Jonah Weiner | Tradução: J.M. Trevisan Publicado em 26/02/2014, às 19h51 - Atualizado às 19h55
É uma ensolarada manhã de maio em Atlanta, e Will Ferrell entra calmamente no número 2282 da Defoor Hills Road – um galpão sem janelas de 9,5 mil metros quadrados transformado em estúdio cinematográfico improvisado. Normalmente o lugar hospeda empresas de mudança, mas hoje o inquilino é bem mais importante: Tudo por um Furo (Anchorman 2: The Legend Continues, previsto para 28 de fevereiro no Brasil), a mais esperada continuação de um filme de comédia em todos os tempos. Ferrell está começando o dia no papel do herói, Ron Burgundy, um apresentador de jornal falastrão e com um fraco por uísque, loiras e móveis de mogno. Ele também tem o hábito de divulgar fatos falsos com autoridade (por exemplo, “São Diego” significa “vagina de baleia” em alemão) e o que podemos chamar de atitudes pouco inteligentes quanto a questões de raça, gênero e sexualidade. “Ele é meio horrível”, diz Ferrell, sorrindo. E ainda assim o amamos.
Grandes momentos de Ron Burgundy na vida real.
Ron Burgundy é o papel favorito da carreira de Ferrell, que está empolgado por voltar a interpretá-lo. “O sentimento é igual ao do primeiro filme, em que não conseguíamos acreditar que nos deram dinheiro para fazer aquelas coisas absurdas”, ele conta. “Neste, o objetivo é tornar tudo ainda mais ridículo.”
Às 10h22, os três outros atores principais já estão reunidos, prontos para interpretar os membros da equipe do jornal de Ron: Paul Rudd como Brian Fantana, um repórter investigativo garanhão com cara de ator pornô; Steve Carell como Brick Tamland, um homem do tempo tapado; David Koechner como Champ Kind, um jornalista de esportes, reacionário e homossexual reprimido. O Âncora, de 2004, tinha uma premissa promissora: a equipe jornalística de uma televisão local nos anos 70, composta apenas de homens, precisa lidar com a chegada de uma repórter altamente talentosa. Nas mãos de Ferrell, Ron é o retrato preciso da caricata masculinidade norte-americana, cultivada com tanto empenho pelo país. “Quem vê acha que ele é muito autoconfiante, mas a verdade é que é muito inseguro”, diz Ferrell. “A confiança dele supera o conhecimento.” O diretor de O Âncora, Adam McKay, que escreveu os dois filmes com Ferrell, diz: “São coisas que nós adoramos: caras que projetam uma autoridade e competência imensas, mas por trás de tudo há um caos, incompetência, loucura e egoísmo total”. O filme original arrecadou US$ 85 milhões, com um orçamento de US$ 26 milhões. Mas o clima escrachado, a avalanche de piadas fora do padrão e o pouco caso com o enredo deram ares de cult à obra. “Foi um filme feito à mão”, diz McKay.
Com o passar dos anos, o culto a O Âncora aumentou. As piadas invadiram o vocabulário pop, em frases de camisetas e em versos de Kanye West. Naquela época, Rudd, Carell e Ferrell eram atores que ainda precisavam provar seus valores, e Judd Apatow, o produtor, tinha apenas um filme nessa função no currículo, O Pentelho. Hoje, todos são astros e Apatow supervisiona um verdadeiro império. E isso significa que em Tudo por um Furo as apostas são bem mais altas. Kristen Wiig assinou como coadjuvante; Harrison Ford faz uma das muitas participações especiais. Os números das exibições-teste feitas pela Paramount foram às alturas, e os blogs e a mídia ficaram em polvorosa. “A diferença é que neste filme eu sei que tem muita gente de olho”, diz Rudd. “No primeiro, ninguém ligava.”
