Como o LSD, o rock psicodélico e 75 mil hippies deram início a uma revolução nos Estados Unidos
Em 1967, a região de Bay Area, em São Francisco, foi o epicentro de um levante cultural e político que desafiou o próprio significado dos Estados Unidos. Já fazia muito tempo que a Califórnia era - no mito e na história - o lugar para onde as pessoas mais ousadas migravam a fim de realizar desejos extremos. A Califórnia foi o lugar onde o sonho americano atingiu seu auge máximo. E São Francisco era a parte pervertida desse sonho: uma cidade com ópio, prostitutas e desrespeito à lei; uma imagem que era ao mesmo tempo atraente e notória. Foi lá, na década de 1950, no bairro de North Beach, que Allen Ginsberg escreveu seu famoso poema Howl (Uivo), uma peça de resistência chocante, mas que também anunciava novas possibilidades: abriu portas na literatura norte-americana, atacou de frente os ideais de civilização da nação e ajudou a transformar North Beach no suposto lar do movimento Beat - estilo literário que Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs tinham ajudado a definir no final da década anterior. O bairro continuou sendo um enclave de poetas e beats até meados dos anos 60, quando uma turma mais jovem e mais boêmia, com roupas mais coloridas, cabelo mais comprido e afeição pelo novo rock'n'roll que surgiu na esteira dos Beatles começou a se infiltrar na área.
Os beats chamavam esses novatos de "s", apelido um tanto depreciativo que é o diminutivo de "hipster" (algo como lançadores de tendências). Os s se valeram de alguns traços do perfil dos beats - incluindo a atitude mais relaxada em relação ao sexo e a predileção pela maconha e pela música de improviso -, apesar de eles parecerem mais emotivos e mais otimistas em relação ao potencial que a época apresentava. Como a polícia vigiava a área com rigidez, à procura de drogas, e como os clubes de topless tinham feito os aluguéis em North Beach subirem, os hippies começaram a se mudar para a região de Haight-Ashbury - um bairro amplamente povoado pela classe operária, mas que na época estava em decadência completa e oferecia montes de construções vitorianas a baixo preço tanto para jovens estudantes quanto para quem tinha largado a faculdade.
Dois acontecimentos fundamentais - ambos originados fora de São Francisco - foram decisivos para o desenvolvimento da personalidade de Haight-Ashbury. O primeiro tomou forma na região de South Bay (ao sul de São Francisco), onde, em 1965, o escritor Ken Kesey conduzia eventos psicodélicos conhecidos como Acid Tests (testes de ácido). Anos antes, ele tinha feito parte de um programa experimental para estudar os efeitos das drogas psicomiméticas - substâncias que eram capazes de induzir episódios psicóticos breves e inofensivos. Esses testes fizeram com que Kesey se familiarizasse com o LSD, alucinógeno que, segundo sua crença, fornecia maneiras radicais de olhar para a vida com uma perspectiva alucinante e cheia de êxtase. Durante os anos que se seguiram, Kesey se transformou em pioneiro do LSD e, com suas tropas, os Merry Pranksters (travessos felizes), começou a promover grandes festas - primeiro em South Bay, depois em boates de São Francisco - para ver o que acontecia quando as pessoas consumiam a droga em um ambiente sem regras nem situações preconcebidas (o uso do LSD ainda não era ilegal nessa época). Por convite de Kesey, os Warlocks - que depois passariam a se chamar Grateful Dead - tornaram-se a banda da casa para essas experiências coletivas de alucinação. O outro acontecimento que ajudou a definir o perfil de Haight logo de início aconteceu em um clube ao estilo faroeste, o Red Dog Saloon, na cidade-fantasma de Virginia City (Nevada). Em junho de 1965, uma banda de São Francisco, os Charlatans, assumiu residência no local. Sua atitude relaxada e suas apresentações labirínticas - já que às vezes tocavam sob a influência do LSD, para uma platéia também às vezes sob a influência do LSD - estabeleceram um outro modelo para as reuniões psicodélicas, menos tenso e menos sarcástico do que os encontros de Kesey.
