De Peito Aberto - Paulo Mancini/Divulgação

Segura de si e calejada das críticas, Marina Lima abraça uma nova fase e as mudanças no dom que por pouco não perdeu: a voz

Show intimista No Osso – Ao Vivo traz faixas que foram marcos na carreira da artista

CARLOS SARTORI Publicado em 13/03/2016, às 12h52

No escritório em São Paulo, cidade escolhida como lar por Marina Lima há seis anos, a cantora e compositora carioca surge vestida toda de branco, com um chapéu “à la Tom Jobim”, como ela própria define. Marina senta no sofá branco, enquanto uma música clássica cria o clima para a conversa. Com muita vontade de falar, ela quer contar detalhes do novo disco, No Osso – Ao Vivo, trabalho de uma carreira que se aproxima de completar quatro décadas e seu primeiro álbum só com voz e violão. Nele, ela foi buscar na essência da própria obra, na base do banquinho e violão, uma aproximação mais íntima com o público, que segundo a cantora pode não ter entendido as experimentações com sons e ritmos eletrônicos de trabalhos mais recentes. Ironicamente, Marina entende que foi com a música eletrônica que conquistou independência. “Sinto que estou cantando melhor, tocando melhor. Vinha em uma linha evolutiva e este disco diz: ‘Opa, para tudo!’ Agora eu vou retomar o meu caminho mais de arranjadora.”

Aos 60 anos, completados em setembro de 2015, Marina não lembra nem um pouco uma mulher que se consideraria de “terceira idade”. É moderna, provocante, tem prazer em se vestir bem – e em envelhecer. “Sempre gostei de ficar mais velha. Parece que tenho direito a mais coisas. Pago meia-entrada no cinema, entro na fila do avião na frente [risos]. É uma idade na qual você adquire certos direitos, passa a ser respeitada pela sua obra, estão vendo que não quer enganar ninguém.”

Marina Lima está feliz, mas cansada de responder sobre a qualidade da sua voz. Já esclarece de cara o motivo de ter produzido apenas em 2015 um disco solo ao vivo com voz e violão. “Não tenho nada pra lamentar. Essa é a minha voz, essa sou eu, é assim que toco. Quem gostar disso, bem-vindo. Quem não gostar, compra um disco antigo. Essa que sou eu, entendeu? Estou bem com isso.”

Na infância, a cantora queria trabalhar como maestrina. Começou a estudar violão ainda criança, aos 5 anos. Depois passou para violão clássico e seguiu o caminho acadêmico. “Descobri que tinha um estilo próprio e comecei a compor com o meu irmão [Antonio] Cícero. Eu com 16 e ele com 26. Isso mudou completamente o curso da história, percebi que podia fazer música.” Morando com os pais em Washington, nos Estados Unidos, os irmãos produziram dezenas de sucessos. No final de 1976, a cantora assinou com a primeira gravadora, a Warner. No ano seguinte, ainda Marina (sem o Lima), teve uma canção gravada por Gal Costa. “Meu Doce Amor” emplacou e, em 1979, ela lançou o primeiro disco, Simples como Fogo, que teve um grande impacto. Logo a dupla Marina e Antonio começou a ganhar respeito no cenário musical brasileiro e em poucos anos de parceria já tinham sido gestados vários hits: “Uma Noite e Meia”, “Fullgás”, “Pra Começar”, “Difícil” e “Três”. Eles faziam uma música pop sofisticada, elegante e que enriqueceu a MPB.

Foi no período em que morava nos Estados Unidos que Marina mergulhou fundo naquilo que viria a se tornar uma carreira. “Meus pais adoravam música brasileira e levaram muitos discos daqui. Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim... Eu ficava fascinada com aquilo. Depois veio Tom Jobim e a bossa nova estourou lá. Junto a tudo isso, tinha muitas rádios tocando Beatles, música negra, Stevie Wonder.” Mas a principal fonte artística de Marina está mesmo no violão. “Tive dois mestres. Um foi Baden Powell, eu era fascinada por aquele violão que não era só a bossa nova do João Gilberto. Ele solava. Depois que eu voltei para o Brasil, veio o Gilberto Gil. Não toco nem a metade do que eles tocam, mas os parâmetros são muito altos, o que me obriga a tentar estar à altura daquela gente.”

