Reinventando-se na televisão, Roger Moreira usa o passado para tentar entender as falhas do mundo contemporâneo
São quase 17h de uma quinta-feira e Roger Moreira está chegando para mais um dia de gravações do Agora É Tarde. Ainda na entrada da sede da TV Bandeirantes, em São Paulo, o músico já é abordado. “Ô Tiririca, me dá um autógrafo”, grita um garoto que estará na plateia da atração comandada por Danilo Gentili. Roger me encara e brinca: “Porra, Tiririca é de foder, não é?” Para a passagem de som, os colegas Mingau, Marcos Kleine e Bacalhau já estão no estúdio. “O que a gente vai tocar hoje?”, pergunta Roger, o líder do Ultraje a Rigor há 30 anos. “Podemos até tocar uma do Arnaldo [Antunes], mas vai ficar mais coxinha”.
Minutos antes da leitura do roteiro para iniciar a gravação, o vocalista solta uma de suas conclusões. “Sabe o que é mais legal? Às vezes, a garotada pergunta: ‘Que música é essa?’. E, porra, é ‘Smoke On The Water’!”, diz. “Estamos ajudando essa molecada de 15 anos a curtir umas coisas bacanas porque a geração dela faz música de merda. Você vê uma garota de 14 anos falando: ‘Eu gostava dessa banda, hoje não gosto mais’. Ela gostava aos 12, e aos 14 ela já tem vergonha!”
Assista ao making of sessão de fotos com Roger.
Duas semanas antes, no salão de festas de um condomínio no bairro do Morumbi, Roger falou tranquilamente sobre os motivos que o levaram a aceitar participar do Agora É Tarde como líder da banda oficial do programa, exibido quatro vezes por semana. “A ideia foi do Danilo, e eu já era fã do David Letterman. Ele me contatou pelo Twitter mesmo e rolou”, explica. “Eu tinha várias objeções no começo. De cara já falei que se fosse cedo eu não iria, porque eu não conseguiria acordar. E, claro, eu não estava acostumado a ter um trabalho com horário fixo. Tipo objeções de velho rabugento mesmo sabe? Mas a Band é aqui perto, e encaixou tudo perfeitamente: o espírito do programa, e até mesmo o nosso, é tirar sarro do que conseguirmos.”
Roger, 56 anos, faz questão de valorizar a atual fase da carreira, embora demonstre certa mágoa com as críticas enfrentadas no início. “Falaram que o Ultraje seria banda de apoio, ou o sexteto do Gentili”, diz. “Acho que o cara se sente meio traído, algo como: ‘Você é meu ídolo e vai ficar lá?’. Porque o brasileiro tem essa ideia, você vai trabalhar – e trabalhar é humilhante. É como na [novela] Avenida Brasil: quer se vingar? Vai limpar meu chão, vai trabalhar para mim.” Em meio ao turbilhão de ideias que solta sem descanso, ele tenta reencontrar a linha de pensamento. “Onde a gente estava mesmo? Ah, então, o Steven Tyler foi jurado do American Idol e foi sensacional! Leo Jaime e Paulo Miklos hoje trabalham na TV. Decadência é o caralho!”
Não que Roger sinta qualquer necessidade de justificar suas escolhas. Aliás, longe disso. Hoje, se há algo que ele consegue transmitir é serenidade e equilíbrio entre a atividade profissional e a vida pessoal. E a intenção é aproveitar ao máximo as oportunidades. “Eu me lembro da época do [programa da MTV] Rock Gol e aquilo era fantástico. Eu não quero ser o Neymar, porra! Eu só quero jogar bola! Eu ainda gosto de surfar e sempre tem um louco: ‘Pô, teu negócio é fazer música’. Mas eu não posso surfar também?”
Embora compreenda os motivos que o levaram a diversificar seu rumo profissional, ele próprio não deixa de transparecer certo ar de desilusão. “Acho que o rock perdeu um pouco do seu sentido. Já nem sei explicar”, divaga. “As pessoas falam em ‘Ah, vamos ter atitude’, e, porra, isso já era brega nos anos 70, imagina agora.” Para Roger, o género ainda é destinado a um público mais jovem e obrigatoriamente deve ser transgressivo aos costumes da época em que está inserido. “A geração do rock anterior à minha tinha muito preconceito com letras em português. Na verdade, nem havia muito, e quando havia, fedia de tão ruim. Era uma época mais psicodélica, então quem fazia letras melhores era o pessoal da MPB, como o Chico Buarque”, relembra. “Com o rock progressivo, tudo ficou mais diluído, era algo mais para ‘superbandas’, e eu achava isso mais pedante do que legal. Aí começou a pintar o punk, New York Dolls, Stooges, e pensei: ‘Massa, agora posso começar a tocar de novo.” Nesse contexto, a intenção inicial do Ultraje a Rigor era mais adaptar as temáticas à língua portuguesa e à cadência do rock: quando cantado em inglês, o gênero soa mais “encorpado”; já em português, tornava-se mais limitado. “Até por isso eu tentava cantar enfatizando as sílabas”, explica. “Mas acho que o nosso maior mérito foi ajudar a introduzir o rock como sendo algo normal.”