Mckay e Ferrell se conheceram em 1995, quando foram contratados para o Saturday Night Live no mesmo dia. Ferrell, que foi criado no subúrbio classe média de Irvine (Califórnia), e já era destaque na trupe de improviso de Los Angeles, Groundlings, tornou-se o grande astro do elenco; McKay assumiu a posição de roteirista-chefe apenas um ano depois. Quando começaram a bolar esquetes juntos, perceberam que “gostávamos da mesma ideia de situações certinhas que viram de ponta cabeça”, diz Ferrell. O diretor Paul Thomas Anderson pensava em produzir filmes na época, relembra Ferrell, “e ele nos disse assim: ‘Se deixassem vocês escreverem o que quisessem, o que vocês escreveriam?”’ McKay e Ferrell mandaram para Anderson o rascunho original do roteiro de O Âncora, em que “uma equipe jornalística estava em um voo que atravessava o país, junto com todas as principais emissoras concorrentes, e o avião batia em outro avião”, diz Ferrell. “E no compartimento de carga havia jaulas com babuínos, e eles escapavam. Assim, era um filme de sobrevivência, com os babuínos nos caçando.” “Paul ficou um pouco desconcertado”, diz Ferrell, rindo. “Ele disse: ‘Sabe, caras, estou bem ocupado agora...’ Nossa história o assustou! Então pensamos: ‘Vamos começar de novo e fazer o filme ser sobre o ambiente de trabalho. Ainda dá para fazer umas coisas bizarras’. E ainda assim, ninguém queria bancar.”
Entretanto, o sucesso arrasador de Dias Incríveis, de Todd Phillips – um filme em que Ferrell roubou a cena no papel de Frank the Tank –, mudou tudo. A DreamWorks deu um orçamento de US$ 26 milhões a O Âncora e apressou a produção. Dali, o sucesso do filme ajudou McKay a chegar à verba de US$ 70 milhões para Ricky Bobby – A Toda Velocidade, e contribuiu pra que Carell e Apatow fizessem O Virgem de 40 Anos, que por sua vez abriu espaço para a todas as outras comédias de grande porte lançadas na década passada.
“Mudou tudo para mim”, diz Apatow. “Quando fizemos O Âncora, tive muitos problemas, porque nada do que eu tinha feito até então havia dado dinheiro. Esse foi o primeiro projeto em que me envolvi e deu certo. O filme deu credibilidade a todos nós.”
No início, a Paramount, proprietária da franquia, não mostrou confiança na possibilidade de um novo O Âncora. A ideia de fazer uma sequência surgiu para McKay e Ferrell “há quase seis anos”, diz McKay. “Havia um apelo para isso – Ferrell ouvia em cada lugar a que ia, amigos nos diziam, no Twitter, no Facebook, na imprensa.” Mas o desafio seria grande. Só para começar, eles estariam revisitando solo sagrado; além disso, a maioria das sequências de comédias é ruim. “Tentamos encontrar a receita certa do que traríamos de volta e o que criaríamos de novidade”, diz Ferrell. “O quanto vamos nos manter na estrutura tradicional de roteiro e o quanto vamos viajar?” No fim, eles resolveram abraçar os impulsos mais malucos. “O charme de O Âncora era que o filme parecia ir para onde bem entendia”, diz Ferrell. McKay concorda: “Tentamos tornar essa sequência ainda mais maluca”.
Convencida de que estava à altura do desafio, a dupla apresentou a ideia de trazer Burgundy de volta à Paramount. “Eles adoraram”, diz McKay. Mas o orçamento era um problema. “No primeiro filme, ninguém ia receber nada”, diz McKay. “No segundo, você precisa dar uma melhorada na produção, e hoje em dia todo mundo é pago 40 vezes mais do que antigamente.” McKay queria US$ 80 milhões. “A Paramount olhou para mim como se eu fosse louco.” Então ele cortou custos e aplicou reduções de salário: que tal US$ 60 milhões? Sem chance, disse a Paramount. O projeto parecia morto. Finalmente, o agente de McKay, o obstinado Ari Emanuel, fez uma última tentativa. “Ari disse: ‘Vou ligar. Foda-se. Eles deveriam fazer esse filme’. E o estúdio respondeu: ‘Um filme caiu do cronograma. Vamos conversar’.”
