Adeus aos Reis

Redação

Publicado em 11/08/2015, às 16h15 - Atualizado em 12/08/2015, às 19h17
<b>BATALHANDO DURO</b><br>
(A partir da esq.) Alex Lifeson, Geddy Lee e Neil Peart em Los Angeles, no mês de abril. - Peggy Sirota
<b>BATALHANDO DURO</b><br> (A partir da esq.) Alex Lifeson, Geddy Lee e Neil Peart em Los Angeles, no mês de abril. - Peggy Sirota

Aos 62 anos, ele parece um Tom Hanks genérico, com um nariz proeminente e olhos castanho-vivos. É alto, usa camiseta e calça pretas e tênis Prada; tem braços musculosos e peludos e se move como um atleta, apesar de dizer que, na juventude, era um fracote.

Peart é bem mais simpático do que se esperaria de alguém que escreveu a letra do maior hino antissocial do rock, “Limelight” (“Não posso fingir que um estranho é um amigo há muito tempo esperado”), com parágrafos precisos e longos. Um autodidata rigoroso e um autor talentoso e quase obsessivo, já escreveu tantos livros, ensaios e letras que não consegue evitar incluir notas de rodapé na conversa: “Quando escrevi sobre isso, disse...”

Os fãs de Peart o consideram o maior baterista vivo do rock, e seus colegas instrumentistas parecem concordar: foi eleito 38 vezes o melhor pelos leitores da revista Modern Drummer. Mesmo aqueles alérgicos ao espetáculo de talento inumano exibido em baterias brilhantes e giratórias conseguem admirar o talento dele para a composição rítmica e para o drama: fãs do Rush sabem que as batidas hipersincopadas e as viradas ousadas dele se tornaram ganchos pop.

Peart gosta de fazer algumas perguntas essenciais a si mesmo. Uma delas é: “Qual é a coisa mais excelente que posso fazer hoje?” A resposta o leva a viajar entre shows do Rush em uma moto BMW em vez de ônibus ou avião (criando pesadelos de cronograma para os empresários da banda) e embarcar em viagens extracurriculares de moto pela África Ocidental, China e Europa. O objetivo dele é preencher cada minuto da vida com o máximo possível de “muito”.

A outra questão, feita diante de qualquer dilema moral, é: “O que meu eu de 16 anos faria?” Quando adolescente, ele era um desajustado CDF em um subúrbio de classe média a meia hora de Toronto, no Canadá. O jovem Peart fazia permanente no cabelo, usava capa e botas roxas para pegar o ônibus, rabiscou “Deus está morto” na parede do quarto e se metia em encrenca por batucar na carteira durante a aula.

Em seus primeiros anos na música, abrindo para praticamente todas as grandes bandas da década de 1970, Peart e seus companheiros no Rush – o vocalista e baixista, Geddy Lee, e o guitarrista, Alex Lifeson – começaram a dominar a arte de não ceder. Ofereciam muito a seus superfãs ao mesmo tempo que ignoravam todas as outras pessoas, e isso deu bastante certo. Há bandas bem esquisitas, mas nenhuma tão esquisita nem tão grandiosa. Eles sempre souberam do desdém em relação ao Rush, especialmente vindo de outros músicos que se apresentavam antes ou depois deles em shows. “A maioria das bandas tinha medo do Rush”, diz o diretor de iluminação, Howard Ungerleider, que trabalha com eles há anos. “O Rush tocava melhor do que eles e por isso eles detestavam a banda.”

Em cada data da turnê que o trio acabou de fazer pela América do Norte, os integrantes revisitaram o catálogo da carreira em ordem inversa. Praticamente toda a segunda metade do show foi dedicada à década de 1970, mostrando a banda em sua forma mais pura, estranha e, provavelmente, mais incrível.

Na época, eles tinham músicas tão épicas que continuavam de um álbum para o outro, como a memorável “Cygnus X-1: Book One: The Voyage”. Nessas canções, Lee tocava o baixo de forma contundente enquanto gritava como se tivesse um pedal de overdrive na garganta, atingindo notas que faziam Robert Plant soar como Leonard Cohen. Peart casava polirritmos com polissílabas e Lifeson reunia riff s precursores do thrash, trechos acústicos virtuosos, acordes ressonantes e partes cada vez mais extravagantes. A banda era mais audaciosa e pesada que seus imponentes antecessores no rock progressivo, o Yes e o Genesis. “Éramos jovens e bobos, corajosos e divertidos”, reflete Peart.

