Violência policial? Abuso de poder? Manipulação de informação? Líderes usurpadores? Sim, eles já se posicionaram de forma bem direta sobre tudo isso, e só não entendeu quem não quis
Igor Brunaldi Publicado em 08/07/2020, às 07h00
Recentemente muitos fãs do System Of A Down (agora possivelmente ex-fãs) foram às redes sociais para demonstrar insatisfação com o grupo. Nesse dia, eu, como um fã desde a minha adolescência, fui preocupado verificar o que havia acontecido, esperando pelo pior e já me preparando para nunca mais dar play em um disco dos caras.
Porém, me deparei com uma multidão reclamando de uma das características que mais me cativa até hoje no som deles: as mensagens explicitamente políticas cantadas de forma criativa enquanto aquela paulada sonora rola de fundo.
Antes de continuar, vamos tirar essa pedra do caminho: Sim, nos últimos dias o baterista tem demonstrado (agora sim, pasmem:) afinidade e suporte a Donal Trump, assim como enfrentamento à legitimidade do movimento mundial Black Lives Matter, ou Vidas Negras Importam.
Isso até agora tem deixado muita gente confusa, afinal de contas, John Dolmayan (que entrou na banda em 1997 para substituir o baterista original Andy Khachaturian) está há 23 anos em uma banda que canta explicitamente sobre tudo que vou evidenciar ao longo desse texto. E não é pouca coisa.
Pronto. Vamos continuar.
Obviamente existe muita gente que não entende as letras por não saber inglês, e nesse caso, a revolta por descobrir o teor das músicas em 2020 é totalmente justificável. Mas esse certamente não era o caso da grande maioria dos revoltados.
Então se antes você não entendia por causa da barreira da língua, espero que, ao terminar de ler esse texto, tenha uma base bem concreta de todos os assuntos que o System Of A Down literalmente berrou durante 26 anos e cinco discos. Se essas descobertas fizerem você passar a odiá-los, justo.
Mas caso a sua revolta com a banda seja porque simplesmente nunca se deu o trabalho de prestar uma mínima atenção em um único refrão, então esse texto tem o objetivo de mostrar detalhadamente o quão incansável esse grupo criado em 1994 por quatro descendentes de armênios sempre foi em se posicionar explicitamente contra:
Genocídio, religiões manipuladoras, guerras, capitalismo opressor, manipulação de informação, políticos (de forma quase que generalizada inclusive), líderes usurpadoras, estupro, abuso de poder, manipulação de informação, propaganda, Hollywood, concentração da renda mundial nas mãos da menor parte da população, nacionalismo, a guerra contra as drogas, sistema carcerário quebrado e opressão violenta por parte de policiais racistas e covardes. Ufa.
Logo de cara, na primeira faixa do primeiro disco, a banda expões claramente um descontentamento profundo contra o uso que políticos fazem da religião, e da forma como até mesmo os líderes religiosos fazem promessas vazias aos fiéis, com o bem-estar pessoal em mente.
No primeiro verso de "Suite-Pee", o vocalista Serj Tankian sutilmente desafia a concepção universal de que Jesus foi homem, referindo-se a essa figura pelo pronome "ela".
I had an out of body experience
The other day, her name was Jesus
And for her, everyone cried
Everyone cried, everyone cried
Em seguida ele canta, ainda assumindo a feminilidade de Jesus e se referindo à filosofia dela, um verso que deve ser lido como uma crítica aos extremistas que incentivam seguidores a doarem a própria vida (tanto de forma literal quanto figurativa) em troca de ajudar a religião ou ideologia a atingir um objetivo "divino", como por exemplo a vinda de um Messias.
Try her philosophy, try
You die for her philosophy, die for her philosophy
E no fim da música, como se ainda não bastasse, Tankian e Daron Malakian gritam:
Die! Die! Die! Why!?
Lie naked on the floor and
Let the Messiah go through our souls
Em uma entrevista ao site KROQ em 2014, Malakian falou sobre esse tema da forma mais explícita possível: "Políticos usam a religião e provocam as tropas [de exército] com religião. E não é apenas aqui com o cristianismo. Esses caras, como o [Osama] Bin Laden, são todos políticos."
Apesar de uma sonoridade mais brincalhona e versos não necessariamente tão explícitos quanto na faixa anterior, "Suggestions" chega para abordar temas como o uso comum da divulgação de mentiras, por parte de mídias manipuladas e manipiladoras, para enganar a população.
E como o vocalista canta no primeiro verso, para que esse controle em cima da classe trabalhadora dê certo, é necessário ser o farol que os guia de cima, iluminando-os de um local seguro, distante e inatingível.
