Festival SXSW oficializa Austin como a capital da música que (quase) ninguém ouviu
"Mantenha Austin estranha" é a tradução de um dos mantras mais perpetrados pela capital do estado norte-americano do Texas. Espécie de slogan não oficial, a frase estampa camisetas, canecas e badulaques, e define de maneira pura a relação entre a cidade e a expressão criativa e artística de sua engajada população.
Já "a capital mundial da música ao vivo", este sim o slogan oficial utilizado pela prefeitura local, também parece fazer todo sentido - muito graças ao South by Southwest, festival que anualmente se desenrola em Austin ao longo de dez dias de março. Estabelecido como um dos eventos mais relevantes dos Estados Unidos, o SXSW (a sigla é mais famosa que o próprio nome) funciona como um variado compêndio de painéis e conferências sobre a indústria, além de reunir a nata da música indie emergente, artistas já consagrados e centenas de bandas coadjuvantes. Paralelamente, mas também utilizando a grife SXSW, há um evento destinado apenas ao cinema e outro somente para mídias interativas - este último, aliás, aos poucos se torna tão ou mais poderoso do que o evento musical.
No que tange a área sonora, o SXSW pode ser bem descrito como um apetitoso banquete para famintos a céu aberto - ou um carnaval dos infernos, dado o ímpeto (e o visual) da multidão que circula desordenadamente pelo asfalto. Ao longo de vários quarteirões, bares extravagantes e inferninhos oferecem shows até alta madrugada, de hip-hop a metal, do folk ao hardcore, do eletrônico ao rock básico de guitarra, baixo e bateria. Segundo a organização, cerca de 1.900 artistas (16 deles brasileiros) se apresentaram em mais de 80 palcos entre as noites de 17 a 22 de março. Isso sem contar as festas patrocinadas e que se desenrolam ainda com o sol a pino e não entram na contagem oficial. Em teoria, mesmo os mais preguiçosos conseguiriam facilmente assistir a pelo menos cinco shows em uma única noite.
"Facilmente" é o mais puro eufemismo. Esse ano, Austin - a quarta maior cidade do Texas, com menos de 800 mil habitantes - sofreu uma invasão de milhares, entre fãs nerds, empresários de gravata, jornalistas e, óbvio, os próprios integrantes das bandas. A movimentação no aeroporto um dia antes do início era digna de nota: na esteira de bagagens, dezenas de cases de guitarra se misturavam às malas de passageiros desavisados. Para conseguir assistir a um show desejado, o interessado precisava ter paciência para gastar horas em filas que se esticam pelas ruas. Assim como em qualquer evento de porte, vivenciar o SXSW pode ser um exercício de frustração, e a escolha sobre qual atração assistir e qual ignorar não é das mais justas. Os frequentadores de sempre, porém, dizem ser essa justamente a graça da coisa.
A primeira edição do SXSW se deu em 1987. De lá para cá, mudanças de formato abundaram, assim como os rumos da indústria fonográfica. E, nesse momento-chave da transição de formatos e do enfraquecimento das grandes gravadoras, um festival de bandas independentes de tamanho calibre adquire ainda mais relevância. Contudo, é quase forçado considerar o SXSW um movimento realmente "independente": o apoio de patrocinadores se faz obrigatório para sustentar a carga de acontecimentos simultâneos que se alastra como poeira por Austin. Nem se esforçando é possível evitar contato com os logotipos - de empresas de tecnologia a fabricantes de bebidas - que colorem cartazes, palcos e folhetos. A Levi's, tradicional marca de vestuário, bancou uma festa fixa no Fader Fort, um amplo espaço montado a alguns quarteirões do burburinho, na qual apresentava uma carga diária de uma dezena de shows em meio à venda de roupas e distribuição de cerveja. Como é de praxe, a maioria das bandas que tocou na área patrocinada também se apresentou no circuito padrão do festival. Entre os fãs, era rotina passar pelas festas durante o dia, para, posteriormente, encarar as filas dos bares à noite. Tudo acaba sendo considerado parte do SXSW, e a maioria dos visitantes nem distingue um show "oficial" de um "paralelo".
E se para alguns artistas o SXSW servia como marco zero, para outros era a plataforma ideal para o marketing - ou para intenções ainda mais nobres. Após idas e vindas, o Stone Temple Pilots decretou a volta aos palcos com um show no imponente Austin Hall, com direito a participação especial de Robby Krieger, ex-The Doors. Por sua vez, o Hole, de Courtney Love, voltou à tona para 200 pessoas no Dirty Dog, um bar não mais vistoso do que qualquer casa de shows da rua Augusta. A morte de Alex Chilton, cultuado líder do Big Star (que faria o desfecho do festival), foi a deixa para um melancólico tributo, com a participação de nomes como Mike Mills (R.E.M.), M. Ward (She & Him) e Evan Dando (Lemonheads).
Mas está nas trilhas alternativas o brilho maior do SXSW. Para os garimpeiros dedicados, é instigante a possibilidade de conferir tantos nomes em ascensão em tão curto tempo. Bandas mais ativas, como Surfer Blood, The Morning Benders, Japandroids e The Drums, aproveitaram para tocar várias vezes ao longo da semana. Já os poucos músicos brasileiros que conseguiram se bancar e compareceram - o SXSW não paga cachê nem fornece alguma ajuda de custo - aproveitaram para se divertir, mais do que para capitalizar.
"Mais vale pela experiência de assistir a outros artistas, ver o que está acontecendo e trazer isso para nossa música", diz Fernanda Maia, uma das metades do duo brasiliense Lucy and the Popsonics, que fez em 2010 sua segunda participação no SXSW (a primeira foi em 2008). "Muita gente acha que vai ser descoberta por produtor, gravadora... Na primeira vez, as bandas acham que vão conquistar o mundo, mas não é bem assim", ressalta.
"O SXSW tem esse mito de que é algo transformador. E não é", concorda Sergio Ugeda, consultor artístico da organização Brasil Música e Artes (BM&A), que promove a difusão da música nacional no exterior. "É uma experiência produtiva para a banda, com um enorme potencial de relacionamento, mas não transforma carreira."
Poréns deixados de lado, a reverência dos artistas independentes pelo SXSW não parece diminuir, e a chance de colocar a sigla no currículo ainda justifica todo e qualquer esforço. Os fãs, por outro lado, não reclamam da oportunidade de conferir, a poucos metros de distância, as bandas que a maioria do planeta nem sonha que existem. Para Ugeda, que já participou do SXSW como músico (frente à banda Debate), a ascendente mitificação da sigla também está diretamente relacionada às metamorfoses sofridas pela indústria. "O conceito de que tudo aquilo está acontecendo ao mesmo tempo é lindo", teoriza. "Só que você circula sem parar e não consegue ver tudo o que quer. Mas quem é capaz de acompanhar o ritmo da música hoje em dia? O SXSW só mostra as coisas do jeito que elas estão acontecendo."