À medida que os anos 1980 se aproximaram, o Rush descobriu a concisão e os sintetizadores, gravando faixas que entraram direto para o cânone do rock clássico, entre elas “The Spirit of Radio”, “Freewill”, “Tom Sawyer” e “Limelight”.

Mesmo com o cabelo mais curto e usando gravata fininha, a banda afirmava a pureza do formato power trio: Lee era multitarefas, dando conta do baixo e dos vocais enquanto também usava cada membro disponível para tocar sintetizadores e disparar sons de apoio – um feito que levou o virtuosismo ao nível de apresentação de circo. “Em todo ensaio eu gritava: ‘Não consigo fazer isso!’ Só que parecia errado ter outro cara no palco conosco. Falávamos sobre isso – ainda falamos! Mas é uma zona proibida, não dá”, comenta Lee. Eles tinham regras próprias e as seguiam – Peart nem tocava a mesma virada mais de uma vez em uma música.

O Rush tem a mesma formação há quatro décadas, desde que Peart substituiu o baterista original, John Rutsey – um fã de Bad Company que era avesso a tempos musicais estranhos e turnês nos Estados Unidos –, pouco depois da gravação do primeiro álbum, o disco homônimo de 1974. Raramente têm uma discussão. “Nunca somos agressivos uns com os outros”, afirma Lee. “Então, se discordamos, fechamos a cara. É meio que o jeito canadense, mas costumávamos adorar bater no Alex quando ele dizia algo estúpido.”

Nos últimos tempos, a banda vem se aproximando do centro da cultura pop, tendo participado de um documentário de sucesso, Rush: Beyond the Lighted Stage (2010), e entrado em 2013 para o Hall da Fama do Rock and Roll, mas o fim está próximo – ou quase.

Os integrantes permitiram que o empresário deles, Ray Danniels, incluísse uma frase no release de imprensa observando que as datas mais recentes “provavelmente seriam a derradeira turnê dessa magnitude” – uma versão muito canadense da despedida estrondosa que os promotores queriam. “É bem provável que seja nossa última turnê”, afirma Lee. “Não posso dizer ao certo, mas isso não significa que não queiramos mais trabalhar juntos. Não significa que não faremos outro projeto criativo. Tenho ideias para shows que não envolvem uma turnê.”

“Acho que não temos muita dificuldade em pensar nela como possivelmente a última”, acrescenta Lifeson, de 61 anos, que tem problemas de saúde e quer passar um tempo com os netos.

Peart detesta fazer turnês desde o primeiro mês da banda na estrada, em 1974, tendo ameaçado se tornar apenas músico de estúdio já em 1989. E as preocupações do baterista só se acentuaram. Por exemplo, agora há as dolorosas e longas separações de sua filha de 5 anos, Olivia. “Percebi na última turnê que é bom para ela quando estou lá e muito ruim quando não estou”, conta Peart, que se mudou do Canadá para Los Angeles na virada do século. O músico e Carrie Nuttall, com quem é casado há 15 anos, planejavam informar Olivia sobre a turnê apenas na semana anterior ao primeiro show. Ele estava preocupado com a reação da menina.

O sexagenário artista também vem questionando sua capacidade física de tocar continuamente em apresentações do Rush, uma tarefa que comparou a “correr uma maratona e resolver equações ao mesmo tempo”, mas, até agora, está se surpreendendo. “Tudo dói, mas não tem problema”, garante. “Fico contente de ainda conseguir fazer isso – não apenas no nível que desejo, mas cada vez melhor.”

Naquela manhã, os três integrantes do Rush chegaram ao Mates Studios, em Los Angeles, uma estrutura semelhante a um armazém em U no nada glamouroso bairro de Van Nuys, onde, desde o final dos anos 1980, fica o principal local de ensaio para bandas que tocam em estádios. Em uma parede de tijolos, um arsenal enorme de guitarras os aguarda, além de um tapete preto enorme com o logo da R40 Tour. Lee usa 26 baixos antigos diferentes na turnê: “É um desfile sobre a história do baixo”, diz. Peart toca duas baterias diferentes e, para os ensaios, elas estão uma ao lado da outra. Uma é sua dourada atual, com logotipos dos álbuns mais recentes do Rush gravados a laser; a outra, para as músicas antigas, é uma recriação exata de seu instrumento cromado de 1978, finalizado com a imagem do peladão da contracapa do disco 2112 (1976) no bumbo.

