Neste aniversário de 45 anos de Marisa Monte, relembre nossa matéria de capa com a cantora
Ademir Correa Publicado em 01/07/2012, às 15h48 - Atualizado às 16h21
Texto publicado originalmente na edição 7 da Rolling Stone Brasil, abril de 2007
A cidade planejada ferve em um calor árido, seco. As ruas estão vazias - as pessoas não costumam ser encontradas caminhando e os hotéis são mais baratos nos finais de semana. Da janela do meu quarto, vejo carros andando pelos eixos em direção às asas de Brasília. Extensas áreas verdes e quarteirões com arranha-céus obras de arte, disfarçados de prédios públicos, marcam uma arquitetura original que guarda as principais decisões do país. A chuva cai, ligeira, para aliviar esta noite que parece inabitada, fantasma.
Vou em direção ao Ginásio Nilson Nelson (local que já recebeu o fenômeno mexicano RBD), falta exatamente uma hora para o início de Universo Particular. As filas estão inquietas e os fãs escolhem inúmeras opções do cardápio da praça de alimentação ao ar livre montada próximo ao estacionamento - caldo verde, caldinho de feijão, hot dog na chapa, x-egg, salgados fritos e todos os tipos de bebidas alcoólicas baratas e batidas especiais feitas de bebidas alcoólicas baratas. Entro no recinto e procuro meu assento, numerado. Na platéia, uma faixa tremula com os dizeres "Marisa, quero sua palheta" e alerta para os novos tempos da carioca que se lançou como intérprete (Marisa Monte, 1986), mostrou-se, aos poucos, como compositora (Mais, 1991, Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão, 1994, Barulhinho Bom, 1996, Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, 2000) e como produtora (Omelete Man, de Carlinhos Brown, 1998, Tudo Azul, da Velha Guarda da Portela, 2000, e Argemiro Patrocínio, 2002), consolidou sua parceria com Arnaldo Antunes e Carlinhos em um disco (Tribalistas, 2002) que todos buscavam explicações ou especulavam sobre a criação de um novo movimento para a música brasileira e resolveu, depois, tirar do forno álbuns simultâneos (Infinito Particular e Universo ao Meu Redor, 2006), o primeiro, pop, ampliando seu time de parceiros (Adriana Calcanhotto, Marcelo Yuka, Seu Jorge), e o segundo investigando mais a fundo o samba (do passado e do presente).
O público, aficionados das cadeiras de pista e empolgados das arquibancadas, consome pipocas com groselha, cerveja e doses de uísque com a mesma e democrática paixão pelo ícone que esperam ver. As conversas entre adolescentes, jovens adultos, pais (ou pessoas com cara de) e avós unem uma heterogenia bem-vinda, tropicalista, unânime em relação a uma artista que já foi considerada para poucos, para muitos e para muito poucos. "Aqui no Brasil, ela é a Madonna. Estou dizendo isso no nível da bolsa de valores de um show", dispara Leonardo Netto, empresário de Marisa. "Fomos atrás dos desejos da patroa, que estava certa. Há cerca de 20 anos, ela pede para cantar e tocar vendo sua banda, com todos juntos, como em um ambiente de ensaio", esclarece Cláudio Torres, da Conspiração Filmes, que divide a direção do espetáculo com a própria cantora e seu manager. Na hora marcada, palmas rompem o burburinho das conversas e gritos de "Começa" são entoados como o ponteiro de segundos de um relógio. O show deve atrasar 15 minutos porque a aglomeração na entrada está confusa. Olho para trás e vejo uma multidão furta-cor. "Em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices", máxima deixada para a posteridade pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues.
As luzes se apagam.
Os ânimos se ascendem.
Os acordes de "Infinito Particular" são reconhecidos. A iluminação oscila entre blecautes e focos iluminados que anunciam Marisa Monte no centro, tocando e cantando. Esse jogo de mostra-não-mostra permanece até o último verso. As luzes, enfim, iluminam a protagonista da noite. "Pensar um show dela faz parte da minha vida desde 1986. É como uma cachaça. Eu me orgulho de ser uma das pessoas que dizem 'não' para a mocinha, apesar de usar esse privilégio muito poucas vezes", confidencia Torres.