Em São Francisco, em outubro de 1965, alguns veteranos do Red Dog, que então se autodenominavam Family Dog, organizaram uma noitada de bandas e dança no Longshoremen's Hall: o cartaz anunciava "Um Tributo a Dr. Strange" e o line-up incluía os Charlatans, o Jefferson Airplane e o Great Society. O evento fundiu, de modo espontâneo, o espírito tolerante dos Acid Tests com a importância da dança nas festas do Red Dog e acabou se transformando em acontecimento essencial na história da cena psicodélica. No decorrer dos dois anos seguintes, as boates de São Francisco - principalmente a Avalon e a Fillmore - tornaram-se, além de metáfora central da reinvenção de comunidade de Haight-Ashbury, também a concretização fundamental dessa idéia.
As bandas que nasceram nesse cenário compunham-se quase totalmente de músicos que surgiram tocando nas casas de shows de folk em Bay Area. O público do folk era famoso por seu desdém ao rock'n'roll: para eles, aquela era uma música nada séria e totalmente decadente que não tinha o menor compromisso com preocupações sociais ou políticas. Mas, depois do aparecimento dos Beatles em 1964 e da transição de Bob Dylan para a música elétrica em 1965, os músicos folk de Bay Area começaram a ver como a música elétrica era capaz de incorporar temas substanciosos e linguagem poética. Como declarou Barry Melton, guitarrista da Country Joe and the Fish, no livro Beneath the Diamond Sky - Haight-Ashbury 1965-1970 (Sob o Céu de Diamante - Haight-Ashbury 1965-1970): "Aquilo não era uma coisa induzida pelas drogas, realmente era um monte de musicólogos do folk que tocavam blues e bluegrass unindo forças com sujeitos que tocavam na periferia, mascavam chiclete e não conseguiam juntar duas frases - os músicos de rock". E muitos deles usavam ácido. O LSD de fato transformou a noção de continuidade dos músicos: um músico podia seguir uma melodia para onde quer que ela o conduzisse, alterando o formato e a função da estrutura harmônica da canção, transformando-a em pano de fundo para improvisações extensas - processo que Jerry Garcia, do Grateful Dead, certa vez descreveu como "algo parecido com o caos ordenado".
A melhor circunstância para ouvir essa nova música era nas festas. O promoter Chet Helms tinha assumido a Family Dog e apresentava shows com regularidade na Avalon; Bill Graham - organizador truculento que deixou algumas pessoas ressentidas, mas que lutava com unhas e dentes pelo direito da comunidade de se juntar para ouvir música - gerenciava a Fillmore. Nesses locais, sons ruidosos e propulsores, combinados a imagens vívidas e cinéticas, proporcionavam um ambiente envolvente. As famosas exibições de luz faziam parte da experiência das pistas: nelas, artistas e técnicos misturavam líquidos coloridos em panelas de vidro e agitavam o composto em projeções no teto.
O novo rock'n'roll psicodélico teve papel consideravelmente importante no desenvolvimento da cena de São Francisco, e esse sucesso rapidamente se transformou em problema. No final da década de 1960, o rock era mais do que uma forma de música poderosa e estranha - era um marco de divisão cultural sem precedentes, mais acentuado nas diferenças entre as gerações. Os pais dos jovens da nação esperavam que seus filhos fossem reafirmar os valores dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra Mundial. Mas esses jovens estavam formatando seus próprios ideais de paz, tolerância, política, estética e comunidade. E essas ambições se manifestavam por meio da crescente oposição ao envolvimento na Guerra do Vietnã e do desejo de formar uma nova cultura - a contracultura - com sua própria ética e suas próprias práticas. Os novos costumes da juventude que mais incomodaram a cultura estabelecida norte-americana foram exatamente aqueles que caracterizavam a sociedade emergente de Haight-Ashbury: o uso de drogas psicodélicas e a permissividade sexual.
A prefeitura de São Francisco e a imprensa enxergavam Haight-Ashbury como uma sociedade de usuários e traficantes de drogas, rapazes que tinham fugido da convocação à guerra e folgados indolentes - aquele era um lugar que deveria ser vigiado, contido e condenado. Duas manchetes locais em 1967 declaravam: "Prefeito avisa aos hippies que não entrem na cidade" e "Supervisor apóia a guerra contra os hippies". A polícia fechava as festas no Fillmore sempre que possível. Em outubro de 1966, a posse de LSD tornou-se ilegal. A nova cultura de São Francisco e outras a ela assemelhadas tiveram que levar seu ritual central para a clandestinidade.