Sem conseguir definir com exatidão quando teve o primeiro contato com a música, Roger lembra-se da mãe, que “ouvia Elvis Presley e Little Richard o dia todo”. Estudou violão desde menino, mas a guitarra só apareceu com o surgimento do Ultraje, no início da década de 80. “Aos 12 anos, eu
queria ter uma guitarra. Mas meu pai não deixou porque ‘fazia muito barulho’ e me comprou uma flauta. Olha, meu pai atrasou bastante minha carreira”, brinca. “Mas depois ele me parabenizou. Comecei a cursar arquitetura por causa dele. Larguei a faculdade assim que pude, no terceiro ano. Fui para os Estados Unidos estudar música em Boston, mas acabou não rolando porque era muito caro. Todos os cursos de música que fiz, acabei fazendo por aqui. E me ajudaram muito. Mas grande parte é intuição também.” E, claro, havia o clima de otimismo que dominava o país nos anos 80, com o início da abertura da censura.
“Nós já tínhamos essa pegada bem-humorada, era nossa característica e nada muito pensado”, Roger explica. “Podia não dar em nada, mas pelo menos a gente avacalhava! Mesmo assim, havia muita esperança, tinham diversas bandas, o início do Casseta & Planeta, TV Pirata... O Angeli, o Glauco, o Laerte – dava para perceber mudanças em diversas áreas, uma grande vontade de acabar com o que estava rolando e fazer algo novo. Foi estar fazendo a coisa certa na hora certa.”
O Ultraje a Rigor nasceu para ser uma banda cover. Roger já havia participado de outras bandas na adolescência, mas nenhuma delas vingou. Com o Ultraje a Rigor, já com o baterista Leospa, surgiu a primeira oportunidade. “Fomos tocar em uma festa, em cima da hora. E, cara, arrumamos um guitarrista na rua. Na semana seguinte fomos para um bar e só tínhamos 13 músicas ensaiadas. Precisávamos de 60 para três entradas de uma hora, ensaiamos bastante, tocamos e no começo encheu de amigos. Mas depois logo vira uma farsa!” Não havia um plano para o Ultraje, mas as coisas se desenrolaram naturalmente. “E hoje que já está tudo pronto?”, reclama Roger. “Acham que é só abrir uma conta no Facebook, e não é assim! Demora um tempo. Nós tocamos, tocamos, e quando ouviram falar do Ultraje já tínhamos repertório e público formado. Nada acontece da noite para o dia. E hoje o pessoal vem e me fala: ‘Pô, eu tô ralando há três meses’. Três meses? E não, eu não estava ralando, estava me divertindo. Eu gostava daquilo! Nós gastávamos o que ganhávamos com aluguel de equipamento.”
Roger não tem pudores em admitir que as gerações musicais seguintes não se impuseram ou criaram algo marcante. Faltaria comprometimento com a arte, segundo ele. “Pode até parecer meio arrogante falar ‘arte’, mas no fundo é arte mesmo”, ele reflete. “Eu cresci em uma época muito rica em diversidade musical, dava para conhecer tudo. Hoje, não sei se estou sendo reacionário ou só estou velho, mas, puta que pariu, desliguem esse barulho! É horrível! E analisando como música é horrível mesmo: uma batida eletrônica é um compasso repetido mil vezes. Os caras não compõem nem um verso mais, é só um compasso!”
Roger pausa o discurso para oferecer uma bala. “Tu quer? Eu ando compulsivo, parei de fumar .” Ele aproveita para mexer no celular. Arrumando briga no Twitter? “Ah, o lance com o [comediante Bruno] Mazzeo? Foi infeliz da parte dele, e ele já falou em um momento em que estava todo mundo contra ele”, Roger diz, sobre um comentário de Mazzeo publicado no Facebook, em julho: “No Dia do Rock fico pensando no Ultraje a Rigor, uma das bandas preferidas da minha juventude, vivendo um fim de carreira dramático...”. Irritado, Roger respondeu na lata (“Para falar de decadência, você precisaria, no mínimo, ter estado no topo um dia. Mas você é garoto, tem chão ainda”). Hoje, o músico releva o tema. “Decadente? Foda-se. Eu nem acho isso ofensa, não tenho como ficar no topo o tempo todo. Veja bem, até o Michel Teló deu uma sumida. Hoje só não é decadente o cara do ‘Eu Quero Tchu, Eu Quero Tcha’. Tu não vê ninguém falar de um engenheiro: ‘Cadê suas pontes? Não tenho visto elas, decadente você, hein? Por favor.”