O palco adquire ares de sétima arte. "Esta é a turnê dela, conceitualmente, mais amarrada. O nome é perfeito. E a gente abre no escuro, no infinito", comenta Netto. "Acho que a música é mais importante. Não quero me colocar em primeiro plano. Mas, mesmo na penumbra, ainda sou eu. Não preciso ficar no foco do canhão - e dessa vez nem tenho um - na hora do solo da guitarra, entendeu? Gente, o cara solando e eu fazendo o que na luz?", indaga Marisa, esclarecendo o fato de ficar sentada, em um formato (que parece) acústico. As músicas viram cenas. "Todas as estruturas que vemos, gruas, trilhos, são as mesmas dos sets de filmagem", corta Torres. "Queríamos atmosferas, ambientes. Para mim, era uma sala de estar", imaginou Marisa. "Eu e o Cláudio fizemos vários desenhos da cenografia, da disposição de palco. E tudo o que mostrávamos, ela não gostava. Chegou uma hora em que falamos: 'Tá bom'. Pegamos um papel: 'Desenha aqui o que você quer'", ri Netto. "Alugamos o teatro da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] durante um mês e ficamos internados lá. Depois, fizemos sessões para alguns amiguinhos e ouvimos as opiniões."
Ela segue cantando e tocando. Na ordem, "Universo ao Meu Redor", "Carnavália" e a percepção de que esse atípico momento-ginásio é muito mais do que o rendez-vous de uma crooner que une cuidado erudito e apelo popular. "Você está apresentando uma coisa de categoria e o povo mergulha naquilo", emociona-se Netto. "É lindo, eles são o verdadeiro espetáculo", esclarece Monte, lembrando a energia de sua animada platéia brasiliense. "Vilarejo", canção (de Infinito Particular) que adquire atmosfera de sonho de hoje, apresenta-se: Vem andar e voa / Vem andar e voa / Vem andar e voa.
No Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, espero, junto com Daniela de Lamare, produtora editorial da Rolling Stone, pela aterrissagem do vôo 3929, que, assim como o show, está atrasado em 15 minutos (o que soa quase como uma pontualidade). O painel eletrônico informa que a aeronave encontra-se no solo. Na área de desembarque, o motorista que nos guia finge que fala ao Nextel e encosta-se no PT Cruiser preto que acabamos de alugar. Ele está cercado de amarelinhos, os fiscais multadores da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). As esteiras de bagagem giram enquanto buscamos indícios de nossa convidada entre os recém-chegados. Passam, apressados, a cantora Zélia Duncan, a atriz Marília Pêra, o casal de atores Bruna Lombardi e Carlos Alberto Ricelli e o músico Alceu Valença. Todos se encaminham para seus respectivos táxis. Fazemos sinais de espera e ansiedade para o motorista - que bate o dedo no relógio indicando que teremos problemas por estacionar em local proibido. Marisa e sua irmã, Livia, caminham em nossa direção. Ela está de calça jeans escura, sandálias de salto alto grosso e uma blusa branca acinturada. Acena de longe. Trocamos cumprimentos cordiais, entramos no carro e pegamos o trânsito de São Paulo rumo à rua Oscar Freire, no bairro dos Jardins. Marisa atende o telefone, diz que chegou bem e decide com Leonardo Netto, fiel escudeiro, quem irá receber, por ela, o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de "Melhor Artista de 2006". Desliga o celular e pergunta se gostei do show. Respondo que acho curiosíssimo o fato de estar diante de sua versão musicista (ela toca quase o tempo inteiro). "À medida que fui compondo, ficou muito natural. Tocar um instrumento é como uma linguagem, tem um sotaque, as palavras que você usa", esclarece. "Para ela, é muito rico quando a cantora, a compositora e a musicista viram uma coisa só", resume Netto. Nelson Motta (produtor do Marisa Monte, o debut de 1989) dá sua versão: "Como é tímida, Marisa gosta da possibilidade de se esconder atrás de um instrumento, estar protegida por ele e, ao mesmo tempo, se sentir mais integrada aos rapazes da banda [Dadi, baixo, violão e guitarra, Marcelo Costa, bateria e percussão, Mauro Diniz, cavaquinho e violão, Carlos Trilha, teclados e programações, Maico Lopes, trompete e flugel horn, Marcus Ribeiro, cello, Pedro Mibielli, violino, Pedro Baby, violão e guitarra, e Juliano Barbosa, fagote]. Afinal, é dona do show".