If you are the light post
Then you own the working class
O refrão traz à tona o perigo de questionar aquilo que é divulgado como verdade absoluta. Então basicamente se você quiser respostas, é melhor se preparar para enfrentar o fogo que virá dos controladores.
If you point your questions
The fog will surely chew you up
But if you want the answers
You better get ready for the fire!
Ready for the fire
Mas o fim da canção apresenta uma virada de jogo, na qual os navios (que representam os trabalhadores em busca das respostas) se multiplicam e colocam em risco a superioridade daqueles que os controlavam:
The ships are multiplying day after day, sir
And they're coming close to the shore, sir; shore, sir
We need to evacuate the light post
It's all over, over
Em "P.L.U.C.K.", 13ª e última faixa do disco de estreia homônimo, o System Of A Down mergulha com violência em um tópico essencial e igualmente violento da história da Armênia: o genocídio de 1915, também conhecido como Holocausto Armênio.
O Medz Yeghern, ou "Grande Crime" na língua nativa do país, foi o extermínio de súditos armênios na região histórica onde habitavam (lugar que fica hoje a República da Turquia), organizado e encomendado pelo Império Otomano. O número de mortos foi de aproximadamente 1,5 milhão.
Com essa introdução um tanto quanto básica sobre esse banho de sangue pouco mencionado na história do mundo, fica fácil de entender a letra da faixa que encerra o álbum:
A whole race, genocide
Taken away, all of our pride
A whole race, genocide
Taken away, watch them all fall down!
Por diversas vezes ao longo da canção o refrão cantado por Tankian é repetido, no qual ele afirma que a única forma de alcançar a restituição histórica é com uma revolução, ou a resposta armada de toda uma nação contra o atual governo turco.
Revolution, the only solution
The armed response of an entire nation
Revolution, the only solution
We've taken all their shit, now it's time for restitution!
Três anos depois, o System Of A Down volta com o segundo disco dos apenas cinco que lançaria ao longo da carreira.
E de novo sem perder tempo, a primeira faixa, "Prison Song", é uma mensagem (tão direta quanto o próprio nome) direcionada à guerra contra as drogas e o sistema carcerário dos Estados Unidos.
Como é possível ver nos trechos destacados abaixo, Tankian literalmente aponta o número de presos no país, que era de quase 2 milhões no ano de lançamento do álbum, e atingiu em 2019 um total de 2,2 milhões de pessoas nas prisões, além de 4,5 milhões em liberdade condicional até 2017, de acordo com o Relatório Mundial 2020.
Isso coloca os EUA como recordista e na liderança mundial de país com maior população carcerária.
I buy my crack, my smack, my bitch
Right here in Hollywood
Nearly two million Americans are incarcerated
In the prison system, prison system of the US
No segundo verso o vocalista continua a apresentar fatos, e dessa vez evidencia uma falha na constituição norte-americana que contribui para a superlotação das cadeias: a prisão de pessoas ligadas a infrações mínimas e não violentas, como porte de drogas. Logo em seguida Takian aproveita para criticar o uso do dinheiro arrecadado em impostos para bancar essa "guerra contra os novos não-ricos".
Minor drug offenders fill your prisons, you don't even flinch
All our taxes paying for your wars against the new non-rich
Em "Deer Dance", as críticas das letras miram no comportamento desnecessariamente violento da polícia. Atual, né?
A música usa o exuberante centro de eventos Staples Center, localizado na cidade de Los Angeles (que abriga alguns dos bairros mais pobres dos EUA), como um monumento que encobre essa pobreza, a brutalidade com a qual oficiais da polícia respondem a protestos pacíficos de jovens contra a própria brutalidade policial e a "existência plastificada" vendida como padrão de vida por uma sociedade calcada no capitalismo desmedido.
Beyond the Staples Center you can see America
With its tired poor avenging disgrace
Peaceful, loving youth against the brutality
Of plastic existence
Próximo ao fim da faixa, policiais são denominados diretamente como a própria guerra em si, vestidos com uniformes pretos, capacetes, ferozes e prontos para agir contra qualquer um que manifeste insatisfação, principalmente os que estiverem desproporcionalmente equipados, como costuma ser o caso de manifestantes pacíficos.
War staring you in the face
Dressed in black
With a helmet, fierce
Trained and appropriate for the malcontents
For the disproportioned malcontents
Sentindo falta de temas como natureza e exploração inconsequente do meio ambiente? Pois é lógico que a banda não deixaria isso de fora. E é aqui que entra em cena a música "Forest", oitava na tracklist de 15 faixas do Toxicity.