Peart, que está usando seu chapéu de palco, um modelo arredondado em estilo africano, acha a bateria antiga desafiadora. Ele é um baterista fluido e relaxado agora, mas antes era uma presença tensa e carrancuda atrás dos pratos. “Tudo isso é pensado, tudo é confortável”, diz, gesticulando em direção ao instrumento mais novo. “Posso tocar sem olhar. Com a velha bateria, tudo é estúpido – como eu era na época.”

Lee exibe sua configuração de pedais de baixo, que se tornam uma espécie de sintetizador de pés, organizados como teclas de piano. “Às vezes é um teclado. Outras, uma máquina de efeitos sonoros. Como se eu já não tivesse coisa sufi ciente para fazer!”

A primeira data da turnê foi em Tulsa, Oklahoma, em maio. “Ainda não estamos muito bons”, disse Lifeson antes de cair na estrada. “Mas estamos treinando!”

“Estamos treinando as partes em que erramos”,acrescentou Lee. Eles costumavam provocar Peart sobre sua insistência em fazer um mês de preparação solo antes do início

dos ensaios em grupo, dizendo que ele era o único homem do mundo que “ensaia para ensaiar” – agora, todos fazem o mesmo. Lifeson, que mora perto de Lee em Toronto, tem o método mais simples: põe músicas do Rush no estúdio de casa e toca junto.

Hoje, o Rush está repassando o primeiro set, que começa com músicas do mais recente álbum da banda, Clockwork Angels (2012). É um LP conceitual, com um retorno aos motivos de ficção científica que Peart tinha abandonado há muito tempo. O produtor do trabalho, Nick Raskulinecz, cresceu ouvindo a banda e a pressionou a retomar seus aspectos mais característicos, implorando para Lee usar seu registro vocal mais agudo e encorajando Peart a fazer um solo de bateria bem no meio de uma faixa sinuosa chamada “Headlong Flight”.

Geddy Lee é uma presença formidável – magro, de aparência jovial, focado e deixando transparecer uma ponta de frieza por trás de sua afabilidade. “Ele pode intimidar porque é muito inteligente e um homem do mundo”, afirma Raskulinecz. “Na minha experiência, Geddy é o líder da banda.”

Com o cabelo na altura dos ombros, nariz grande e óculos à la John Lennon, com certeza Lee é o integrante mais reconhecível. Não teria problemas em se manter ocupado sem o Rush – ele e a esposa, Nancy Young, têm casa em Londres e Toronto e passam muito tempo viajando. É um colecionador ávido de muitas coisas, incluindo arte, vinho e bolas de beisebol, mas está muito menos ansioso para se aposentar do que Peart e Lifeson. “Sou o mais empolgado para trabalhar”, afirma. “Amo montar os shows, amo tocar para as pessoas. Já o Alex e o Neil têm outras demandas que não tenho.”

Lee é amigo de Alex Lifeson desde que os dois eram adolescentes nerds nos anos 1960. O guitarrista o apresentou a Nancy, com quem o cantor se casou em 1976. Nascido Gary Lee Weinrib, ele é filho de sobreviventes do Holocausto e atribui parte de sua determinação ao legado dos pais. Eles se conheceram em um campo de trabalhos forçados na Polônia por volta de 1941 e já tinham se apaixonado quando foram presos em Auschwitz. Quando os Aliados liberaram os campos, o pai decidiu procurar a mãe e a encontrou em Bergen-Belsen, que havia se tornado um acampamento de pessoas que não tinham para onde ir. Eles se casaram ali e se mudaram para o Canadá. Mas anos de trabalho forçado prejudicaram o coração do pai, que morreu aos 45 anos, quando Lee tinha 12.

Então, a mãe teve de ir trabalhar, deixando os três filhos aos cuidados da avó. Foi aí que Lee transformou o porão em um espaço de ensaio para a banda. A mãe de Lee ficou arrasada quando o filho anunciou que estava abandonando o ensino médio para tocar rock. De certa forma, ele ainda quer compensá-la por isso. “Toda a merda que a fiz passar, além do fato de que ela havia acabado de perder o marido. Senti que tinha de garantir que valia a pena. Tipo: por que fiz tudo aquilo com ela? Queria mostrar que era profissional, que estava trabalhando duro, não era só uma porra de um doido.”