Estacionamos no hotel Emiliano, onde uma suíte espera pela (a partir de agora, reconhecida pelos funcionários do estabelecimento como) Senhora Monte. Ela é abordada por uma turista italiana, troca algumas palavras e entramos no elevador que nos levará à suíte 1401, toda planejada em tons terrosos. Sentamos em um sofá de couro, olho no olho, e falo sobre ela ser porta-voz, ao vivo, em disco e clipe (com flagrantes devastadores do cotidiano que não queremos ver), de "Vilarejo", traçando um paralelo entre o mundo utópico possível x a calamidade pública real. "A única solução é misturar. Enquanto a gente estiver se estranhando - ficar judeu para cá, árabe para lá, pessoal do asfalto e da favela - não resolve. E o amor é uma porta para isso. É ter compaixão, se colocar no lugar do outro. Quando você assiste a Promessas de Um Novo Mundo [documentário, dirigido por Justine Arlin, Carlos Bolado e B.Z. Goldberg, que mostra crianças palestinas e israelenses, praticamente isoladas em Jerusalém, falando sobre o medo de viver entre os conflitos no Oriente Médio], pensa: 'Caralho, aquela realidade foi construída em cima de muito preconceito, muita desinformação'. A gente [classe artística] planta idéias de melhorias. Ou as pessoas mudam sua atitude ou não vai rolar. Precisa ser feito um raciocínio sobre o jeito como o ser humano escolheu viver neste planeta e que não se sustenta mais", prevê. Sua personalidade, seu carisma e sua figura são tão marcantes que começo a acreditar que ela arrastaria multidões em defesa do que quer que acreditasse. Neste show, também volta a defender "Segue o Seco" (de Cor de Rosa e Carvão). "Ainda é atual, cada vez mais, com o aquecimento global. Em 1991, o Brown me deu 'Segue o Seco' e praticamente me intimou a gravá-la porque achava que era fundamental que falasse sobre esse assunto cultural brasileiro, já tratado em verso e prosa na literatura, no cinema, no teatro. É triste também ver que ela faz muito sentido hoje."
Enquanto ela reflete sobre problemas mundiais e sustenta sua tese de que qualquer mudança deve começar do individual para o coletivo, me pego observando Marisa, que usa o gesto como uma linguagem. Seus movimentos de braço são quase dança para as palavras e sustentam uma argumentação - já ouvi até essas partituras corporais sendo chamadas de "marisismos". Inteligente, estudou canto na Itália, vê entrevistas como (parte do) processo que a leva ao palco e responde (essa é a impressão que se tem) como se estivesse em um eterno brainstorm de si mesma - a mulher forte e decidida caminha, com desenvoltura, pelo difícil mundo da subjetividade, uma zona vulnerável, frágil e imprevisível. Precisa analisar a carreira olhando de dentro, ao mesmo tempo em que sabe que tudo o que expressa tem o peso de quase duas décadas dedicadas à arte. Canceriana de 1º de julho de 1967, pensa o tempo inteiro - parece se envolver com afinco em questões criativas e não está interessada em matemáticas e fórmulas de mercado ou lucro fácil - e reforça seus pontos de vista no campo dos sentimentos.
