<b>NA ATIVAM/b> Freixo em ação: subindo o Morro do Chapéu Mangueira para fiscalizar a atuação das UPPs - Acervo pessoal

Tropa de um homem só

Nadando contra a maré, Marcelo Freixo coleciona inimigos e tenta sobreviver ao jogo da política que tenta incansavelmente combater

Leandro Prazeres Publicado em 13/05/2014, às 12h08 - Atualizado às 12h20

Aos 46 anos, Marcelo Freixo parece não estar cansado de bancar o superego rabugento na política do Rio de Janeiro. Em 2004, rompeu com o PT quando o então presidente Lula ainda era um mito e o partido iniciava a jornada rumo a uma hegemonia no poder que completará 12 anos no final de 2014. Antes de sair e se filiar ao PSOL, Freixo avisou que o partido se distanciava das origens. Em 2007, no primeiro ano como deputado estadual pelo Rio, pediu a instauração da CPI das Milícias. Viu o pedido ser engavetado, mesmo avisando que as milícias aterrorizavam boa parte da população fluminense. Em 2008, a CPI foi enfim instaurada, determinando a prisão de mais de 200 pessoas, entre elas deputados e vereadores. Ainda no mesmo ano, durante a implementação do programa das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), Freixo foi uma das poucas vozes dissonantes em meio à quase louvação ao projeto, alertando que somente a ocupação policial das favelas não seria suficiente. Em março deste ano, as UPPs, que já eram criticadas desde o desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza, em julho de 2013, tiveram a imagem de eficência estilhaçada após uma onda de ataques praticados por traficantes, que resultou na morte de ao menos três policiais e que obrigou o governo do Rio de Janeiro a solicitar a ajuda do Exército.

O homem que inspirou um personagem do filme Tropa de Elite 2 (o deputado Diogo Fraga) e cuja morte e silêncio estão avaliados em R$ 1,5 milhão poderia adotar o tom de “bem que eu avisei”. Mas Marcelo Freixo escapa a essa tentação, ainda que, de certa forma, sim, ele avisou. Em meio a sessões no plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Freixo falou à Rolling Stone Brasil sobre segurança pública, milícias, manifestações, ameaças de morte e da polêmica que envolveu integrantes de seu gabinete com os dois homens suspeitos de causar a morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes, em fevereiro último.

A economia desacelerou, a Copa do Mundo e as Olimpíadas correm riscos, milhões de pessoas foram às ruas e agora até os traficantes, que haviam saído da mídia, voltaram à cena no Rio de Janeiro. O que aconteceu? A lua de mel acabou?

Tem um conjunto de coisas acontecendo. Tivemos um 2013 muito atípico, com uma quantidade enorme de pessoas indo às ruas com pautas o mais diversificadas possível – PEC 37, reforma agrária, mobilidade urbana... E isso no Brasil inteiro, e algumas delas com até 1 milhão de pessoas. Havia, e ainda existe, um sentimento de crise de representatividade e de que as coisas precisavam ser mais profundas. Por mais que essas mobilizações não sejam mais tão intensas, o sentimento de crise de representatividade e de indignação está no ar. A Copa do Mundo ajuda nesse sentimento. As Copas da Alemanha e da África do Sul custaram aproximadamente R$ 6,7 bilhões, por aí. A do Brasil está em R$ 8,9 bilhões, sendo que 97,7% do dinheiro gasto até hoje é público. Isso em um lugar que tem uma enorme crise de saúde e educação, com o problema da mobilidade urbana. Não dá pra misturar isso com a questão das UPPs e do tráfico, não dá pra colocar no mesmo cenário de análise. O debate das UPPs é outro.

Imaginava-se que haveria uma mudança referente a essa crise de representatividade, mas ela não ocorreu. Você enxerga alguma possibilidade de melhoria? Em que sentido ela ocorreria?