O único defensor público de destaque da comunidade era Ralph J. Gleason, crítico de jazz do jornal San Francisco Chronicle (posteriormente, ele seria co-fundador da Rolling Stone USA) que cobria a nova música e a contracultura com conhecimento de causa. Ao relatar a hostilização policial a Bill Graham, promoter do Fillmore, Gleason escreveu: "Desde que os bailes começaram - há exatamente um ano - os únicos problemas vistos nos salões têm sido causados pela polícia. (...) O negócio é que esta sociedade sente-se tão apavorada com a juventude que a tornou ilegal".
As coisas com certeza pareciam ser assim para muitas pessoas na época. A nova comunidade de Haight-Ashbury era uma experiência em escala tal que não se via nos Estados Unidos desde que os mórmons tinham transformado Nauvoo em uma cidade-estado no Illinois da década de 1840. Claro que os mórmons se afastaram do Estado devido a suas crenças e, quando 1967 chegou a Haight-Ashbury, muita gente queria que os hippies tivessem o mesmo fim. (Os mórmons acabaram sendo expulsos de Nauvoo por determinação da lei.)
Na manhã estranhamente ensolarada de 14 de janeiro de 1967, os poetas Allen Ginsberg e Gary Snyder lideraram uma marcha de oração em um círculo que andava em sentido horário ao redor do campo de pólo em Golden Gate Park. O campo estava sendo preparado enquanto caminhavam - estava sendo abençoado em um ritual hindu de purificação - para uma assembléia de peregrinos que ficaria conhecida como "The Gathering of the Tribes for a Human Be-In" (algo como "A congregação das tribos para uma inserção humana"), a primeira grande reunião da contracultura hippie. Já no início da tarde, o local estava lotado com 20 mil pessoas celebrando a fraternidade recém-descoberta. Os organizadores desse evento - principalmente os editores do jornal clandestino The Oracle - recrutaram as melhores bandas de Bay Area, entre elas Grateful Dead, Jefferson Airplane, Country Joe and the Big Fish, Big Brother and the Holding Company e Quicksilver Messenger Service, todas tocando de graça. Também convidaram o filósofo e psicólogo Alan Watts; o ativista antiguerra Jerry Rubin; os poetas Ginsberg, Snyder, Michael McClure e Lenore Kendell; e os gurus psicodélicos controversos Timothy Leary e Richard Alpert. Estenderam convites especiais a ativistas radicais da Universidade da Califórnia em Berkeley, que consideravam os hippies como pessoas passivas e hedonistas afastadas demais da política. Allen Cohen, editor do The Oracle, escreveu: "Uma união de amor e ativismo anteriormente separados por dogmas categóricos e por rotulação finalmente ocorrerá, cheia de êxtase (...), de modo que uma revolução formal possa se realizar".
Os Diggers, um coletivo de agitadores de rua e guardiões da comunidade de Haight-Ashbury, serviram sanduíches de peru; a carne fora fornecida por Owsley Stanley, que produzia as drogas psicodélicas mais fortes e refinadas disponíveis. Ele também forneceu ácido "White Lightning" em grandes quantidades para a ocasião. Quando tudo terminou, os organizadores estavam radiantes: os outsiders dos Estados Unidos finalmente estavam achando lugar onde firmar os pés e havia um futuro a ser vivido em um sonho coletivo. O mais importante foi que o "Be-In" anunciou mais uma vez que São Francisco era uma cidade fronteiriça, só que essa fronteira era de um tipo totalmente novo.
Ao observar o desenrolar do evento durante o dia todo, Emmett Grogan, o doutrinário e idealista mais conhecido dos Diggers, enxergou um engodo e problemas enormes no horizonte. Em sua autobiografia, Ringolevio, escreveu que estava aborrecido com os organizadores do "Be-In" por "atrair um número desproporcional de garotos para o bairro (...) que caíram no 'Conto do Vigário' e ficavam achando que viveriam confortavelmente na pobreza, esperando encontrar seu lugar no reino de amor". Apesar de Allen Ginsberg demonstrar disposição mais otimista, houve um momento, como viria a se lembrar posteriormente, quando, ao olhar para as multidões ondulantes do "Be-In", sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Ginsberg virou-se para o colega e poeta Lawrence Ferlinghetti, que gerenciava a livraria City Lights, em São Francisco, e disse: "E se estivermos todos errados?".