Quando fala, procura a cumplicidade, mira os olhos, não consegue ficar exatamente parada ou blasé. Não se deixa invadir, mas expõe-se artisticamente. Imagino as manobras de preservação de vida pessoal que deve ter empreendido nestes 18 anos de estrada. "Ser famoso é uma coisa gravíssima e as pessoas lidam com leviandade. É um narcisismo muito louco", afirma. "Preciso mostrar minha casa para me comunicar com meu público? Ela vai emocionar alguém? Vai melhorar o conceito que as pessoas têm de mim?", dispara, indignada, como se estivesse imaginando o momento exato e a sensação que sentiria quando uma equipe de bisbilhoteiros batesse a sua porta. "Gosto mais de cantar do que de trabalhar com minha imagem, senão estava fazendo playback na televisão e tirando muitas fotos", admite. Para seu empresário, a questão é maior: "Ela não está aí para ser uma celebrity, ficar rica".
Ao mesmo tempo que defende a liberdade de reclusão, estamos falando de uma cantora que mostra suas criações em DVD, no qual abre um momento delicado de sensibilidade em uma espécie de Big Brother Brasil dirigido por ela mesma (e por seus colaboradores). "Temos tentado mostrar essas brechas - você consegue chegar um pouco mais na intimidade dela", esclarece Netto. Marisa é categórica: "A intenção é o 'fazer música', o encontro com o parceiro. Tem um lado de como o artista se coloca, é visto, se insere e é inserido dentro da mídia que é desconectado do trabalho - parece que ninguém faz nada, só vai de uma festa para outra. Peraí, não acordo, tomo um champanhe na banheira e vou cantar. Trabalho pra caramba, inclusive quem quiser seguir essa carreira, vai logo se ligando, é muita ralação, entendeu?" Dica anotada, questiono se hoje ela ainda se dá, ou tem, o direito de ir e vir. A réplica vem de bate-pronto: "Não abro mão de andar sozinha - porque artista não anda sozinho, né? - Gosto de ter autonomia. Mas existem algumas situações que me intimidam. Estou na estréia de um show e os fotógrafos ficam tirando fotos sem parar, os flashes incomodando as mesas ao lado. Fico constrangida, acho uma desproporção. Onde vai sair isso tudo? E não posso pedir para eles maneirarem, senão publicam a notícia de que mandei parar. Por ser muito discreta, isso soa quase como uma provocação". De alguma forma, ela também já esteve atrás das lentes, no disco Memórias, Crônicas, quando se mostrou em cliques e descobriu as peripécias de uma câmera digital. Mas existe uma forma de parar com isso tudo? "Às vezes falo para os caras: 'Vem cá, 1 da manhã, quarta-feira, vamos tomar um chope, relaxa, você está trabalhando demais'", descontrai, "mas o fato de ser famosa não me incomoda. A exploração oportunista da minha imagem de uma forma deselegante, mal-educada e grosseira é que é muito chata". Imagino o quanto uma reportagem descritiva, cheia de rubricas com ações físicas e estados emocionais oscilantes possa mexer com tamanha introspecção. Sigo, e penso em abordagens de rua, seguranças, veículos blindados e a parafernália que pode cercar uma pessoa pública e mantê-la dentro de um mundo-bolha. "Imagina, no Rio, vou a todos os lugares que quero, passeio no centro. Nem sou tão reconhecida assim", dá de ombros.