Eu não acho que o modelo partidário tenha problemas apenas no Brasil. Em boa parte da Europa, essa crise também acontece. Essa crise de representatividade não é só em relação aos partidos, mas é uma crise generalizada. Há uma crise de representatividade em relação ao Ministério Público, ao Judiciário, ao Executivo e também aos partidos. Temos que buscar saída para isso, mas até agora, as mudanças estruturais foram muito tímidas. Tivemos algumas vitórias, tivemos redução no preço das passagens [de ônibus]... Mas as mudanças estruturais, como uma reforma política, acabaram não acontecendo. Eu era favorável a uma constituinte específica para a reforma política, porque esse Congresso que está aí não tem a menor condição de fazer isso. Esse Congresso não vai cortar na própria carne. O debate da reforma política sumiu do cenário brasileiro.

Muita gente se pergunta se foram os manifestantes que não souberam se manifestar ou nós, como sociedade, é que ainda não conseguimos captar as mensagens difusas que eles nos passaram. Qual o legado que as manifestações deixaram?

Acho que não há uma forma única de manifestação ou um objetivo comum. É importante dizer que aquelas foram as primeiras manifestações de massa no Brasil em tempos de internet. A natureza dessas manifestações era muito diferente de tudo o que a gente havia vivido. Não dependia de partido, movimento social, sindicato. Era algo muito singular e específico, porque a convocação era feita pela internet. A gente ainda está tentando entender muito do que aconteceu, e não é simples, porque é outro tempo, outra capacidade de organização que não a dos modelos tradicionais. Os atores políticos são outros, isso tem outra lógica. Acho que o legado que elas deixaram foi ter dado um grande susto no poder estruturado. Hoje, ninguém mais diz: “Ah, o povo brasileiro é pacífico demais, assiste a tudo bestializado, não reage a nada”. Essas frases fatalistas, ninguém arrisca mais dizer. Deixou todo mundo de sobreaviso.

Qual é a sua ligação com os dois rapazes envolvidos na morte do cinegrafista Santiago Andrade? Seu gabinete ofereceu ou não assistência jurídica a membros dos black blocs?

Não há o serviço de ajuda jurídica no meu gabinete. Quem ofereceu ajuda aos presos, que foram centenas, foi a OAB e algumas organizações da sociedade civil. Aliás, o único condenado por ser manifestante é um morador de rua, o Daniel Braga. Você quer coisa mais absurda? Ele não sabe nem quem é o governador do Rio de Janeiro. Uma dessas organizações tem um advogado que é, também, meu assessor. Estou falando do Thiago [de Souza Melo], da minha equipe, que nas horas vagas, na militância dele, atende no IDDH [Instituto de Defesa dos Direitos Humanos]. E ele tem todo o direito de fazer isso. Aliás, tenho muito orgulho do trabalho dele. Mas não temos nenhuma relação com isso, embora apoiemos as manifestações. Não os métodos violentos, não o quebra-quebra.

Você sempre teve um posicionamento crítico em relação às UPPs, e agora elas são alvo dos ataques de traficantes. O que está acontecendo? O modelo se esgotou?

Sempre fui crítico às UPPs, não destrutivo. A UPP só pode ser entendida como um projeto de cidade, não como um projeto de segurança pública. Se você pegar o mapa das UPPs, ele não segue o mapa da violência. Muito pelo contrário. Os locais com maior índice de violência não receberam UPPs, que são os casos da zona oeste, zona norte e Baixada Fluminense. As UPPs serviram a um projeto de cidade que era assim: “Vamos conquistar territórios de áreas estratégicas para o nosso projeto de cidade de negócios”. Os negócios são bem vindos, mas o problema de só ver os negócios... É transformar a cidade em uma grande commodity.

Isso explica por que as UPPs foram instaladas majoritariamente na zona sul?