Para dizer a verdade, nunca houve verão do amor nenhum em São Francisco em 1967. Mas, nos meses seguintes ao "Be-In", Haight-Ashbury transformou-se em um vilarejo de muitas discussões e inquietação. Líderes comunitários e a polícia previram a chegada de qualquer coisa entre 50 mil e 200 mil visitantes a Haight até o final do verão - números que, independentemente da contagem final, poderiam se transformar em desastre humanitário em uma das principais cidades dos Estados Unidos.
No início de abril, os líderes de Haight anunciaram a formação do "Conselho para o Verão do Amor". Em maio, entrou em funcionamento 24 horas a Central Telefônica Haight-Ashbury, que abriu para ajudar as pessoas a achar lugar para dormir ou comer e para guiá-las em caso de crise. No mês seguinte, uma clínica com atendimento gratuito e também aberta durante todas as horas do dia começou a atender com 30 médicos voluntários. A essa altura, o jornal The Oracle já recomendava com insistência que os peregrinos ficassem longe da cidade - se fossem para lá, que levassem dinheiro, roupas e sacos de dormir.
Nesse ínterim, a cena das boates e a nova geração de bandas de São Francisco continuavam a dar frutos. Jefferson Airplane foi a primeira sensação popular que surgiu de Haight. O segundo LP do grupo, Surrealistic Pillow (1967), chegou à terceira posição da parada de álbuns e rendeu dois singles notáveis: "Somebody to Love" e "White Rabbit". A Country Joe and the Fish, de Berkeley, foi uma das poucas bandas de destaque na cena a colocar a política radical em primeiro plano e seu primeiro álbum, Electric Music for the Mind and Body (1967), continua sendo até hoje uma das melhores obras da psicodelia de São Francisco. Apesar de só ter lançado seu primeiro disco em 1968, o Quicksilver Messenger Service era o grupo mais alucinado de todos de São Francisco, com seqüências extensas de canções e passagens instrumentais hipnotizantes.
A ovelha negra de São Francisco era a Big Brother and the Holding Company e sua vocalista Janis Joplin. Apesar de os músicos carregarem consigo a reputação de fazer performances desajeitadas, sua inesquecível participação em Monterey Pop (1968), filme de D.A. Pennebaker, transformou Joplin na maior estrela de Haight. O único probleminha nisso é que ela, pessoalmente, desprezava drogas psicodélicas: Janis e alguns dos outros integrantes da Big Brother preferiam o álcool (referiam-se a si mesmos como "alcodélicos") e a heroína. Posteriormente, Joplin repudiou a comunidade que a adotara. "É uma fraude", disse, "a porcaria toda dessa cultura. Ficam reclamando da lavagem cerebral que sofreram com os pais e fazem a mesma desgraça".
Nas semanas que precederam o verão de 1967, o single "San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair)", sucesso na voz do cantor de folk Scott McKenzie, estava em todas as rádios pop. A ingenuidade da promessa de sol era de enlouquecer: "For those who come to San Francisco / Summertime will be a love-in there / In the streets of San Francisco / Gentle people with flowers in their hair" (Para quem for a San Francisco / O verão vai ser só amor / Nas ruas de San Francisco / Pessoas gentis com flores no cabelo). Havia algo indubitavelmente adorável nessa canção. A utopia que a música vislumbrou - assim como todas as utopias - era ilusória, mas seu mito então se transformara em chamariz inabalável.
Quando o verão do amor de fato se iniciou, drogas mais pesadas se infiltravam em Haight. De acordo com o relato de Martin Torgoff em Can't Find My Way Home: America in the Great Stoned Age, 1945-2000 (Não consigo encontrar meu caminho de volta: os Estados Unidos em sua era mais drogada), uma nova substância, a STP (sintetizada por Owsley) tinha começado a circular em um festival de solstício de verão, no dia 21 de junho. STP é a sigla de "Serenidade, Tranqüilidade, Paz", apesar de a droga não proporcionar nada disso. Ela induzia a um estado psicodélico que durava até três dias - o que não era nada agradável para muita gente. Torgoff calcula que 5 mil pessoas tenham consumido STP durante a reunião do solstício de verão e, durante três dias, os pronto-socorros de São Francisco se encheram de drogados em bad trips. Parece que o evento correspondeu ao declínio do interesse pelas drogas psicodélicas. "O elemento criminal estava crescendo", Carolyn Adams (conhecida como Mountain Girl in the Haight - a Garota da Montanha de Haight - e que tinha sido casada com Jerry Garcia) declarou a Nicholas von Hoffman em We Are the People Our Parents Warned Us Against (Foi contra gente como nós que nossos pais nos alertaram). "A coisa da liberdade estava se transformando na liberdade de só fazer merda em público - a liberdade de quebrar uma garrafa, a liberdade de bater em alguém, a liberdade de pisar em uma pessoa que estivesse sentada no chão. (...) Esses elementos fortes de destruição de repente tinham entrado naquela festa de rua linda que acontecia desde o 'Be-In'." Os integrantes do Grateful Dead tinham começado a sondar outros lugares para morar com a família.