O Rio de Janeiro é uma memória viva do último dezembro, na platéia do especial de fim de ano de Roberto Carlos - um programa que povoa nossas mentes e controles remotos e é esperado com força de retrospectiva. No Claro Hall, no Shopping Via Parque (Barra da Tijuca), a platéia se distribui. São convidados especiais, seguidores e fã-clubes. Na entrada da casa, atores da Globo, disputadíssimos. Sônia Braga causa tumulto, Sidney Sampaio fala alguma coisa em seu ouvido e se mantém sorrindo, algumas aspirantes de Malhação clamam por reconhecimento e todos sucumbem à entrada simpática de Grazielli Massafera, a Grazi, a ex-BBB que se destacou por ser "uma de nós". A cantora Ivete Sangalo, na segunda fileira, conversa calmamente enquanto meninas tentam tirar a todo custo um instantâneo ao lado de Fernanda Lima. Os blogs travaram uma disputa sobre o possível dueto de Marisa e o Rei. Alguns arriscavam repertório, outros diziam que havia uma questão contratual em aberto. A certeza era a de que Monte dividiria atenções com Erasmo Carlos e Wanderléa, Jorge Ben Jor e MC "Se ela dança, eu danço" Leozinho. "Faz tempo que queria cantar com ela, mas nossas agendas nunca conciliavam. É uma das maiores estrelas do país", diz Roberto Carlos ao anunciar Marisa, que entra no palco, visivelmente nervosa, mas pronta para um dueto que vai imortalizar "Amor I Love You", dela, e "Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo", dele. "Dessa vez, não deu nem tempo de relaxar. Entra, canta com o Rei, sai - o Roberto, a gravação, o ambiente. Tudo podia acontecer. Claro, dava para repetir e tal... Mas, na hora, fiquei com aquele friozinho na barriga. Depois, vi no ar [no dia 16 de dezembro] e foi tudo bem", comenta, aliviada. "Roberto é muito coloquial, tem uma clareza, uma característica que amo", assume a fã, "e a gente conhece de cor toda a obra dele", justifica, realizada por também ter deixado uma composição sua no inconsciente coletivo.
"As músicas são do mundo mesmo, sou um pouco da opinião do Carlinhos e do Arnaldo. É claro que você não pode deixar que sejam canibalizadas", afirma o empresário Leonardo Netto. Mas elas envolvem direitos autorais, acordos de parceria, estratégias de visibilidade e execução e mercados paralelos que acabam rompendo com tudo isso e ainda discutem uma realidade de subempregos e a própria permanência de uma mídia de tão fácil cópia como o CD.
Marisa, qual a sensação de encontrar, no camelô, um Greatest Hits seu, um disco que você não fez, por R$ 5?
"Tem vários. E eles são muito bons [solta uma risada]. Até já me pediram um autógrafo em um", ela recorda.
[Repito a pergunta, insatisfeito, não acreditando no fato de ela encarar uma discrepância como essa com tamanha naturalidade e leveza.]
"A gente não tem o controle de nada nesta vida", esbraveja. "Se fosse fazer um 'Best Of', seria diferente daquele. Não lido com isso, só observo, não vou para a rua recolher. Às vezes, compro um. Tinha uma época em que a gente pegava vários e mandava para a gravadora [mais risos]. Mas ninguém pode fazer nada. Quando você pensa que sua obra está sendo usada para talvez gerar meios de promover o crime organizado... Mas o fato de todo mundo poder comprar meu disco na esquina, acho o máximo. Adoraria que ele custasse R$ 5", surpreende, "só não teria como fazer isso porque pago imposto, direitos, produção. É até caro para o pirata vender por esse preço, porque ele não tem gasto nenhum", põe tudo na ponta do lápis. "É um descalabro. O Brasil, para ser importante no mundo, vai ter que resolver isso", condena Netto. "É um problema do governo, da polícia, não acho que artista deve fazer passeata, tem é que lamentar", continua o manager, em alto e bom tom para que sua denúncia seja gravada. "O CD se desvalorizou muito. O preço cobrado na loja é distante do que ele realmente vale", salienta Marisa.
