que aparecia nas capas de tabloide há uma década, chapado e cheio de problemas com a lei. Uma conversa com ele é uma tempestade de partículas nas profundezas do espaço, com parênteses dentro de parênteses, um jorro cósmico nada linear, mas não desprovido de sentido. Downey se recusa a seguir qualquer tipo de roteiro, nunca realmente chega a se concentrar, sempre engata na próxima ideia. Essa é a essência de sua mente e de seu espírito e, indubitavelmente, de sua genialidade enquanto ator.
"Vamos fazer associação de palavras", ele sugere.
"Viral", eu começo. Não sei por quê.
"Redundante", Downey responde. Não sei por quê.
"Esotérico", eu digo.
Ele faz uma pausa. "Abordável."
Me dá um branco. Esta brincadeira não é o jogo animado, como um exercício de atuação, que eu esperava. Talvez Downey só esteja cansado. Ele é um devoto sério de Wing Chun, um discípulo de kung fu, mas hoje está resmungando a respeito de uma dor no braço. Mas, por enquanto, ele está resistindo à tentação de tomar o analgésico Advil, reflexo de seu compromisso rigoroso com o auto aprimoramento totalmente natural.
Tento um caminho diferente: "Vaginal", eu digo.
"Parfait."
É perfeito. É mais do que perfeito. É arrepiante, elegante, sinistro. E veio a Downey sem pausa, como se esta delícia linguística absurda - "vaginal parfait", não consigo parar de repetir - já existisse no inconsciente coletivo, que ele simplesmente acessou e pegou.
As cortadas continuam, mas vão perdendo o vigor e empacam nas palavras "remorso" e "lambida". Downey, cujo dom artístico se baseia em instinto - em sua fé na obediência ao instinto; dê uma olhada em seu rosto negro contorcido em Trovão Tropical, uma atuação caprichosa de impulso, que se transforma em compulsão -, sabe bem quando precisa voltar ao X da questão.
O único problema é a dificuldade de definir exatamente qual é o X da questão. Homem de Ferro 2? Downey não toca no assunto. Mais tarde, quando o pressiono, ele diz que fazer o filme "foi a maior lição profissional da minha vida", o que me deixa com a sensação de que "lição", no caso, é um eufemismo para "provação".
Ele prefere se limitar a questões mais abstratas.
Quando faço uma pergunta a respeito de seu estado mental recente, a resposta é a seguinte: "Vamos colocar assim: eu estou no processo contínuo de transcender rituais baseados em medo". Peço a ele que esclareça a ideia. Ele se contorce todo na cadeira e deixa a cabeça cair para o lado, primeiro um, depois outro, daí mais outro. Os ajustes nunca param. Para Downey, que há muito tempo estudou balé e até hoje se move como bailarino - coluna arqueada, ombros retos, pés firmes, mas com leveza, pescoço duro, queixo erguido -, até pensar se torna uma atividade física.
"Será que envolve uma noção dispersa de pensamento mágico ou será que estou mesmo no fluxo?", ele diz, com modos que misturam o desapego meditativo e a conexão firme enquanto explica como os rituais que ele considera "baseados em medo" são diferentes dos outros. "Será que é espontâneo ou tem base premeditada em alguma espécie de necessidade de controle?"
Downey - o "novo Downey", com a urina limpa, que já é o "novo Downey" há tantos anos que se transformou no "Downey de sempre" - acredita no movimento de recuperação, na potência do pensamento positivo, na busca pela iluminação, na melhor das hipóteses. Antes de o dia terminar, ainda vou vê-lo abraçar e beijar sua parceira e mulher há cinco anos, Susan. É um abraço e um beijo de verdade, que exibe afeição verdadeira. Vou ficar em pé enquanto ele toca, no computador , uma música composta por seu filho de 16 anos, Indio. É uma música de verdade, de paixão e façanhas de verdade, e a absorção de Downey nela também é real.