No começo da carreira, Marina virou musa e referência musical. Elegante e estilosa, passou a ditar moda e, nas capas de discos e revistas, a então adolescente mexia com a imaginação das pessoas. “Isso das fotos provocantes foi porque eu era muito nova. Não sabia nada disso, sabia da música. Era uma forma de se destacar, e não que eu achasse errado aquilo, mas eu não andava na rua daquele jeito.” No final dos anos 1990, foi capa da revista masculina Playboy, exibindo um corpo exuberante. Diz a lenda que recebeu um cachê de R$ 2,5 milhões pelo ensaio, o que ela nega. “Foi uma inquietude, eu enjoo de mim muito facilmente, sou virginiana com ascendente em virgem. Fico me reinventando, sou exigente.”

Bissexual, Marina já revelou publicamente ter transado com outras cantoras. A primeira relação homossexual foi com Gal Costa, ainda aos 17 anos, com quem se envolveu e teve problemas mais tarde, ao revelar o caso durante uma entrevista. Na adolescência, foi apaixonada por um primo e, quando descobriu que também queria beijar mulheres, a primeira coisa que fez foi contar para a mãe. “Ela era uma pessoa muito liberal, muito bacana. Aprendi muitos segredos das mulheres com ela. Sabia receber muito bem, com um charme danado.” A artista é filha de nordestinos nascidos no Piauí, “trabalhadores que deram uma boa educação aos filhos”, como gosta de enfatizar. “Meu pai não tinha dinheiro, mas tinha educação. Se formou em três faculdades.”

A cantora e compositora elegeu São Paulo para viver depois da morte dos pais e do irmão Beto, economista e praticante de várias atividades físicas que teve um infarto fulminante. A situação totalmente inesperada abalou a estrutura da família e Marina quis mudar de ares. Na megalópole sem praia, a artista curte a paixão pelo surfe na tela da TV. Fã desde pequena de atividades ligadas ao mar, aprendeu a surfar com Beto, que sempre ocupou o posto de atleta da família. “Estou felicíssima [com a situação do esporte no país]. Primeiro porque temos litorais lindos. E os caras que ganharam o mundial de surfe são paulistas, o Mineirinho e o [Gabriel] Medina. O Beto foi um dos primeiros surfistas do Brasil com prancha longa. Ele sempre me ensinou tudo devagarinho.”

Outra onda da cantora em São Paulo é curtir e compartilhar mensagens nas redes sociais. Nos perfis dela é possível ler sobre os campeões mundiais de surfe, gostos pessoais e perceber o quanto a cantora odeia o jogo político, em especial o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. “Eu não coloco pra provocar, não! Estou dizendo o que eu acho e volta e meia tenho que bloquear umas pessoas que me xingam por isso”, diz. “Realmente falo mal do Cunha. Ele acha que temos que aguentar isso, é um burro. Pra mim é o pior de todos. Não gosto de gente diabólica.”

Faz parte da personalidade: Marina dá a cara a bater, não se omite e gosta de deixar clara a sua posição política, mesmo quando a pergunta é sobre lei de incentivo ou arrecadação de direitos autorais, um velho inimigo dos artistas brasileiros. “Pra mim não tem o menor sentido o cara pegar dinheiro [de patrocínio] e fazer um show com ingressos caros, e a lei de incentivo dá a ele esse direito. Mas ideologicamente ele está equivocado!” Eleitora de Lula e Dilma Rousseff no passado, ela não demonstra arrependimento e analisa a atual crise. “Nunca entendi tanto de política como agora, não tinha ideia de que eles manipulavam tanto em todas as esferas. Tive que acabar entendendo na marra esse espetáculo deprimente que é a política. Não me arrependo, mas eu não sou mais PT. Agora eu já estou no Psol.” Pensando sobre a mulher mais poderosa do Brasil, Marina defende a saída de Dilma da presidência, mas não na base da truculência. “Não acho que a Dilma seja ladra. Acho que pode ter errado, não foi ágil, foi péssima negociadora. Por mim, ela renunciaria. Sei que ela acredita no que está falando, mas não é uma pessoa competente para isso.”