Mais do que isso. Cem por cento das favelas da zona sul do Rio têm UPP. Onde mais tem? No entorno do Maracanã, na zona portuária, na Cidade de Deus, que é a única em toda a zona oeste e que é estratégica para os jogos [da Copa]. Esse é o eixo central. A UPP do Complexo do Alemão veio por uma necessidade de percurso, e não de concepção original. Agora, tem uma na Baixada Fluminense que foi denunciada por vários jornais como sendo para alegrar uma base eleitoral do [governador Sérgio] Cabral em Caxias. A escolha da localização das UPPs segue a lógica dos investimentos do grande capital no Rio. Quem tem a gestão da cidade de negócios são as grandes empreiteiras. Quem administra o metrô? A OAS. Os trens? A Odebrecht. Quem administra as barcas? A CCR. Quem administra o Porto Maravilha? São três empreiteiras. O Maracanã privatizado vai para a Odebrecht e para o Eike [Batista], e quem decide pela cidade é o grande capital. Essa é uma cidade que, quando o governador e o prefeito olham pra ela, eles pensam na lucratividade. O prefeito e o governador viraram executivos.

Mas isso ainda não explica por que as UPPs estão sendo atacadas...

As UPPs não estão em crise agora. Agora, há uma crise específica, mas a UPP está tendo problemas desde o início. O Amarildo [Dias de Souza] desapareceu há mais de um ano e ele é um exemplo concreto. O número de pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro no ano passado foi de 6 mil. Desaparece mais gente nos tempos da democracia do que nos da ditadura militar. Em favela que tem UPP, nasceu a figura do xerife. Quem decide por festa, coleta de lixo é o policial. Agora me diz: é assim no Leblon, é assim em Ipanema, no Cosme Velho, nas Laranjeiras? As UPPs viraram propaganda de alguns meios de comunicação e do governo, e qualquer questionamento que se fizesse a elas eles vinham e diziam: “Ah, se você é contra UPP, então é favorável ao tráfico”. Isso é uma palhaçada. Os ataques às UPPs obedecem a outra lógica. A instalação delas priorizou uma determinada facção, que é o Comando Vermelho. Se você pegar o mapa, hegemonicamente, as UPPs estão em territórios dessa mesma facção, que agora está sufocada. Não tem UPPs em território de outra facção ou de milícia. Aliás, as milícias não são atingidas em qualquer momento. O [José Mariano] Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio, passou cinco anos dizendo: “Não pode ser só UPP, não pode ser polícia, tem que ter outros investimentos”. E depois de cinco anos quem ele leva pra lá? As Forças Armadas. Alguma coisa deu errado.

As milícias se espalharam pelo Brasil?

Eu disse que as milícias iriam se espalhar no Brasil inteiro e na época, acho que em 2008, eu falei isso para o então ministro da Justiça, Tarso Genro. E hoje um dos lugares que tem milícia é justamente onde o Tarso Genro é governador: Rio Grande do Sul. Temos informações de que há milícias no Rio Grande do Norte, em Pernambuco... E em 2008 não tinha. Era evidente que os ingredientes que levavam o Rio a ter milícia existiam em outros lugares, como a falta de controle da polícia, a corrupção, o domínio territorial, o clientelismo eleitoral. Isso se espalhou. Se já estão no mesmo nível que no Rio de Janeiro, eu não sei. Mas nós recebemos informações de diversos estados.

Em 2011, o preço pela sua cabeça era de R$ 1,5 milhão. Você continua recebendo ameaças de morte? Como lida com elas?

Só quem já passou por isso tem a dimensão do que significa. Uma coisa é pensar nisso agora e daqui a pouco tomar um suco de laranja e esquecer o assunto. Eu convivo com esse problema desde 2008 e não é nenhum privilégio. Você precisa de escolta, carro blindado... Você muda sua relação familiar, perde a naturalidade do dia a dia. Digamos que a gente acabe esta entrevista, e penso em encontrar um amigo para tomar um chope e dizer que gostei da nossa conversa. Não posso.

Recentemente, vimos a polícia arrastando uma moradora pela rua, cidadãos comuns acorrentando e linchando suspeitos de crimes e uma apresentadora de TV defendendo justiça com as próprias mãos. A causa dos Direitos Humanos está perdida no Brasil? O brasileiro é mesmo um povo violento?