O papo dele sobre iluminação e liberação se torna um tantinho mais inteligível, uma vez que você aceita o dialeto particular dele e o fato de que a cosmologia híbrida por trás dele é uma forma de música mental, e não um sistema absolutamente razoável.
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No momento, se você zerar a sua mesa, qualquer coisa é possível", ele diz, deixando a meu cargo concluir que, quando ele diz "a mesa" , está falando de algo parecido com uma mesa de mixagem, ou, talvez, a mesa mental que as pessoas usam para dispor suas perdas e ganhos na vida. Na mesma toada - elusiva, porém evocativa -, ele descreve uma fase da carreira por que passou de- pois dos anos de prática de auto imolação, de ficar se examinando constantemente: "No mundo de Joseph Campbell de não estar mais no caminho de ninguém, existe abundância, mas não acho que isso se some em nada mais do que sobrevivência na selva".
Tradução (imagino): ele estava só fazendo o que tinha de fazer. E ficou entediado.
O tao de Downey é vago e enigmático, mas seus princípios parecem render resultados. Uma vez que limpou e zerou sua "mesa", ele se preparou para o próximo estágio fazendo exercícios de flexibilidade artística reforçados por magia - para a mudança de fase dimensional que o transformou no que ele é agora, o astro de um filme de super-herói que tem tudo para ser uma das maiores bilheterias da história do cinema, o chefe de uma empresa de produção em ascensão (quando seus funcionários atendem o telefone, dizem "Team Downey"), e o dono de um prédio de escritórios ultramoderno em Venice e de uma enorme propriedade com jeito de Jardim do Éden de frente para o mar em Malibu.
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"Do ponto de vista da carreira, eu estava engabelando todo mundo", ele diz, a respeito dos anos anteriores a seu grande retorno. "Tem um pouco de Zodíaco aqui, um tanto de [o cineasta David] Fincher ali, consegui me virar com o seguro, e daí bum!" O "bum" era o papel principal em Homem de Ferro, que Downey cobiçava sem pudor.
A perspectiva de interpretar um super-herói de história em quadrinhos não lhe pareceu nenhuma ofensa contra a dedicação à complexidade que tinha lhe valido aprovação constante e credibilidade. Na verdade, ele considerou a oportunidade como um ultraje revigorante, "absolutamente viável nessa profanação", cujas repercussões lhe dariam um choque que o trariam de volta à vida - uma vida melhor. Então ele fez um pouco de conjuração de plano astral.
Antes de seu teste final para Homem de Ferro, ele construiu, de verdade, um "altar para a possibilidade do eu", usando "alguns objetos reunidos de maneira intuitiva" que incluíam uma foto do super-herói e - é aqui que a coisa fica assustadora - "uma varinha de pedra do sol".
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O jeito viajandão de Downey e suas respostas megaconceituais a perguntas básicas (sobre seu surgimento inesperado como o intérprete preeminente de grandes papéis icônicos, ele diz: "Adoro quando a lacuna menos provável se torna uma lacuna, porque isso me lembra de que as coisas não são tão proibitivas quanto eu penso que são quando estou no ponto morto") faz com que seja difícil entrevistá-lo de modo convencional, mas também faz com que seja uma delícia falar besteira com ele. Downey tem aquele tipo de mente cujas vozes da percepção estão sempre destrancadas, abertas para todo tipo de possibilidade absurda.
Será que ele acha que as drogas deveriam ser legalizadas? De jeito nenhum, nem a maconha, que ele chama de "a que mais acaba com a ambição entre todas elas" e classifica de substância "insidiosa", por ser considerada benigna. "Maconha, para mim, é pegar uma mesa angulosa, arredondar as quinas e depois ficar se perguntando por que você vive batendo os joelhos nela. Porque você a vê como algo diferente do que é."