Em Los Angeles, Neil Peart para em um semáforo e vê uma mulher queimada de sol e com olhos tristes mendigando no acostamento. Ele tem o hábito de doar aos sem-teto (“As pessoas perguntam: ‘Por que não arranjam um emprego?’ Eles não conseguiram”, afirma), então me pede para dar US$ 20 a ela. “Logo te devolvo”, garante.

“Muito obrigada!”, ela exclama. “Que tipo de carro é esse?”

Peart chega a um edifício protegido por portão a alguns quilômetros de distância da casa dele, local que faz as vezes de escritório e garagem para sua coleção de carros antigos. Além do Aston Martin, ele tem um Jaguar E-Type, um Corvette, um Maserati conversível e um Lamborghini Miura, todos dos anos 1960 e prateados, exceto o Lamborghini, que paredes estão cobertas com pôsteres de carros e fotos que Peart tirou nas viagens que fez.

Ele suavizou seu forte racionalismo nas últimas décadas, especialmente depois de duas tragédias difíceis de suportar. Em 10 de agosto de 1997, a filha dele de 19 anos,

Selena, morreu em um acidente de carro no percurso até a universidade onde estudava, em Toronto. Apenas cinco meses depois, a mãe de Selena – Jackie, esposa de Peart – foi diagnosticada com câncer terminal e morreu logo a seguir. “Jackie recebeu a notícia quase com gratidão”, Peart escreveu em sua angustiante autobiografia, Ghost Rider – A Estrada da Cura. Ele falou aos colegas de banda para considerá-lo aposentado e embarcou em uma viagem solitária de moto pelos Estados Unidos, procurando sentido e consolo.

O músico se casou novamente em 2000 e voltou para o Rush no ano seguinte. A letra da canção “Roll the Bones” veio à mente mais de uma vez em seus anos de escuridão. “Meu Deus, essa música”, ele diz, jantando em uma churrascaria brasileira perto de casa. “O que ela acabou representando. Sabe quando você se pergunta ‘por que isso acontece?’ Quando algo realmente ruim acontece, você busca o porquê. Pensei no sobrenatural: ‘Alguém deve ter jogado uma maldição sobre mim, devo ter feito algo realmente horrível, Deus deve estar puto comigo’. Tive de peneirar tudo aquilo procurando um sentido.” No entanto, ele ainda prefere a explicação “porque acontece” àquela que diz que os horrores do destino fazem parte de um plano divino. “Faça um favor a si mesmo”, ele afirma. “Nunca me diga ‘tudo acontece por um motivo’, porque te mato.”

Perto da meia-noite, faltando menos de 24 horas para o início da turnê do Rush, Alex Lifeson está ajoelhado em uma almofada de um sofá à beira da janela aberta em seu quarto de hotel, expirando fumaça de maconha no ar úmido de Tulsa. Começa a tossir violentamente. “Bom, esse é o problema com a maconha atualmente”, diz, passando o baseado. “Expande muito em seus pulmões.” Algumas horas antes, em um jantar embriagado, pergunto a ele se a erva o ajudou a compor músicas no Rush. “Talvez só em 80% do tempo”, Lifeson responde, gargalhando. “Acho que fumar maconha pode ser um agente criativo muito bom. Só que quando você está no estúdio tocando, fica desleixado” (Lee deixou o hábito no início dos anos 1980; Peart diz: “Gosto de maconha, mas não vou defendê-la”). Lifeson arremata: “Cocaína é a pior coisa – a não ser que você queira sentir o coração disparado enquanto está deitado no colchão às 7h da manhã quando os passarinhos estão cantando”.

Lifeson era fã de ecstasy no início dos anos 1990. “Minha mulher é antidrogas, mas a convenci a experimentar. Dançamos e depois falamos por horas sobre coisas profundas e pessoais. Nossa relação estava ruim e aquilo abriu as portas.”