No início de agosto, o beatle George Harrison e sua mulher, Pattie Boyd, fizeram uma curta visita a Haight. Harrison, que estava sob os efeitos do LSD ao chegar, caminhou até Panhandle (que é a continuação do Golden Gate Park). Não demorou muito até que ele fosse notado e que lhe pedissem para cantar uma música. Ele tocou alguns acordes em uma guitarra que alguém lhe entregou, tentando se achar em "Baby You're a Rich Man", mas viu que a experiência era desconcertante e desistiu rapidinho. Depois, Harrison diria que estava esperando uma coisa um pouco mais urbana, como a cena psicodélica de Londres. Em vez disso, ficou apavorado com os "adolescentezinhos revoltantes, cheios de espinhas", que encontrou em Haight-Ashbury e, antes de deixar São Francisco, resolveu não tomar mais LSD.
Quando o verão do amor tinha terminado, em setembro, mais de 75 mil pessoas tinham passado por Haight-Ashbury. "Era como se alguém tivesse chegado com um lança-chamas", o poeta Michael McClure disse posteriormente. No mês de outubro, Ron e Jay Thelin fecharam a Psychdelic Shop e deixaram um aviso na porta: "O Nebraska precisa mais de vocês". Os integrantes do Grateful Dead não saíram a tempo: no dia 2 de outubro, a polícia deu uma batida na casa deles em Ashbury Street e prendeu dois deles por posse de drogas. Quatro dias depois, os Diggers e outras pessoas fizeram um enterro simbólico da "Morte do Hippie/Nascimento do Homem Livre" na esquina da Haight com a Ashbury, apesar de ninguém ter acreditado muito que o movimento hippie estivesse de fato morto.
Diversos moradores de Haight-Ashbury se mudaram para comunidades auto-sustentáveis no campo, espalhadas por toda a Califórnia e em outros lugares dos Estados Unidos. Muitos outros atravessaram a baía e foram para Berkeley e para áreas em torno de Oakland. Berkeley - que tinha sido ponto de foco de ativismo relacionado às liberdades civis e à política radical desde o "Movimento da Liberdade de Expressão", em 1964, e também testemunhou eventos extraordinários em 1967 (cujo auge foram manifestações ferozes contra a convocação à guerra em outubro, em Oakland, que acabaram se tornando o ponto de virada do movimento antiguerra que só fazia se expandir nos Estados Unidos). Outros habitantes de Haight-Ashbury - músicos, ex-líderes de comunidade, lojistas - mudaram-se para o norte. Os mais notáveis desses imigrantes foram os integrantes do Grateful Dead.
Foi o Grateful Dead que ficou conhecido como "a banda do povo" em Haight-Ashbury: o grupo musical que se importava com seus seguidores e que, com freqüência, participava de eventos beneficentes ou de shows gratuitos pelo bem da comunidade. Muito depois de o auge de Haight ter ficado para trás, era o Grateful Dead que continuava dando exemplos de camaradagem e de compaixão. Apesar de os integrantes terem deixado São Francisco para viver na calma bucólica de Marin, eles carregaram consigo um quê do melhor espírito de Haight durante as três décadas que passaram viajando pelo mundo. De maneira geral, as pessoas que se reuniam para assisti-los formavam uma sociedade dispersa que, ao se encontrar, revivia o ideal das festas de São Francisco de 1966 e 1967 - possibilidade que existiu enquanto o Dead durou.