Ele também tem visões surpreendentes a respeito da vida na prisão, cujas descrições na mídia são "bidimensionais", segundo ele, e dão ênfase a sua suposta brutalidade. De 1999 a 2000, Downey ficou preso devido a sua famosa incapacidade de zerar a mesa no que diz respeito aos narcóticos. "Quando a porta se fecha, você está a salvo", ele diz. "Na verdade [na prisão] você está no lugar mais seguro do mundo, a salvo de qualquer coisa que possa desviar a sua consciência de vida e morte." Isso desde que você não compre droga na prisão. "Se você seguir esses impulsos, vai ficar devendo muito para alguém que representa um risco tão grande à saúde pública que nem deveria estar na cadeia."
O sol quase se escondeu atrás do horizonte. Faz frio na praia, e Downey se enterra atrás do capuz e abraça a si mesmo com força. A conversa vai morrendo e nossa atenção se volta para um fato peculiar que se desenrola a metros de nossas cadeiras. O ajudante de Downey, um sujeito chamado Jimmy Rich, está agachado, preparando-se para lançar um modelo de foguete. Por quê? Não há explicação. Talvez seja uma tentativa educada de dar a um jornalista visitante uma metáfora visual chamativa da trajetória de Downey, de viciado a superstar. Ou talvez o lançamento seja só uma maneira de agitar os neurônios do patrão, que deixou de lado os narcóticos, mas ainda precisa de pequenas emoções para manter a animação natural.
O foguete está pronto. Downey se recusa a segurar o controle remoto, de modo que Jimmy se afasta da plataforma de lançamento e aperta o interruptor. Nada. Ele remexe em alguns fios, tenta de novo, e o míssil de brinquedo sobe assobiando em um arco platônico suave em cujo apogeu o paraquedas se abre e ele é capturado por uma brisa leve que faz o foguete retraçar sua rota lentamente, para pousar com suavidade na areia.
Downey fica maravilhado com o espetáculo. Ele praticamente levita da cadeira. Imaginar e manifestar desfechos mirabolantes faz parte do show dele hoje em dia. "Você fez essa porra funcionar", ele diz a Jimmy.
Esse foi o primeiro dia. Muitos princípios espirituais foram discutidos, muitas teorias de autoaprimoramento foram apresentadas e tudo acabou bem, com a aterrissagem no alvo de um foguete de brinquedo que parecia corporificar a nova e charmosa vida do astro.
Já o segundo dia foi um pouco mais confuso.
Meu plano hoje era encontrar Downey em seu quartel-general, um bunker modernista de concreto acima do solo cujo piso principal se assemelha a uma sala de guerra, tripulada por uma dezena de jovens tão relaxados que nem parecem estar trabalhando. Sua missão é divulgar aquilo que Downey chama de "a marca". Ele parece gostar do papel de executivo e saboreia o jargão da ciência da administração moderna tanto quanto a linguagem da mitologia psicológica quântica. Ele caracterizou seus motivos ao formar sua equipe "como uma tentativa de fazer uma estrutura se moldar à situação por meio de flexibilidade e pressão".
Mas nosso encontro não iria acontecer. Meia hora antes de eu sair para a entrevista, meu celular toca: "Aqui é o Downey", diz. Ele sobre uma manhã frustrante no escritório, sobre algum tipo de incômodo ou problema que acabou com a paciência dele, informa que está a caminho do meu hotel. Sua decisão impulsiva de se separar da equipe faz com que eu sinta certo carinho por ele, confesso, porque parece ir contra, de uma maneira humana demais, certas afirmações definitivas e duras que ele tinha feito ontem a respeito de autodisciplina e maturidade que fizeram com que eu me sentisse babaca, caótico e, de maneira geral, como um ser humano inferior em todos os aspectos.
Downey para na frente do hotel em um SUV Audi branco com uma aparência virginal e luminosa, desde os pneus pretos imaculados e sem poeira até o parabrisa tão limpo que chega a ser invisível, que talvez seja um modelo feito só para astros de cinema. Ele está sozinho: não tem motorista, nem assistente, nem está usando um capuz para esconder sua fama.