Uma conclusão ousada para quem lançou, em 2006, dois trabalhos simultâneos - por mais que essa tenha sido uma decisão, e uma necessidade, puramente artísticas - Infinito Particular (eleito o segundo melhor disco de 2006 pelo jornal The New York Times e o quarto melhor CD latino pelo Chicago Tribune) e Universo ao Meu Redor (Grammy Latino de melhor disco de samba/pagode). Ela esclarece: "Não teria feito nada diferente, foi honesto, legítimo, cabível. Tinha material e decidi gravar dois. Não ia ficar esperando oito anos para lançar outro". Nelson Motta concorda que "ela não pensa em mercado, mas sim em seu público imenso" e comenta seu preferido: "Gosto mais até do de samba, acho mais inovador, audacioso e, ao mesmo tempo, mais clássico. Ele está entre os melhores da carreira de Marisa como cantora e compositora." Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), Infinito ficou em 12º e Universo em 13º entre os 20 mais vendidos de 2006 (o primeiro foi Minha Bênção, do Padre Marcelo Rossi, lançado pela Sony/BMG) em um ranking que apresenta trabalhos que não foram exatamente lançados no ano passado. Infinito teve uma venda bruta, divulgada pela EMI, de 298.327 cópias, enquanto Universo alcançou 285.670. "Achei excepcional, de uma força enorme. Se um ia concorrer com o outro? Fizemos ouvidos moucos e ficamos cegos a esse tipo de preocupação", analisa Netto. Monte enumera seus feitos e dá um basta no assunto: "Enfim, empate técnico. Quando vejo isso, me vem à cabeça: 'Teve um que vendeu mais e nem achava que ele tinha uma vocação diferente'. Para mim, os dois eram muito diretos, quem gostasse de um, e gostasse de mim, ia gostar do outro. Nunca me baseei pela indústria ou não teria demorado dois anos para gravar o primeiro [Marisa Monte] ao vivo. E como foi um sucesso, quem sabe deveria ter feito outro ao vivo para seguir uma lógica do que dá certo? Sei lá. Não quero simplificar, busco sempre algo que seja uma novidade. Isso me instiga. Ouço as pessoas todas e vou pela intuição".
Universo particular (estreou no dia 27 de abril de 2006, no Teatro Guaíra, em Curitiba, Paraná) é um espetáculo em que Marisa apresenta, pela primeira vez, repertório de seus dois últimos álbuns e de Tribalistas - um êxtase pop que alcançou a glória também pelo caráter confidencial envolvido em seu lançamento (estima-se que tenha chegado a uma vendagem de mais de 1 milhão de unidades). "Isso foi esperto. O público está cheio de discos superproduzidos e ávido por proximidade. A estratégia foi o não-marketing, sem coletiva, sem show, sem televisão, confiando no boca a boca, ouvido a ouvido. Desmentiu muita besteira que se diz sobre discos caros, supermarketeados e que não dão certo", avalia Nelson Motta, concordando em ver esse álbum como um marco na carreira solo do trio: "Nele estão algumas músicas à altura de seus clássicos individuais. E, sem dúvida, juntos, eles conseguem somar o melhor de suas qualidades e diferenças. Parece pacote de marketing: uma cantora carioca bonitíssima, um intelectual paulista talentosíssimo e um fabuloso músico negro baiano. Sonho de um publicitário [heheheh]." Netto vê o lado subjetivo - "A coisa mais feliz é quando uma liga de composição dá certo, é um milagre" - e acha importante ter levado a proposta até o fim. "Todos queriam vê-los no palco, mas não dava. O projeto foi criado assim, os três iam entrar no estúdio, gravar, fazer uma entrevista com o Nelson [Motta] e o disco seguiria sua carreira. Ela queria testar se isso funcionava. Mas as tentações foram horríveis, eram cantos de sereia enlouquecedores, pedidos do mundo inteiro, valores milionários que ofereciam... Mas a gente sabia que tinha que se manter fiel àquele princípio. A longo prazo seria mal, perderia a credibilidade." Para Marisa, a consolidação desse triunvirato da criação veio acompanhada de despretensão e despudor: "Foi um exercício total de perda de cerimônia com os instrumentos. E saí do primeiro plano. Dividia todas as questões, tocava todos os instrumentos, as músicas eram inéditas. Isso, com certeza, me deu vontade de pensar minha carreira de outra maneira. E tinha o show. Como ia apresentar as músicas do Tribalistas, em que gravei todos os violões, e não tocar ao vivo?"