O tão comentado “fla-flu” ideológico gerado pela crise e a intolerância vigente no país têm sido um ponto de incômodo para a artista, que ficou chateada com o incidente ocorrido recentemente com o amigo Chico Buarque. O cantor e compositor de 71 anos foi insultado por jovens na saída de um restaurante no Leblon, bairro de classe alta no Rio de Janeiro, por causa do apoio dele ao PT. “Sinto a maior compaixão pelo Chico, pois é um homem educado, tão discreto, tão na dele. Tentou lidar com isso de uma maneira educada e aquele bando de garotos mal–educados ficou dizendo que ‘quem é do PT é ladrão, uma merda...’ Eu acho o fim.” Falar sobre a cultura no país também deixa a artista em uma situação desconfortável. “Está tudo tão caótico, mas por experiência própria [risos] eu sei que é da crise que tudo sai. A arte é você mergulhar no abismo, correr risco.”

Enfrentar situações difíceis é com ela mesmo. Marina já encarou diferentes problemas profissionais e sempre planejou saídas a partir do que mais gosta de fazer. “Em uma época eu estava em crise com a minha música e pensei que posso dar aula de linguagem midi, de como compor. Morrer de fome eu não vou. Está tudo muito difícil para todos. Só para o sertanejo que não, só para quem tem muito dinheiro”, brinca, afirmando estar por fora do que acontece na nova cena musical. Bom, nem tão por fora assim. “Thiaguinho é um grande cantor, um dos melhores do país. Não é o meu estilo, mas esse cara é bom, um golaço.” Ela também rasga elogios à cantora baiana Ivete Sangalo. “O Brasil é um país das cantoras. E o Chico disse que a Elizeth Cardoso é a mãe de todas elas. É lindo isso. Ivete estudou canto, quer se tornar uma grande intérprete, entrar na tradição dessas grandes cantoras. No [programa da Globo] Especial Ivete, Gil e Caetano dá para ver isso.”

Marina lima está de novo na pista e quer ser ouvida. A função de professora, ao que parece, ficará para outra vida. A voz mais deliciosa da MPB ficou rouca, diferente, muitas vezes difícil de entender. Os problemas com as cordas vocais quase tiraram a cantora de cena, mas ela não desistiu. Partiu para novos projetos e aos poucos superou o erro médico que afetou seu instrumento de trabalho. Marina só falou disso publicamente em 2013, quando era senso comum que a depressão havia sido responsável por prejudicar a garganta dela. A cantora precisou treinar por horas para retomar suas habilidades. Por isso, No Osso é, para ela, a prova definitiva do resgate da carreira. “Um disco desse meio que zera. Para quem não me conhece e quer me conhecer agora, vai me conhecer do osso. Para quem já me conhece, estou voltando a esse ponto para ver se conhece mesmo – e se gosta mesmo de mim, me quer perto. Se não me quer, é livre, entendeu? Fiz de propósito.”

Sem Medo de Se Expor

Show intimista No Osso – Ao Vivo traz faixas que foram marcos na carreira de Marina Lima

Quatro anos após o lançamento de seu trabalho anterior, o ótimo Clímax, Marina Lima ressurge com um novo CD, gravado ao vivo, com 14 músicas, sendo duas produzidas em estúdio. Uma delas é o sucesso de Elvis Presley “Can’t Help Falling in Love”. “Passei um período cantando quando meu amor foi para Portugal. Era um modo que tinha de aplacar a saudade”, diz. O álbum foi registrado no Sesc Belenzinho, em São Paulo, em maio do ano passado, e traz canções que foram decisivas ao longo da carreira de Marina. Tudo acompanhado pelo violão, sua fonte de criação e instrumento com o qual tem intimidade há 55 anos. Dentre os parceiros, o irmão dela, Antonio Cícero, se destaca, aparece em três faixas. Em “Não Me Venha Mais com o Amor”, com Adriana Calcanhotto, Marina quebrou o protocolo do acústico e colocou guitarra, bateria, programações, baixo e teclado. Ela explicou ao público que tem intimidade com o ritmo eletrônico e prometeu que vai resgatá-lo no próximo trabalho. O registro ao vivo da voz não é o mesmo de alguns anos atrás. Mas a coragem da cantora em se expor para o seu público, com banquinho e violão, mostra que o problema da voz, para ela, está mais do que superado. “Essa sou eu. Se eu tivesse algum grilo com isso eu não gravaria um disco com voz e violão.”

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