Nela, o grupo aponta a dificuldade que a humanidade apresenta em entender que não apenas somos parte de um ecossistema que rege a Terra, como também nossas vidas vêm e dependem dos nutrientes que extraímos de forma irresponsável dela.
Why can't you see that you are my child?
Why don't you know that you are my mind?
Tell everyone in the world that I'm you
Take this promise to the end of you
Na letra, o vocal de Tankian assume a personalidade da entidade que podemos chamar de Mãe-Nautureza. Ela pergunta diretamente a nós por que não enxergamos que somos filhos dela, e confronta o uso de tudo que não existe no meio da natureza, como a televisão e o processo de circuncisão.
No televisions in the air
No circumcisions on the chair
You made the weapons for us all
Just look at us now
E claro, aproveita esse fluxo de questionamento para também apontar como o ser humano ainda usa o material extraído da Terra para criar armas. "Olhe para nós agora".
Um ano depois de Toxicity, o System Of A Down retorna afiado como sempre, como uma faca que não perde nunca o fio apesar do uso constante.
Sem qualquer indício de demonstrar conformismo ou aceitação de tudo aquilo que lutaram contra até agora, e também para manter a tradição de abrir os discos com algumas das músicas mais diretas do álbum, a banda coloca como faixa inicial a explícita "Chic 'N' Stu".
Essa é uma música que, caso haja uma leve (mas bem leve mesmo) desatenção do ouvinte, pode parecer carregar uma mensagem quase banal. Mas com um mínimo (bem mínimo mesmo) de atenção, qualquer sombra de dúvida some sem muito esforço.
What a splendid pie, pizza-pizza pie
Every minute and every second, buy, buy, buy, buy, buy
What a splendid pie, pizza-pizza pie
Como é facilmente notável, a letra inteira é extremamente repetitiva, e isso serve como uma forma de imitar o próprio objeto de crítica da canção: as propagandas que passam incansavelmente na televisão, rádio e até marcam presença na mídia impressa, sempre com o objetivo de incentivar o consumo excessivo.
Need therapy, therapy, advertising causes
Need therapy, therapy, advertising causes
Need therapy, therapy, advertising causes
Therapy, therapy, advertising causes
Therapy, therapy, advertising causes
Therapy, therapy, advertising causes
Esse consumo desmedido, praticado quase que exclusivamente pela pequena parcela que é a população mais rica do mundo, resulta, como visto no trecho acima, em problemas psicológicos.
Não apenas em quem tem condições de realmente comprar e acaba por desenvolver um vício compulsório, mas também nos que não têm, justamente por não se sentirem parte dessa "normalidade" ostensiva imposta pelo capitalismo opressor.
Com uma sonoridade mais sombria do que a da faixa anterior, "A.D.D. (American Dream Denial)" apresenta a que veio logo no nome. A sigla A.D.D., em inglês, é o equivalente ao nosso DDA, ou seja, déficit de atenção.
Mas ao invés de usar o significado comum, a banda o troca por "American Dream Denial", ou a recusa do tão estimado Sonho Americano (tradução não literal, mas quase).
Pois é, isso está logo ali no título, e ainda assim tanta gente se surpreendeu quando o grupo (ou 3/4 dele) demonstrou não ser a favor do presidente Donal Trump.
Para alguém que por algum descuido não leu o título, o SOAD abre a canção com um verso que não exige grande interpretação de texto para ser compreendido. Países como os EUA fazem as pessoas acreditarem que servir no exército é um ato nobre, basta ver o quão estimado é o status de veterano de guerra lá.
E o retorno desses soldados como veteranos são exatamente o foco do verso abaixo. Eles de fato se dedicam à guerra, de corpo e mente, apenas para retornarem mutilados, mental e fisicamente debilitados.
We fought your wars with all our hearts
You sent us back in body parts
You took our wills with the truth you stole
We offer prayers for your long lost soul
E como resultado da guerra? Uma "disputa egoísta e injustificável por poder".
The remainder is an unjustifiable
Egotistical power struggle
At the expense of the American dream
Of the American dream, of the American
Quanto à música abaixo, deixo o próprio título fazer toda a explicação necessária.
O ano de 2005 foi, ao mesmo tempo, prolífico e triste para o SOAD e para os fãs. Afinal de contas, a banda lançou a ótima dupla de discos Mezmerize e Hypnotize, álbuns que contribuíram para enraizá-los ainda mais na história do metal, mas que também foram os últimos da discografia deles.
"B.Y.O.B", ficou mundialmente famosa e é daquelas músicas que, mesmo se você não conhece a banda, ouve no rádio e reconhece imediatamente a melodia.