Até agora foram cerca de 80 Universos Particulares e ela prepara-se para mais uma fase da tour - já passou por várias cidades do Brasil, dos Estados Unidos, por alguns países da Europa e tem datas confirmadas na Austrália (Sydney, 21 e 22/05), no Japão (Nagóia, 26/05, e Tóquio, 29 e 30/05), na Coréia do Sul (Seul, 01/06) e na China (Macau, 05/06). Por mais conhecida e aclamada internacionalmente que possa ser, a percepção estrangeira também ganha um quê de conquista - "Não sei o que a gente vai encontrar em Seul. Não é um lugar que deve ter tantos brasileiros nem um circuito de música brasileira. Quando me deparo com um público nunca antes navegado, é como uma página em branco. Caramba, os caras não conhecem a 'Maria de Verdade' (de Cor de Rosa e Carvão). Posso cantar 'Beija Eu' (do Mais) que não reconhecem. Ainda encontro pessoas que estão me vendo pela primeira vez, não sabem nada, não acham nada, não têm preconceito. Dá aquele prazer maravilhoso de ser novidade, porque já não tenho isso aqui no Brasil", maravilha-se. E para criar essa percepção toda: "Estamos cientes de que, mesmo ela ganhando cachês relativamente médios - como os do Caetano Veloso - na Europa e nos Estados Unidos, eles ainda são menores do que os cachês nacionais", contabiliza Netto. "Tenho 35 pessoas viajando e 10 toneladas de cenário. Podia pôr Marisa em um palco vazio que ia lotar. Mas não é o caso e isso você só faz se o artista tiver o impulso de querer gastar dinheiro para fazer um belo show. O lucro é menor, claro, e não dá nem para calcular um preço pelo investimento. Você pensa de acordo com o mercado, até onde ele suporta. Todo mundo sabe que um show da Marisa Monte em um teatro é caro, como um do Chico Buarque também é." E ele ainda lamenta uma realidade do movimento estudantil da falsificação: "Hoje em dia, a gente vive uma situação muito chata com a meia-entrada, que virou uma praga. Qualquer pessoa tem uma carteirinha, as rádios distribuem. Estamos penalizando os que não são estudantes para ganhar um equilíbrio, e isso é generalizado. Temos agora uma associação de todos os empresários artísticos, a Abeart, e estamos tentando mudar essa situação. Não acabar, mas moralizar".
Depois de mais de duas horas de entrevista, Marisa de Azevedo Monte continua atenta, faz pausa para conversar com sua irmã, que pergunta se a cantora quer ver o cardápio vegetariano sobre a mesa. Ela volta para o sofá e dispara: "Não sou nada em termos absolutos. Sou para cada um, o que me dá uma despreocupação em relação a agradar a todos, a 'opinião dos outros'. Se conseguir me mostrar inteira, não me violentar, está valendo", suspira. "O objetivo da minha vida não é ser uma grande estrela. Quero ser feliz", ela repete a sentença em mais uma entrevista e o enunciado vira praticamente um mantra. "Tenho certeza de que, daqui a 20 anos, a importância de Marisa vai saltar aos olhos. Ainda não é uma coisa cantada aos versos, mas será", Netto faz previsões, "as pessoas demoram muito. Na década de 1980, Cazuza e Renato Russo foram criadores únicos que tiveram reconhecimento prematuro por circunstâncias de vida. Como a Cássia [Eller], que, para mim, era uma das maiores do Brasil, junto com Marisa, Adriana - formavam uma trindade das jovens maiorais. Hoje, as pessoas já se deram conta da falta que a Cássia faz". Com um pensamento, e uma visão artística livre, semelhante à de Maria Bethânia, a Senhora Monte segue seu rumo. "Marisa só faz o que quer, quando quer e com quem quer. É dona de sua gravadora e de todos os masters de seus discos, de sua editora, tem controle absoluto da carreira", conta Motta. Cláudio Torres assina embaixo a estima que nutre pela amiga de longa data: "Ela tem uma função na história da música brasileira. Uma artista muito culta em termos musicais, com gosto pela pesquisa, uma ponte entre o passado e o futuro. É a prova viva de que, com talento e muito trabalho, é possível determinar sua própria trajetória".