Ontem, ele era uma pessoa com um plano - ajudar o repórter fazer a seu trabalho, acomodá-lo em uma cadeira de praia, com um lançamento de foguete e uma cesta cheia de petiscos saudáveis -, mas hoje ele está em clima de "aconteça o que acontecer". Ele reclama do interfone novo e caro que acabou de ser instalado em sua casa. Diz que está faltando o recurso que ele mais desejava - um botão para colocá-lo em contato direto com o filho, Indio.
Ele reclamou com a mulher que a ausência do botão fazia com que o sistema fosse inútil para ele, e, quando ela pediu que ele se acalmasse, ele defendeu com agressividade sua prerrogativa de expressar sua opinião de insatisfação com um produto defeituoso pelo qual ele tinha pago muito dinheiro. Ele deixou a questão sem resolução, como explica para mim, porque tem uma sessão de terapia de casal marcada para esta noite. Downey reserva dois horários por semana - pagos adiantado - com um terapeuta que ele chama de "o melhor psiquiatra dos Estados Unidos".
Uma sessão é dedicada à manutenção do relacionamento com a mulher. A outra varia, é usada conforme a necessidade. Ele e Susan podem resolver o problema na sessão desta noite, ele diz. A perspectiva parece relaxá-lo.
O alcance do maquinário de resolução de problemas de que Downey depende para se proteger de suas próprias fraquezas e cagadas não é uma mera amenidade que faz parte do estilo de vida de uma celebridade. Não no caso dele, pelo menos. "As consequências de uma pequena escorregadela não são mais o que costumavam ser", ele tinha me dito ontem. "Não é mais coisa de criança."
A verdade é que, para Downey, coisa de criança nunca foi coisa de criança. Era crack, cocaína e heroína, julgamentos públicos, prisões. Seu primeiro casamento, com a atriz Deborah Falconer, afundou em tanta desgraça e conflito que Downey passou seu aniversário de 30 anos todo encolhido ao relento, em síndrome de abstinência de drogas, enquanto a mulher olhava enfurecida para ele. As quedas eram tipicamente seguidas por retornos que só faziam com que o próximo mergulho fosse mais fundo e mais assustador.
Parte do problema, estranhamente, era o profissionalismo e a resistência teimosa de Downey - ou talvez o orgulho que tinha disso. "Antes, você podia me jogar num carro, me levar para o set de filmagem, me dar um sanduíche de atum e eu era capaz de funcionar." Essa capacidade de trabalhar detonado "era a essência. Era a minha autoestima", diz. "É tão triste, é lindo. Fala muito sobre a condição humana. Existe alguma coisa nisso, que, de um jeito adolescente, é uma versão de honra."
Hoje, em vez de se estender sobre as ideias, os esquemas e as crenças que ele credita por acabar com seu período longo e pavoroso de extravagância, Downey parece disposto a refrescar suas memórias relativas a ele. Tomando o rumo do litoral, a bordo do carro novo cujo painel complicado o confunde, ele bota para tocar uma faixa obscura de Elvis Costello, "The Long Honeymoon". Ele sonha em colaborar com Costello algum dia para criar um musical ou um show, mas ainda precisa falar sobre a ideia com o músico. Pode ser que aconteça, pode ser que não. Downey é cheio de ideias e planos assim, incluindo alguns roteiros de filme bem detalhados, mas anda preso por uma agenda bem cheia, graças a sua capacidade de fazer dinheiro para quem o contrata, seu dinamismo e sua aparente imunidade à superexposição. Mais para o fim deste ano, ele começa a filmar a sequência de Sherlock Holmes. Também está fazendo um filme espacial em 3-D chamado Gravity, no qual ele vai fazer papel de um astronauta.