A Paramount ofereceu US$ 50 milhões de verba, o que fez com que McKay e Ferrell tivessem que persuadir atores como Rudd e Carell a reduzir salários. Quanto ao enredo, a dupla decidiu focar na ascensão de um canal a cabo 24 horas na década de 80. Na continuação, desesperado por audiência em uma nova emissora chamada GNN, Ron se torna o pioneiro da cobertura sensacionalista de desastres naturais e perseguições policiais. Ferrell diz: “Pensamos: ‘O quão engraçado seria se Ron fosse o precursor do que hoje consideramos algo comum no jornalismo?’”
McKay, por sua vez, diz que fazer o filme com menos dinheiro foi “exaustivo, mas divertido. A verba disponível nos fez procurar saídas criativas. Fez com que a gente construísse só 3 metros de um farol, e completasse o resto na pós-produção, porque não tínhamos dinheiro para construir o negócio inteiro. Tivemos que fazer cada merda, como Will pulando no mar com um tubarão mecânico – se tivéssemos US$ 10 milhões a mais, teríamos feito a cena em um tanque gigante e uma tela verde de fundo. Coisas boas surgem dessa necessidade de se virar com o que se tem”.
Há um clube de tênis não muito longe da casa de Will Ferrell em Hollywood, onde a mulher dele gosta de jogar e ele almoça de vez em quando. Às 13h de uma quarta-feira chuvosa de outubro, o ator estaciona o carro elétrico e entra discretamente na sede do clube. É bastante tranquilo em pessoa, e de uma fala tão mansa que às vezes preciso me aproximar para entendê-lo melhor.
“Há uma certa timidez”, diz Ferrell, “misturada com uma ausência de necessidade de impressionar os outros sendo engraçado. Encontro as pessoas em público e tenho certeza de que elas ficam decepcionadas.” Depois do almoço, vamos de carro até a casa dele, onde mora com a esposa e os três filhos. O portão desliza, abrindo caminho para um espaçoso estacionamento cercado por construções modernas, um carregador para o carro elétrico e plantas exuberantes. De um lado há a edícula, onde ele e McKay escrevem. “Essa é a sala de guerra”, ele diz. Quando trabalham, McKay joga as ideias e Ferrell as digita. “Nós literalmente interpretamos a cena”, diz Ferrell. “Devíamos gravar, mas nunca fazemos isso. E aí ficamos: ‘Espera, o que foi que a gente disse?’”
“Conversamos um pouco sobre a história”, McKay depois explica. “Escrevemos um resumo de umas 18 páginas para entender para onde estamos indo. Algumas vezes mostramos ao Judd. Então escrevemos a ‘versão vomitada’, que é um roteiro onde vale tudo. O de Tudo por um Furo tinha 200 páginas. Um rascunho todo desconjuntado que depois lapidamos.”
Apesar disso e dos sinais de que Tudo por um Furo seria um sucesso (e foi: ultrapassou US$ 100 milhões nas bilheterias norte-americanas em duas semanas), Ferrell aprendeu a controlar a própria expectativa. “Qualquer um no ramo da comédia que diz saber se algo vai ou não funcionar está falando merda”, diz ele. “É mentira. Você nunca sabe.” Por isso, ele e McKay estão focados em seguir as próprias ideias. “Não quero que todos adorem, nem Will quer”, diz McKay. “Há certas pessoas que deveriam odiar o que a gente faz.”
No computador, Ferrell abre uma versão preliminar do roteiro e desce até uma página aleatória. Noto um personagem chamado “Afro-Americano-de-Voz-Grossa” e pergunto a ele a respeito. “Brincamos com a ideia de fazer três minutos com a tela preta, como se fosse uma novela de rádio”, diz. A ideia acabou descartada, mas apenas a lembrança da cena o faz rir.
“Gosto de desafiar o nível de expectativa do que faço”, Ferrell diz. “Quero manter as coisas onde, potencialmente, posso alienar parte do público. Por mim, tudo bem. Porque eu gosto de ir atrás da porcentagem que assiste e pensa: ‘Não creio no que está acontecendo, mas estou adorando’.”
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