Os adoradores a seguem. procuram, e publicam, notícias sobre seu paradeiro - o site de vídeos YouTube já tem trechos de suas performances atuais, segundos depois de ela sair de cena, além de recordações de outras turnês e clipes - e acompanham hits que foram parar em telenovelas da Rede Globo - como as mais recentes incursões de "Infinito Particular", em Pé na Jaca, "Pra Ser Sincero", em Cobras & Lagartos, e "Para Mais Ninguém", em Páginas da Vida. "A novela torna a música mais acessível, dá visibilidade. Não tenho preconceito, fico feliz com a escolha, mesmo não sendo uma grande telespectadora. O público que assiste talvez nem ouvisse meu disco, então convido-o para fazer outras coisas", esclarece. Marisa Monte alcançou o importante status: todos querem ouvir a opinião dela sobre qualquer coisa. Mas isso não afasta o controle, e o rigor, que dedica às suas escolhas profissionais e verdades. Desafio Marisa a pensar: "Qualquer coisa que você fizer vende ou, no mínimo, desperta a curiosidade alheia?". Contrária a esse tipo de argumento, ela levanta com um olhar que condena meu atrevimento: "Não concordo mesmo. Posso fazer qualquer coisa? Posso fazer tudo, então? Não é assim. Não acredito que cheguei nesse estágio... Isso não existe, nem para mim nem para ninguém... Pode ser até que desperte o interesse, mas isso tem seu lado ruim se a coisa for ruim. Só aumenta meu critério, minha dedicação. Porque todo mundo vai ver. Um erro meu adquire grandes proporções".
São 17h e a possibilidade de almoço é iminente, estávamos sobrevivendo de papo e água. Pegamos um elevador dispostos a saciar a fome, Livia e Daniela juntam-se a nós - durante a entrevista, elas alternavam conversas entre descidas para fumar. Sentamos em uma mesa que nos coloca a uma distância gigante (semelhante à real?). Peço um sanduíche difícil de cortar com garfo e faca; ela acaba escolhendo uma sopa de mandioquinha e uma salada de salmão, enquanto conta que assistiu ao show dos Rolling Stones em Nova York, no Beacon Theatre, o mesmo lugar onde depois se apresentou. Discutimos a forte presença dos musicais nos teatros paulistanos, ela comenta as diferenças entre os estados brasileiros e ressalta o alto nível de leitura que se atribui aos gaúchos. Explico que alguns atores testam seus novos projetos em Porto Alegre à espera de uma resposta de um público que se comporta também como crítica. Ela encontra espaço para conversar sobre a realidade das revistas, as casas de espetáculo com show de mesa e chegamos ao fato de a Senhora Monte ser mãe (Mano Wladimir, seu filho com o músico Pedro Bernardes, nasceu em 2002, junto com Tribalistas, e a acompanha em algumas viagens). Sem doces, apenas cafés, ela resolve tomar um banho, sobe, enquanto fico conversando com a gerente do cinco estrelas em que Monte sempre se hospeda quando vem a São Paulo. Algum tempo depois, desce com uma sacola que carrega um vestido, encontramos seu manager no lobby e nos dirigimos à porta de saída. A cantora percebe seu entorno: "O que estamos esperando?", pergunta. Aponto para a direita e digo: "O carro", que vem nos pegar para uma reunião.
Na capital federal, Marisa Monte volta ao palco, pós-bis, e dá seu último recado:
Bem que se quis /
Ela brincou, dividiu o local em coros distintos e fez com que todos acendessem os celulares para um baile de vagalumes tecnológicos.
Depois de tudo ainda ser feliz /
Pediu: "Que Deus ilumine a mente de todos lá no Congresso".
Mas já não há caminhos pra voltar /
As luzes se apagam e uma lanterna clareia a saída da Senhora Monte.
"O que é que a vida fez da nossa vida? /
Emocionados continuam o hino:
O que é que a gente não faz por amor? /
"A Marisa vai ser importante porque ela aprende tudo muito rápido', Netto repete a frase dita por Caetano na época do Mais.
Mas tanto faz...
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