Ativo como é nas redes sociais, Roger jura que se esforça para manter contato com novas bandas. “Eu tento, cara! Mas é complicado. Eu gosto do Retrofoguetes, que faz uma surf music dos anos 70, então acho que nem vale. Gostei do novo disco dos Autoramas, mas eles também já estão na estrada há um bom tempo”, conta. “Ah, acho que eu sou rabugento mesmo! ”
Rabugento ou velho, acima de tudo Roger Rocha Moreira é um nostálgico. “Sinto falta de ter 30 anos! Galera dizer ‘vamos viajar para o Piauí’, entrarmos no carro e irmos! Mas acho que é mais saudade. Era tudo divertido. E aproveitei bem”.
“Uma vez nós fomos ao programa da Angélica lançar ‘Volta Comigo’, uma canção que falava de adultério, usar camisinha...”, ele continua, em sua máquina do tempo particular. “E cantamos no meio das crianças, com as mães na plateia. Eu só pensava: ‘Meu Deus!’. E hoje tem esse politicamente correto, tudo chato para caralho!”
Na semana seguinte, encontro Roger diante do portão de sua casa. Sem desembarcar, ele abre a porta do carro para seguirmos juntos para a gravação do Agora É Tarde. No trajeto, ao som de Chuck Berry, ele parece mais à vontade discutindo futebol – na noite anterior, o São Paulo havia sido derrotado pelo Náutico por 3 a 0. “Eu espero que o Ney Franco dê jeito no time. Na verdade eu não gostava do Leão, cagada mesmo foi terem mandado o Muricy embora. Desde então o time perdeu sua consistência”, ensina, emendando cornetagens ao Corinthians (“era tão bom zoar a falta de um título da Libertadores...”) e à seleção brasileira (“não consigo ver qual é o esquema do Mano. Parece que só temos condições de resolver individualmente”). Para Roger, o atual momento do futebol nacional também explicaria a atual situação do país como um todo: “É meio como Ronaldinho Gaúcho na época do Flamengo – faz umas firulas, e, no final, o lance não dá em nada. Mas o que importa é que foi lindo”.
Inevitavelmente, o congestionamento do horário de pico altera o curso do papo. “Eu já aceitei o fato de estar ruim, mas, porra, falta educação. Se a pista da esquerda é para quem está mais rápido, dentro do limite, então dá passagem. Eu tirei carteira aqui e nos Estados Unidos. No Brasil, você dá um volta no quarteirão e faz uma baliza, o que não te qualifica para dirigir, não é? Ainda mais em São Paulo!” Paulistano, Roger reclama, mas admite o afeto pela cidade. “A verdade é que não temos muita opção. A população tem aquele raciocínio de voto útil, votar em ‘X’ para ‘Y’ não ganhar. Eu vou votar, por exemplo, na Soninha? Mas ela não vai ganhar? Eu só acho que se o PT pegar aqui, fodeu o país!”, critica. “E não é por causa do partido em si. É que um lado não pode deter tanto poder, precisa de um equilíbrio.”
Contundente nas opiniões políticas, Roger tem como um dos passatempos comentar notícias no Twitter e disparar sua metralhadora verbal demodo criterioso. Na vida real, os discursos são semelhantes, mas com ainda mais acidez e caracteres. Para ele, por exemplo, “miséria é falta de cultura”. “Temos que criar condições para que o cidadão saia de uma situação ruim”, prega. “E nesse ponto o Lula foi um grande retrocesso. Ele fez todos acreditarem que não precisamos de educação. ‘Ah, eu fui metalúrgico e cheguei aqui, então você também pode!’ Ele foi um manipulador. Lembra do mensalão? Em um dia ele admite, e depois diz que não sabia. Como não? Você é o chefe dessa bosta! Se não sabia é porque é um banana!”, diz. “Se você quiser falar que ele é um grande manipulador de uma forma bonita, fale ‘ele é dono de uma retórica perfeita’. Ele é nosso Getúlio Vargas. E eu não concordo com isso há muito tempo.” A presidente Dilma Rousseff, porém, acaba ganhando elogios. “Ela tem um pouco menos desse populismo, e não é tão comprometida com o partido. Me surpreendeu muito”, ele comenta. “Sabe, eu não quero que todos tenham uma situação boa por bondade [da minha parte]. É simples: é porque melhoraria para todo mundo! Do que adianta ter uma situação confortável se eu não posso sair na rua? Então, quero que seja melhor para todo mundo.”
Nostálgico incorrigível, ou simplesmente fora de seu tempo, Roger Moreira sempre irá admitir que “na época dele era melhor”. E constantemente evoca os anos 80 para estabelecer comparações e provar seus pontos. “Nós não éramos obrigados a falar disso, e toda a nossa geração – os Titãs, os Paralamas – falava. Mesmo que precisássemos driblar a censura”, diz. “Hoje, na música, quem deveria falar? Ivete Sangalo, Claudia Leitte, o próprio Teló, que são pessoas com um alcance maior. Mas parece que todo mundo ama todo mundo, então não resta muita esperança.”