No carro, Downey explica o incidente no escritório que o irritou. Começou com sua decisão de cancelar a viagem anual da família ao festival Coachella. Havia razões logísticas para sua decisão, mas sua principal consideração tinha a ver com o filho: ele levaria Indio para passar férias na Itália em breve e achava que a excursão ao festival, que acarretaria faltas na escola, era um luxo em excesso. Downey não quer deixar o garoto mimado. Mas, antes que ele pudesse dar a notícia ao filho - notícia que, ele sabia, não seria bem aceita e exigiria que ele fosse firme -, um integrante do Team Downey ligou para ele e fez a fofoca. Downey sentiu que seus direitos paternos tinham sido usurpados, e fez com que o usurpador soubesse disso. O patrão não está feliz.
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Almoçamos em uma biboca à beira-mar onde Downey pede um refrigerante Dr. Pepper porque a bebida está ligada ao marketing de Homem de Ferro 2, e ele quer ser leal à causa. Eu interrompo o momento ao fazer a pergunta que a maior parte dos atores do calibre de Downey responde no afirmativo: ele tem o desejo de dirigir filmes? Na verdade, não. "O que você acha que eu tenho feito nos últimos cinco anos?", ele diz.
Alguns minutos depois, está apertando um botão para abrir o portão da casa que ele está reformando há quase um ano. Tem jardim planejado e é tão estilizada que chega ao ponto de parecer irreal, como se fosse cenário de um livro. Os caminhos no jardim são tão bem cuidados e definidos por limites tão certinhos que parecem estradas em miniatura da terra das fadas. O interior da casa não é tão bem acabado assim. Os aposentos ainda não estão totalmente mobiliados e, apesar de serem imaculados, parecem um tanto austeros.
Downey me acompanha em um tour pela linda e ampla propriedade, parando para bater papo com esquadrões de jardineiros que estão ocupados aparando, fechando buracos e cavando. Um deles indica indiretamente que um trator poderia ajudar em suas iniciativas, e Downey promete comprar um para ele imediatamente, então prossegue e diz: "Está vendo? Até as infrações são da minha conta". Acho que eu compreendo o estado mental dele. O fardo de ter os pés no chão e ser respeitável depois de estar, não há tanto tempo assim, perdido no espaço e notoriamente desprezível, talvez esteja pesando sobre ele. "O problema é que a gente precisa ter uma jornada dupla para poder agüentar toda a manutenção", ele solta.
No fim do terreno que dá vista para a estrada que acompanha o litoral, ele enfim dá uma dica do que a casa significa para ele, não como um imóvel impressionante, mas como um marco do modo como sua vida mudou de maneiras que devem lhe parecer majestosamente inexplicáveis. "Foi onde a coisa realmente azedou", ele diz, olhando para um trecho de estrada abaixo de nós. "Eu costumava passar naquele lugar com uma sensação de desgosto, de remorso amargo. Foi ali que joguei tudo fora porque eu estava doente. E agora penso: 'Ai, meu Deus, eu e a patroa vamos ficar aqui até os netos comparecerem ao nosso enterro. Nós sempre vamos estar aqui. Nunca vamos nos mudar, porra. Loucura'."
Falando na patroa, Downey diz que está na hora de voltar para que ele possa ir à sessão de terapia mencionada anteriormente, quando ele falou sobre o chilique que teve com o interfone novo que não servia: "Eu preciso explicar a minha reação à minha mulher durante 90 minutos, com um profissional especializado".
Quando Downey pega a estrada com o audi, as memórias que o incomodam e os traumas duradouros começam a jorrar dele de repente, sem aviso - uma cachoeira de palavras e imagens cáusticas, cômicas e catárticas que talvez estivesse rodando na cabeça dele o dia todo. Elas surgem com tanta rapidez, quase sem querer. Estamos de volta a 1996, o ano em que tudo caiu na cabeça dele: não só a lei mas a Justiça no sentido mais profundo. E o momento crítico, de acordo com a versão dele.
