Empacotados para as novas gerações, os Beatles digitalizam vida e obra pela primeira vez em The Beatles: Rock Band
Alguns dias após o natal de 2006, Van Tofler, o presidente do MTV Music Group, e Dhani Harrison, o filho único de George Harrison, jantavam com amigos em comum em um restaurante no Caribe. Em dado momento, a conversa girou em torno do indisfarçável cansaço de Dhani. "Fiquei a noite toda jogando Guitar Hero II", confessou o rapaz, sorrindo de maneira assustadoramente semelhante a como fazia seu pai. Tofler respondeu, orgulhoso: "Sabe que acabamos de comprar a empresa que criou esse game?" Ele se referiu à Harmonix, produtora responsável pelo jogo eletrônico que reproduz a sensação de tocar músicas por meio de joysticks no formato de guitarras. Visivelmente interessado, Dhani sugeriu, sem piscar: "Então o próximo game que esses caras precisam criar deve ter todos os instrumentos, não só a guitarra. E poderia se chamar 'Rock Band'!" Tofler, incrédulo, só balbuciou: "Acho... que você precisa conhecer o pessoal da Harmonix".
Dhani nem imaginava, mas naquele exato momento, a produção de Rock Band já se encontrava a pleno vapor. Lançado em novembro de 2007, o game deu início a uma das mais meteóricas e rentáveis trajetórias da bilionária indústria do entretenimento digital. Poucos meses mais tarde, após conferir ao vivo a ideia que já povoava sua cabeça, o filho do Beatle mais discreto se sentiu à vontade para sugerir um passo além: um jogo inteiramente dedicado à banda de seu pai. Decidido a trazer o projeto à tona, ele organizou um encontro entre a Harmonix e a Apple Corps - o projeto do "Beatles interativo" precisaria passar pelo crivo de cada um dos "shareholders" do legado do grupo: as viúvas Olivia Harrison e Yoko Ono Lennon, além dos membros originais, Paul McCartney e Ringo Starr.
"Sempre achamos que um jogo dos Beatles seria maravilhoso, mas que jamais iria acontecer. Pelo menos teríamos que tentar", diz Alex Rigopulos, cofundador da Harmonix, a apenas duas semanas do lançamento de The Beatles: Rock Band, o game mais antecipado de todos os tempos. A tensão acumulada durante os quase três anos de trabalho parece não mais existir em seu tom ponderado: ele soa, de fato, aliviado por chegar ao fim de uma longa e tortuosa estrada que envolveu bilhões de dólares, quase 50 anos de material e os protagonistas da mais famosa saga da cultura popular recente.
Após a reunião inicial, se passou um ano até a resolução das barreiras tecnológicas e o refinamento das visões de ambas as partes. "Nem chegamos a falar de dinheiro", lembra Rigopulos. "Eles estavam focados na parte criativa, para ter certeza de que aquilo representaria apropriadamente o legado da banda."
A única exigência da Apple Corps é que The Beatles: Rock Band cobrisse a carreira dos rapazes de Liverpool como um todo. De cara, surgiu a tal "barreira tecnológica": o fato de as gravações mais antigas da banda terem sido produzidas com no máximo dois canais, com os instrumentos juntos, tornava impossível a criação da interatividade proposta pelo game. Foi necessária uma pequena ajuda dos amigos - no caso, Giles Martin, filho do produtor e "quinto Beatle" George Martin. O material dos Beatles não era novidade para Giles, que co-produziu o áudio do musical Love, feito em parceria com o Cirque Du Soleil: foi durante o projeto que ele aprimorou a técnica de separar instrumentos em trilhas distintas - um trabalho artesanal que definiu a viabilidade do game. "O fato de Giles já ter essa experiência acelerou demais o processo", exaltou Rigopulos.
Outro desafio foi ilustrar a fase dos Beatles que não possui registros ao vivo, uma vez que o grupo deliberadamente parou de excursionar em 1966 para se tornar uma banda de estúdio. Para decorar as canções dessa era, a Harmonix elaborou "dreamscapes", cenas de recheado conteúdo lisérgico que interpretam ludicamente os temas. "Me perguntaram se estávamos chapados quando as criamos", despista o produtor Josh Randall. "Talvez tivéssemos um monte de cafeína na cabeça, no máximo." Para a criação das "sequências de sonho", o objetivo, ele diz, era fugir de obviedades. "Em 'Octopus' s Garden', resistimos à tentação de colocar um polvo gigante dançando", brinca. "Era preciso fazer as pessoas terem conexão emocional com os personagens e o espírito da banda."