Como Lee, Lifeson é filho de imigrantes – no caso, da Iugoslávia. Aos 16 anos, a namorada dele, Charlene, ficou grávida do primeiro filho do casal (eles se casaram cinco anos mais tarde e continuam juntos) –, o que adicionou urgência à necessidade de fazer sucesso com a encarnação inicial do Rush. “Foi uma preocupação, mas sempre tive o plano B de ser encanador”, ele diz. Em linha com sua personalidade – talvez mais bem demonstrada pelo discurso de aceitação no Hall da Fama, constituído apenas pelas palavras “blá, blá, blá” –, Lifeson é um animal musical mais instintivo e indomado do que os colegas de banda. “Ele é espontâneo”, afirma Lee. “É um dos guitarristas mais subestimados – durante anos não apareceu em listas especializadas de melhores guitarristas. Acho que é porque boa parte do brilhantismo dele é sutil, como os acordes que ele inventa e a escolha incomum de notas.” O músico enfrentou crises sérias de saúde. Recebe injeções para controlar a artrite psoriática e foi hospitalizado por anemia devido a úlceras hemorrágicas há alguns anos, tendo recebido transfusões de sangue. Durante anos também teve problemas para respirar, sentindo que nunca conseguia encher os pulmões. Quando passou por uma cirurgia recente de úlcera, seu médico descobriu o motivo. “Meu estômago estava atrás do coração, pressionado contra o pulmão”, conta. Tudo voltou ao lugar e ele está empolgado com a possibilidade de tocar em shows sem perder o fôlego.

No quarto de hotel, Lifeson pega seu violão PRS – um modelo que leva o nome dele – e toca por muito tempo, de olhos fechados, costurando harmoniosamente uma série de acordes bucólicos e riff s potentes que remetem a Led Zeppelin III (1970). Nada disso soa como o Rush. Ele fez o mesmo na noite anterior, voltando ao quarto depois de um ensaio de três horas com a banda. “Sentei e toquei guitarra aqui, bêbado e chapado, por uma hora. Posso sentar e tocar durante horas para minha própria curtição. Não tem nada a ver com o Rush. É só um puro exercício de alegria.”

Na noite seguinte, o Rush saiu em turnê, e todo o ensaio meticuloso foi atrapalhado pelo entusiasmo dos fãs: a multidão era tão enlouquecidamente alta que os integrantes da banda não conseguiram se ouvir nas caixas de retorno. “Todas as nossas configurações ficaram obsoletas”, diz Lee, alegre entre goles de champanhe em uma sala com cortinas pretas no camarim, logo depois do show. Como de costume, Peart foi embora de moto após a apresentação, mas os outros dois e a equipe ficaram para comemorar.

“Meses de preparação não significaram nada”, Lifeson acrescenta, dando de ombros. Mas eles apreciaram o fervor. “Havia um cara na segunda fileira durante ‘Xanadu’. Achei que a cabeça dele ia se soltar e rolar pelo chão. Achei que teria um enfarte”, diverte-se Lee.

Durante o show, o vocalista apresentou a faixa “Jacob’s Ladder”, de Permanent Waves (1980), como “uma música que nunca tocamos ao vivo”. Ele estava errado: o Rush não apenas a tocou como ela está em um LP ao vivo, Exit... Stage Left (1981). Os fãs apontaram o fato na internet. Lee mal pode acreditar que cometeu essa gafe; empoleirado em um sofá, procura informações sobre o Rush no celular. “Foi mal”, diz. “Não me lembro de ter tocado ‘Jacob’s Ladder’ ao vivo.” Lifeson imita um fã irritado:

“Odeio esses caras! São uns mentirosos filhos da puta!”

Sugiro que Lee continue dizendo às plateias que a banda nunca tocou a música, só para enlouquecer os fãs. Ele gosta da ideia. “Deveria dizer: ‘As pessoas insistem que tocamos essa antes – estão falando merda!’” Lifeson imita a voz do personagem Cartman, de South Park, como se ele fosse Geddy: “Sou Geddy Lee, e quando digo que não tocamos antes é porque não tocamos antes!”

Eles ainda se divertem, esses velhos amigos, e de repente parece impensável que seja o fim. Peart estava quase bobo no palco, fazendo giros a mais com as baquetas, dando um sorriso enorme durante “Xanadu”. Sua filha tinha reagido melhor do que ele imaginava à notícia da turnê. “Acho que o Neil está se sentindo mais otimista, porque tudo parece mais fácil do que ele esperava”, comenta Lee.

Por sua vez, Lee não conseguiu terminar o show com um adeus de verdade. “Obrigado por 40 anos incríveis, somos muito gratos”, gritou depois que a banda concluiu a retrospectiva com o primeiro hit da carreira, “Working Man”. Pouco antes de sair do palco iluminado, ele olhou para os 19 mil rostos ansiosos e ofereceu um pouco de conforto: “Esperamos ver vocês novamente um dia”.

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