Eu não acho que seja uma causa perdida. Eu acho que é uma causa pedagógica e uma das mais necessárias de serem defendidas. Quando você tem 1 milhão de pessoas indo pra rua, você tem do melhor e do pior. Como eu digo, o fascismo saiu do armário. O fascismo também se expôs. Não foi apenas o desejo por uma sociedade mais justa que levou às manifestações. Não vamos pensar que todos imaginam o mesmo modelo de sociedade. Tem desde o cara que defende a escola pública ao cara que quer ver tudo quanto é negro de favela morto. Eu não acho que o que predomina na sociedade brasileira seja um olhar fascista. Mas ele é forte. O medo é inimigo da democracia. Nenhuma sociedade passa 300 anos convivendo com a escravidão impunemente. Qualquer sociedade que alimenta o medo confunde justiça com vingança. Um dia, eu recebi uma mãe que veio na comissão de Direitos Humanos [da Assembleia Legislativa]. Ela me disse: “Seu Marcelo, eu vim aqui porque eles mataram meu filho e ele nem era bandido”. O que ela estava me dizendo com isso? Ela está me dizendo que se ele fosse bandido, ela não teria vindo até mim.

Você inspirou o deputado Diogo Fraga de Tropa de Elite 2. No filme, há uma divisão clara entre dois tipos de heróis. De um lado há o Capitão Nascimento, que bate e tortura, e o Fraga, que age dentro da lei. O fato de Nascimento ter virado um herói nacional e o Fraga ser só o “cara dos Direitos Humanos” diz algo sobre a sociedade brasileira?

Diz e diz muito. Não eram poucas as cenas de tortura que a população legitimava com sua reação nas salas de cinema do primeiro Tropa de Elite. E aí era mais fácil questionar o [diretor José] Padilha do que questionar a sociedade. Vivemos duas ditaduras no século 20. O Estado sempre atuou na lógica da eliminação do inimigo interno. Se antes ele era o comunista, o subversivo, hoje o inimigo é o jovem favelado e negro. O Tropa de Elite 2 eu acompanhei, discuti o roteiro com o Padilha e com o Bráulio Mantovani, acompanhei os atores. Acho que é um filme genial. Primeiro porque ele vai para o andar de cima em relação ao Tropa 1 –para a esfera da política, e não apenas da polícia. E o Padilha pensou muito nisso. A relação do Fraga com o Capitão Nascimento e a disputa sobre o filho foi muito feliz. É uma disputa da orientação ideológica. Para mim, o momento mais bonito e importante é quando, no hospital, com o filho baleado, o Nascimento pega aquela gravação e entrega na mão do Fraga. Mas só para lembrar o [poeta alemão Bertolt] Brecht, infeliz do povo que precisa de heróis.

Se você pudesse dirigir um novo Tropa de Elite, qual seria o novo alvo do Nascimento ou do Fraga?

Ah...[ risos] Eu não tenho cabeça de cineasta... Para mim foi uma novidade ter participado do Tropa 2. Aprendi bastante com eles.

Mas se tivesse que fazer... o PMDB?

Bem... [risos] O PMDB estaria em todos eles, né? No 1, no 2, no 3, no 4... Isso aí não vai ter jeito. Isso é um câncer da política brasileira, e é terrível. Aliás, o PMDB é a tropa da elite.

Você foi militante do PT durante muitos anos e ainda tem amigos no partido. Como você analisa a bipolaridade que hoje domina a discussão eleitoral no Brasil?

Eu acho que a polaridade não contempla a diversidade de divergências, críticas e alternativas que têm a sociedade brasileira. No que diz respeito ao PT e ao PSDB, eles se aproximam muito mais do que se distanciam. Os números da reforma agrária da Dilma são inferiores aos do FHC, o que é uma vergonha para um governo do PT. Eu não saí do PT. Foi o PT que saiu de si.

Esta entrevista foi publicada na edição 91 da Rolling Stone Brasil.

marcelo freixo Política Nacional upps

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