Agora, parece que já faz muito tempo que um vilarejo urbano era capaz de incomodar e de animar uma nação inteira. O que aconteceu em São Francisco foi considerado uma fissura nas certezas modernas - que podia ser tanto praga quanto maravilha. Nos anos que se passaram, as transformações que ocorreram em Haight e em bairros, cidades e centros universitários parecidos em todo o mundo foram apontadas como fonte de diversos dilemas sociais subseqüentes, inclusive problemas com drogas e atividade sexual juvenil endêmica. O movimento hippie da década de 1960, segundo o relato de críticos conservadores (e de pessoas do alto escalão do atual governo federal dos Estados Unidos), feriu - e até mesmo corrompeu - a civilização norte-americana. A verdade é que o vício em narcóticos legais nos Estados Unidos já era uma praga social muito antes da popularização da maconha e das drogas psicodélicas, e a liberdade da atividade sexual se tornara mais permissiva depois do advento da pílula anticoncepcional na década de 1950. De todo modo, a tolerância cada vez maior da sexualidade e da comunicação pública de idéias controvertidas representou um avanço significativo na nossa sociedade.
Houve ainda outros efeitos que também foram obviamente enriquecedores. A crença cada vez maior entre os envolvidos na contracultura na primazia do mundo natural em detrimento do materialismo moderno logo levou à noção mais aguçada da conexão com o ambiente. A contracultura ajudou a fazer avançar o movimento ambientalista como algo global. O movimento hippie também teve forte influência sobre como os norte-americanos enxergavam, julgavam e toleravam uns aos outros - apesar de essa mudança ter se dado de maneiras erráticas e complexas. Inicialmente, muito disso se tornou visível em questões de aparência. Em 1967, por exemplo, alguns rapazes usavam o cabelo pelo ombro. Essa não era uma ruptura pequena com o estilo do século 20: para algumas pessoas, anunciava um caráter feminino suspeito e, para muitas outras, era um emblema de práticas radicais que eram consideradas uma afronta aos valores norte-americanos. (O filme Sem Destino - Easy Rider, de 1969, é em parte sobre isso: as pessoas eram capazes de arriscar a vida por causa de suas diferenças.) No entanto, cada vez mais gente foi adotando esses estilos e, quando a década de 1970 chegou, cabelo comprido não significava nada além de gosto pessoal.
Mais importante, muitas pessoas começaram a fazer experiências com maconha, apesar de algumas delas não terem nenhuma devoção particular com o que consideravam ideais hippies ou radicais. Além do mais, a sociedade passou a aceitar melhor as mudanças na moralidade sexual e nas convicções políticas. Será que tudo isso era progresso? Se não era, certamente era uma mudança enorme, e apesar de vários exemplos de desvio e não-conformismo continuarem sendo objeto freqüente de escárnio a tolerância e a liberalização social promoveram alguns avanços valiosos que nunca foram desfeitos.
Foi assim que o espírito que é identificado com 1967 se disseminou pelo mundo. Foi assim que transformou as possibilidades sobre como a vida e a comunidade podiam ser vividas, e também como novas formas de democracia podem surgir das periferias da sociedade norte-americana. Esse processo não acabou por reformular as instituições, como algumas pessoas que se envolveram na contracultura esperavam que acontecesse, nem serviu para provocar um rompimento marcante e sem ambigüidade com o mundo do passado. No entanto, serviu para reconfigurar, de modo abrangente, a cultura e os modos norte-americanos no decorrer dos últimos 40 anos.
O que aconteceu em São Francisco, e em boa parte da cultura em 1967, continua aqui, gostemos ou não. Agora, boa parte já foi assimilada, mas, naquele ano, transformações radicais pareciam estar em todos os lugares - na música, nas ruas, no noticiário, dentro de casa - e tudo parecia assustador e provocante. Aquela atmosfera formou a dinâmica central da guerra de valores que se transformou na história dos Estados Unidos no final da década de 1960 e no início da de 1970. Cada lado achava que havia muita coisa em jogo - nada menos do que o destino da alma da nação. A história do nosso tempo desde então tem sido uma reação - um esforço de retornar ao espírito de transformação e resistência daquele período, e de assegurar que nada como aquilo possa voltar a acontecer. Mas nunca poderá ser completamente desfeito. A ressonância daquela ruptura continua informando quase toda disputa política e ruptura cultural importante do nosso tempo. De um jeito ou de outro, as discussões sobre São Francisco em 1967 nunca vão terminar.