Lançado em 9 de setembro para três plataformas (PlayStation 3, Xbox 360 e Wii) com o status de cereja do bolo do chamado "Dia Beatles", The Beatles: Rock Band representa um movimento ousado, pelo menos para a banda que jamais disponibilizou suas músicas para comercialização digital. No game, estrelado por versões cartunizadas e sempre sorridentes de Paul, John, George e Ringo, até seis jogadores simultâneos controlam os sons de guitarra, baixo, bateria - com joysticks plásticos que simulam os instrumentos - e vocais - com microfones - em 45 faixas pré-selecionadas do catálogo da banda (álbuns completos e canções avulsas poderão ser adquiridos via download). Enquanto notas coloridas despencam na tela ao ritmo da música, o objetivo é pressionar os botões dos joysticks nos momentos corretos para fazer a faixa soar perfeita. Excesso de erros interrompe a performance, mas os Beatles não são vaiados e expulsos do palco como tradicionalmente ocorre em jogos semelhantes. Em vez disso, é possível ouvir frases originais ditas pelos próprios músicos ("Ei, alguém tocou uma nota errada!"), pinçadas nos arquivos de áudio da banda pelas garimpagens de Giles Martin. O game também oferece um punhado de licenças poéticas: fãs podem reclamar que "Taxman" jamais foi tocada ao vivo pela banda, ou que Ringo não participou da gravação de "Back in the U.S.S.R." (fatos que são contrariados pelo jogo), mas não se pode reclamar da falta de pesquisa. Além de utilizarem o documentário Anthology como bíblia de referência, os produtores tiveram acesso irrestrito aos baús da Apple Corps e aos tesouros pessoais dos próprios Beatles.
"Olivia nos convidou à casa onde George morou e trouxe pilhas de objetos pessoais", comemora Randall. "Depois ela disse: 'Querem ver as guitarras dele?' Foi só aí que caí na real: 'Esses caras são de verdade!'" Yoko teve uma participação mais efetiva, comparecendo a reuniões regulares na sede da Harmonix: "Ela ia ao estúdio e palpitava sobre como Lennon deveria se mexer ou se comportar. Ela nos encorajou a captar o verdadeiro espírito dele", conta Randall. Dhani, por sua vez, recebia versões incompletas do game para testar, enquanto os dois Beatles vivos eram consultados sempre que suas agendas permitiam. "No caso do Paul McCartney, era assim: 'Ele estará em Londres durante um dia, e vocês terão meia hora com ele'. Se não aproveitássemos esse encontro, ele não estaria disponível por mais um mês", brinca.
"Na verdade, esse game deveria vir com um aviso na embalagem: 'Feito pelos Beatles', porque eles participaram pra valer", Randall defi ne. "Eles estão empolgados com o fato de o jogo introduzir a música deles a uma nova geração, além de ser uma maneira de juntar pais que são fãs com seus fi lhos. Os Beatles sempre estiveram na vanguarda de tudo, então essa é a mensagem que eles querem passar: 'Estes são os Beatles no século 21'."
"A música criada pelos Beatles foi a melhor coisa já gravada em todos os tempos", Rigopulos complementa. "Sempre haverá espaço para ela, em qualquer geração. Para muitas pessoas, esta será a primeira vez que a obra dos Beatles estará realmente próxima."
Graduado em composição musical pelo renomado MIT (Massachusetts Institute of Technology), Alex Rigopulos compartilhava com o colega Eran Egozy o sonho de elaborar ferramentas interativas para não-músicos sentirem a experiência de criar música. Juntos, fundaram a Harmonix em 1995 "porque era a única opção disponível", ele justifi ca. "Não havia games musicais na época, então arrumar um emprego em algum lugar para criar esse tipo de coisa não era nem mesmo uma possibilidade."
Nos primeiros anos de atividade, a Harmonix não criou exatamente jogos, mas softwares musicais interativos. Após tentativas não muito bem-sucedidas, a empresa acertou na medida em 2005, com o campeão de vendas Guitar Hero. Com a expressão relaxada, Rigopulos faz pouco caso do tão alardeado título de "salvador da indústria musical", que vem recebendo desde seu primeiro sucesso. "O ato de ouvir músicas não vai mudar, muito menos o de ir a shows. Essas coisas todas continuarão a existir", ele dispara, falando mais rápido do que consegue tocar os instrumentos plásticos que ele próprio idealizou. "Estamos criando um novo tipo de experiência, que está colocando o consumo da música como prioridade na cabeça das pessoas. Eu só espero que isso esteja fazendo bem à indústria musical."
Nem o fato de comandar o projeto mais rentável da história da indústria do entretenimento digital ou mesmo os vários encontros pessoais com ídolos como Paul McCartney e Ringo Starr foram capazes de balançar a relativa frieza do midas da interatividade musical. O único abalo, ele confessa com a timidez que só é permitida aos gênios, se deu quando viu diante de si a materialização colorida e psicodélica do sonho de juventude.
"Eu estava jogando 'Here Comes the Sun' e, de repente, as lágrimas começaram a escorrer em meu rosto", ele revela. "Foi então que percebi que nossa visão estava enfim se tornando realidade."