"Historicamente, isso é onde, anos atrás, em um Ford F-150, bem quando o sinal ficou verde, e eu tinha acabado de voltar de alguma interação odiosa com o altamente tóxico - você sabe, aquele tipo de mulher que vai fazer você ir preso depois de 16 horas fodendo ela? Nós tínhamos nos encontrado no dia anterior para jantar em um restaurante, e ela começou a se sufocar com uma espinha de peixe, e eu tive que ajudá-la a se desengasgar. Eu me lembro que era uma noite gloriosa, ela disse que um produtor musical a estava espionando - e eu nem liguei -, ela ficou brava por eu estar ficando louco, ela era cheia de limitações."
"Era mais ou menos meio-dia. Eu estava me sentindo pronto para voltar para casa. Eu precisava tomar cuidado com o carro, tinha uma arma nele. Eu estava acabado, voltei para a cidade, e ela fica brava porque eu continuava fazendo o que sempre fazia. Eu a deixei em casa, acho que continuava sendo espionada pelo tal produtor. Eu me sentia ótimo. Voltei para o carro com a arma. Eu só precisava chegar em casa em segurança, e bem, quando cheguei lá, estraguei tudo."
"Vi um policial que já havia me parado e feito o teste de sobriedade comigo duas vezes nos meses anteriores. Ele liga a sirene, manda que eu encoste e eu estava infringindo várias leis. Claro que o namorado do meu traficante pagou minha fiança, chegou com US$ 10 mil em notas pequenas, de 10 e 20. Quando voltei para casa, me lembro daquele cara que tem a única cocaína que tinha gosto tão bom quanto a que eu usava com o meu pai e Jack Nicholson desse fiasco todo de ter sido preso pela primeira vez, eu me lembro de que tinha feito festa antes de tudo isso, com o filho de um figurão local. Ele e os amigos chegaram com o Jaguar antigo do pai, que é tão rápido que os passarinhos não conseguem sair da frente. Eram riquinhos que gostavam de chapar, e eu tirei um pedaço enorme de heroína preta feito piche dos meus bolsos, coloquei em um prato de papel, esquentei um cabide, fiz o maior tubo da história, deixei os caras mais loucos do que eles podiam imaginar, ficaram acabados na minha sala durante dois dias, e daí eu fui preso. E fiquei pensando: 'Cadê toda aquela cocaína ótima?' E lá estava eu precisando me anestesiar como nunca. A mulher saiu fora, o filho deu no pé, a minha vida é uma ruína, e de repente eu fiz uma conexão neuropática de que não tinha nenhum outro lugar em que a coca podia estar além do lixo, e eu remexi naquela porra e lá estava, e era tão pura e tão limpa, e lá estava eu na minha própria cozinha, preparando umas pedras - nada de Vicodin, nada de Valium, nada para amenizar a sensação, mal tinha um restinho de Absolut Citron sobrando na geladeira, e eu simplesmente disse: 'Agora não tem como ficar melhor do que isso'. Simplesmente tinha que fazer 'bam!', triunfo do espírito. E, quando eu vi, estava em custódia dali a duas semanas, por razões ainda mais estranhas, e o telefone tocou e era o filho do tal figurão e ele disse assim: 'Ei, cara, você tem mais daquele ópio?' Eu, é claro, tinha dito a ele que era ópio. Nunca chame de heroína, é muito tabu. Mas aquela coisa, aquela meleca mexicana, simplesmente me pegou pelo coração e me dilacerou. Tantos anos cheirando coca, e daí eu me envolvo com heroína por acidente depois de fumar crack pela primeira vez. Finalmente serviu para amarrar os meus cadarços um no outro. Quando você se droga assim, fica indefeso. A única maneira de sair do buraco é por meio da intervenção do Estado."
Segundo dia, estrada Pacific Coast Highway em Malibu. Foi assim que terminou. Com Robert Downey Jr. contando a verdade - toda a verdade, e nada além da verdade, sem ter sido compelido por nenhuma autoridade ou juramento além de seu próprio apetite louco e frenético de resistir e evoluir - a respeito do que tinha acontecido antes que (tudo) finalmente pudesse começar.
Texto originalmente publicado na edição 45 da Rolling Stone Brasil
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