Mike Flanagan parece querer agradar a todos no novo filme, de Stephen King a Stanley Kubrick - e acaba se perdendo na própria confusão
Yolanda Reis Publicado em 10/11/2019, às 14h00
Mike Flanagan enfrentou dois desafios ao aceitar dirigir Doutor Sono, sequência do clássico O Iluminado. O primeiro, fazer um filme que, cinematograficamente, se igualasse à aclamada obra criada por Stanley Kubrick em 1980.
E ainda desenvolver tudo isso respeitando o livro de Stephen King no qual o filme se baseia. Isso provou-se, ao mesmo tempo, o ponto forte do filme, e o gatilho para que ele soe estranho e dividido.
Flanagan parece querer reparar o desagrado que Kubrick deixou em King. O Iluminado, embora aclamado pela crítica especializada e um clássico de gerações, não agradou o escritor do livro.
O diretor, em 1980, tirou alguns dos elementos mais irreais para tentar fazer um terror mais plausível (tão plausíveis quanto criaturas sobrenaturais podem ser). Doutor Sono não ligou para isso, e investiu muito mais na área fantasiosa da inspiração - mas engatando, também, uma homenagem ao filme antigo.
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Justamente isso pode soar estranho. Não há uma narrativa muito sólida. O filme varia entre o infantil e o terror clássico, entre uma direção bem autoral de Flanagan e uma homenagem de fã a Kubrick. Doutor Sono é dois filmes diferentes em um só - e pode confundir um pouco a mensagem final.
Um pouco depois de sair do Hotel Overlook com a mãe, Danny Torrance encontra-se em desespero. Por causa do brilho que tem dentro dele, os fantasmas do local o perseguiram. Ele aprende, eventualmente, a lidar com isso - mas não quer brilhar mais, pois para ele significa apenas sofrimento.
Quando cresce, tenta afogar isso no álcool e em sexo irresponsável. Mas percebe que precisa ajeitar a vida depois de um tempo, e se muda para uma cidadezinha, na qual vai trabalhar no hospital e usa o brilho dentro de si para ajudar doentes.
Ao mesmo tempo, um pouco longe dali, Abra Stone, uma criança de uns quatro anos, descobre que tem poderes mágicos. Ela consegue mover objetos e, com a mente, se comunicar com Danny - mesmo ele estando bem, bem distante. Mas a mente é perigosa, e quando a garota tem lá pelos 13 anos, a “magia” ganha o aspecto do brilho - e ela começa a ver o que não gostaria.
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Nos sonhos, de noite, Abra sem querer espia o grupo vilanesco Verdadeiro Nó. Mas as atividades deles incluem sequestro, tortura e assassinatos de crianças. Rose, a Cartola, manda-chuva dos “vampiros de brilho” percebe a presença da menina na mente dela. Agora, está em perigo. E Danny precisa ajudá-la.
Talvez quem mais representa as mensagens de sentido dúbio - infantil e aterrorizante ao mesmo tempo - é Rose, a Cartola (Rebecca Fergusson). É uma vilã vampiresca, belíssima, que traz em si a sensualidade e a inteligência de personagens como ela. É extremamente ótima e hipnotizante - rouba o brilho de todas as cenas que aparece - e sua aura misteriosa faz prender a respiração.
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Mas, ao mesmo tempo, poderia ser só uma moça malvada que aparece num pesadelo que faz uma criança molhar as calças de noite. E isso não é pela sua personalidade - e sim pelas escolhas questionáveis que fizeram para sua aparência.
Um item, no geral, tira um pouco de credibilidade da vilã: a cartola que usa. O elemento é essencial para uma adaptação fiel do livro, mas Ferguson poderia ter pensado em outra maneira de aplicá-lo. Por que são raros os adultos que associam o medo a uma cartola- e o sentimento fica esquecido dentro do chapéu.
A narração infantilizada faria sentido se esse fosse, na verdade, O Iluminado - e quisesse mostrar os terrores de um Danny criança. Afinal, ali seria realmente um pesadelo infantil. Ou faria sentido se Doutor Sono quisesse mostrar apenas os medos enormes de Abra (Kyliegh Curran), pois ela é, ainda, uma criança - com apreensões e pesadelos infantis, apesar da coragem e determinação. Mas esse não é o filme. Ele tem um Danny Torrance adulto (Ewan McGregor), e para respeitar isso, não pode focar em aspectos infantis - precisa crescer, assim como o personagem mostra que fez logo no início do filme.
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Flanagan até tenta explorar esse lado mais adulto e aterrorizante da vida de Danny. Mostra, por exemplo, as visões de cadáveres que o atormenta. No formato da mãe. De uma moça que conheceu por aí. Moscas voam e pousam em olhos opacos - causando nojo, aversão, e incômodo em quem vê - e medo em Danny. Há o terror do homem, sempre latente. O que não faz sentido quando contrastam cenas que poderiam ser totalmente leves. Como Rose tentando invadir os sonhos de Abra, e voando livre no céu estrelado, mergulhando nas nuvens, como um Peter Pan amaldiçoado.
Por isso, não dá para saber bem quais foram os objetivos dessa narrativa. Misturandoo fantasioso ao pé no chão, e horrores com leveza, perdeu um pouco de cada um dos dois - caiu no limbo de ambos. E de nenhum.
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Mike Flanagan é inegavelmente um ótimo diretor. Deixou claro em A Maldição da Residência Hill - levou fôlegos diferentes para cada um dos episódios. Os ângulos de câmera, velocidade da narrativa, e a ocultação dos detalhes mais óbvios faz de seus trabalhos terrores divertidos e inteligentes. Doutor Sono não foge disso.
O filme é cativante. A câmera se alinha ao roteiro para contar a história. Os giros estonteantes do mergulho no brilho. A falta de gravidade, numa reviravolta, te avisa que aquele é um plano de ideias. Cada recorte num lugar ideal. Uma marca de Flanagan - que ele descarta durante quase metade do longa, quando insiste em brincar de Kubrick.
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É natural que uma sequência de um clássico lembre dele. Seria até estranho assistir Doutor Sono sem uma lembrança de O Iluminado e suas cenas icônicas - os corredores de tapetes geométricos, os sinistros elevadores, os bastidores do Hotel Overlook, a máquina de escrever enlouquecedora. São imagens gravadas na mente, e de certo modo, cabia a Flanagam relembrá-las.
Mas, assim como Jack Torrance, o diretor acaba se perdendo dentro do prédio e virando outra pessoa quando está ali. Se ele tenta relembrar algo de O Iluminado, muda o estilo do Doutor Sono - e assume as câmeras de Kubrick. Percebe-se bastante a diferença no jeito de lidar com as cenas - o que, assim como os elementos de cena, ajuda a criar dois filmes em um só.
Flanagan não precisaria abrir mão do estilo próprio para relembrar Kubrick, pois o visual icônico do clássico filme, por si só, faria isso por ele. Mas o faz. E fica esquisito - parece confusão e medo. Apreensão, talvez, de desagradar os fãs do filme clássico. Ou então, seguir o aspecto mais conflitante de Stanley Kubrick, e acabar decepcionando Stephen King, criador da história. Parece que tenta juntar tudo em uma coisa só - mas cai no limbo de fazer ambos. Talvez a bifurcação seja, afinal, inevitável.
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