Diferente do verso inicial, que carrega em si uma mensagem sobre a ligação entre grandes corporações e o financiamento de guerras, e mentiras que o governo usa para "alimentar" e estimular a população a se alistar no exército, o refrão se apresenta de forma um pouco mais enigmática.
Everybody's going to the party, have a real good time
Dancing in the desert, blowing up the sunshine
Na parte mais serena e acolhedora da faixa, Daron Malakian faz uma série de referências a ida à guerra, e não realmente a uma festa. E uso dessa metáfora não é aleatório: é com a venda dessa imagem de "diversão" e heroísmo que governos promovem os exércitos.
Valsa? Forró? Não. A tal "dança no deserto" que ele meciona remete à dança dos soldados para escaparem dos tiros e das bombas que explodem a luz do sol.
Lembra daqueles filmes, e até alguns desenhos animados, em que um personagem atira perto dos pés de outro personagem e manda ele dançar? Então, é essa a dança dos soldados nos desertos do Iraque e do Afeganistão, especificamente.
Se a indústria de Hollywood achou que escaparia de um ataque direto vindo do SOAD, errou feio.
"Old School Hollywood" e "Lost In Hollywood", as duas últimas faixas de Mezmerize, abordam esse tema, mas é a segunda delas, a que encerra a obra, que traz imagens vívidas e diretas sobre a crueldade que rege esse universo.
No verso abaixo, Tankian e Malakian cantam juntos sobre "ruas perversas lotadas de vagabundos" e apontam a estratégia mais usada por produtores e empresários dessa máquia usurpadora e tóxica: eles te encontram, te enganam e dizem que "você é o melhor que já viram". Isso entre avisos e reafirmações insistentes de que não se deve confiar em Hollywood.
I'll wait here, you're crazy
Those vicious streets are filled with strays
You should've never gone to Hollywood
They find you, two time you
Say you're the best they've ever seen
You should've never trusted Hollywood
Em seguida, ainda com a harmonia vocal da dupla de líderes, eles evidenciam também como a indústria de Hollywood consegue manipular os artistas, moldá-los como bem entenderem e, como se não fosse o suficiente, olhar para eles "de jeitos nojento", exposição do quão comum assédios sexuais são nesse mundo.
They take you and make you
They looked at you in disgusting ways
You should've never trusted Hollywood
E finalmente chegamos ao último disco do System Of A Down. Depois de tudo isso que vimos, imagina que surpreendente seria se bem agora eles decidissem mudar de lado? Ou se decidissem fazer um álbum composto apenas por músicas de temas leves e facilmente digeríveis?
Pois é, mas isso não aconteceu.
E mais uma vez a primeira faixa merece ser destacada. "Attack" abre o projeto final com o resgate do tema da guerra. Sim, de novo, e claramente ainda não foi o suficiente, como mostram as reclamações mencionadas nos primeiros paragrafos desse texto.
Ao longo da canção o vocalista fala sobre como a individualidade de cada um dos soldados é descartada e desvalorizada, além de fazer referência à dedicação deles em agirem como um organismo maior e unificado, e a todos os que morreram em conflitos armados e hoje são homenageados com "velas que choram em direção ao céu".
Mas o destaque fica por conta do verso final, que chega para encerrar a canção.
Attack all the homes and villages
Attack all the schools and hospitals
You attack all the rapes and pillages
We shall attack, we shall attack
Nele, Tankian grita o fato de bombardeios não terem como alvo apenas batalhões e acampamentos de soldados, mas também locais habitados por inocente como vilas e hospitais.
E para encerrar, temos a música homônima do disco.
Na faixa, o SOAD mais uma vez se dirige diretamente com o ouvinte, e sugere que ele pergunte por si mesmo por que os jovens foram à praça Tiananmen. Foi uma reunião sobre moda?
Não. No local, que fica na cidade chinesa de Pequim, aconteceu em 1989 uma manifestação em suporte da democracia, que obteve como resposta do governo comunista um massacre com aproximadamente 2,5 mil mortos.
Why don't you ask the kids at Tiananmen Square?
Was fashion the reason why they were there?
They disguise it, hypnotize it
Television made you buy it
O refrão de apenas um linha parece fugir do clima de tensão que predomina na canção. Mas aparências enganam.
I'm just sitting in my car and waiting for my
O ato banal de sentar no carro e simplesmente esperar pela namorada enquanto o mundo explode representa o desperdício de tempo útil e a falta de noção de que existem formas produtivas e de fato impactantes de viver a vida, mas é exatamente a essa inércia e calmaria ignorante que os líderes políticos querem que a população se acomode.
E aí, deu para entender direitinho que nunca existiu indício de sombras de dúvida ou até mesmo sequer ambiguidade quanto ao ponto de vista deles?
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