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Os movimentos sociais declararam voto em Dilma Rousseff e, agora, prometem pressionar o governo para que seus pleitos sejam atendidos

Aline Oliveira Publicado em 19/02/2015, às 16h48 - Atualizado às 18h15

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Apoio em Xeque - Ilustração: Lézio Júnior
Apoio em Xeque - Ilustração: Lézio Júnior

Em nenhum momento tivemos a ilusão de que o governo Dilma teria uma inclinação à esquerda”, afirma Guilherme Boulos, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Ele não se surpreendeu com os primeiros dias do segundo mandato do governo Dilma Rousseff. Tampouco achou que seria um comando combativo.

Boulos é considerado por muitos cientistas políticos uma das principais lideranças sociais da atualidade. À frente do MTST, ele declarou voto, no segundo turno da campanha eleitoral, na então candidata, que disputava o cargo de presidente da República com o tucano Aécio Neves.

Assim como o MTST, outros movimentos sociais – a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da União Nacional dos Estudantes

(UNE) –, políticos e sociólogos, entre eles o deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e o teólogo Leonardo Boff, divulgaram publicamente a opção pela petista.

Mas o que representantes como esses esperam do atual governo? Para tais líderes, os últimos anos não foram exatamente promissores, ainda que tenham ocorrido avanços. “Nestes 12 anos, o PT, apesar de implantar algumas medidas sociais, fez um governo conservador”, resume Boulos.

A reorganização dos movimentos sociais no Brasil ocorreu nas décadas de 1970 e 1980. O contexto histórico do país naquela época propiciou a expansão, a mobilização e a organização de vários setores da população, não somente contra a ditadura, mas no que dizia respeito às reivindicações, demandas e lutas por moradia, melhores salários e direitos trabalhistas. O surgimento do Partido dos Trabalhadores, em 1980, ocorreu em meio a esse panorama.

Os movimentos sociais “clássicos” – dos trabalhadores sem-terra, por moradia, estudantis e sindicais – sempre apoiaram as candidaturas do PT. Foi assim em todas as disputas de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, que começaram em 1989, ano da primeira eleição direta para presidente no Brasil desde 1964. Entretanto, não houve, em 2006 e 2010, um apoio tão forte dos movimentos sociais às candidaturas petistas. “Em 2014, a disputa eleitoral foi muito mais polarizada e isso fez com que houvesse uma maior mobilização dos movimentos sociais”, analisa Aldo Fornazieri, cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). O apoio nas últimas eleições, portanto, veio mais por essa polarização e menos por uma suposta aprovação generalizada desses movimentos em relação aos últimos mandatos petistas.

Para Rogério Batistini, cientista político e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, “nessa eleição, o PT foi para a disputa eleitoral muito mais fragilizado em relação às disputas anteriores. Eles [os movimentos sociais] foram às ruas para garantir a continuidade desse projeto”.

Ao declarar o apoio a Dilma, as lideranças dos movimentos sociais falaram em voto crítico e anunciaram futuras cobranças à petista. Em 13 de novembro de 2014, o MTST fez uma manifestação no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, denominada “Contra a Direita, por Mais Direitos”. Uma das pautas foi pressionar o governo federal por reformas. Leonardo Boff e Frei Betto entregaram, em 26 de novembro, uma carta à presidente contendo reivindicações políticas, econômicas, sociais e ambientais. O documento foi assinado por lideranças ligadas à Teologia da Libertação. A socióloga Lúcia Ribeiro foi uma das assinantes. “A intenção é estabelecer contato direto com a presidente, a partir de formadores de opinião que têm conexão com os movimentos sociais”, afirma Lúcia. “Nós levamos a ela as demandas desses movimentos e uma percepção da realidade, à qual muitas vezes ela, no Palácio, não tem acesso.”

Mesmo não tendo dialogado de maneira próxima com os movimentos sociais em seu primeiro mandato, Dilma Rousseff, na reta final da campanha, prometeu atender às demandas clamadas pelas bases. No entanto, antes mesmo de assumir o segundo mandato, em 1º de janeiro de 2015, as ações da petista apontaram para a continuidade de um governo conservador.

“Durante a campanha eleitoral, Dilma deu uma guinada à esquerda, pelo menos no discurso, mas depois ela se afastou desses grupos e tentou se aproximar da direita parlamentar”, observa Pedro Fassoni Arruda, cientista político e professor da PUC-SP. “Ela tinha duas possibilidades, a de fazer um governo de maior instabilidade e de maior ousadia ou um governo mais estável com muito menos ousadia. Optou pela segunda”, complementa Sonia Fleury, cientista política e professora da FGV/Ebape.

A maior demonstração de que a petista irá seguir o caminho apontado pelos analistas é a formação do ministério. A equipe elencada por ela, composta de 39 nomes, trouxe indicações como a de Kátia Abreu para a pasta de Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e de Gilberto Kassab para a de Cidades. Ambos os nomes causaram polêmica e insatisfação em setores que apoiaram a candidatura da petista. “Mesmo sem ter a perspectiva de ser um governo de esquerda e só esperar uma linha desenvolvimentista, achamos o início do segundo mandato desastroso com esses ministérios”, dispara Boulos. “A indicação do Kassab é uma provocação, uma declaração da presidente Dilma de que não vai ter política urbana no governo dela.”

É “o pior ministério republicano, porque está marcado pela fisiologia, pelo desespero e pela incompetência”, opina o cientista político Batistini. “Tirando a área

econômica, esse ministério não aponta para o país nada de bom.” Para ele, a indicação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda é positiva. “Resta saber se neste governo ele terá autonomia suficiente para executar todas as medidas necessárias”, completa.

As primeiras medidas do novo governo estão aliadas à escolha do ministério. Foram anunciados cortes de gastos e mudanças nas leis trabalhistas, com restrições no acesso a seguro-desemprego, auxílio-doença e abono salarial (PIS), e uma minirreforma na Previdência Social, com alterações nas regras das pensões. A expectativa de Nelson Barbosa, ministro do Planejamento, é gerar uma economia de R$ 18 bilhões por ano, já a partir de 2015. A contenção equivale a 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB).

“Dilma recentemente declarou que não mexeria nos direitos dos trabalhadores nem que a vaca tussa. Embora a vaca não tenha tossido, ela acabou mexendo, sim, nos direitos dos trabalhadores”, critica o professor Pedro Fassoni Arruda, da PUC. A declaração a que ele se refere foi publicada no Twitter da presidente durante a campanha eleitoral e apagada nos primeiros dias de 2015.

“A escolha deveria ser outra. No âmbito econômico, há uma crise, é verdade. Crise se resolve com arrocho, cortando do trabalhador ou propondo uma grande reforma tributária progressiva. Também é preciso fazer auditoria da dívida pública, porque 43% do orçamento da União vai para o pagamento de juros, amortização, para rolagem da dívida pública, que é a verdadeira torneira dos gastos públicos. É aí que se deveria mexer, e não ficar cortando seguro-desemprego, mudando regra de pensão. É um absurdo, uma covardia”, repudia Guilherme Boulos.

“Todos os sinais que a presidente deu, na prática, mostram que este mandato será mais conservador do que o último. Na contramão do que os movimentos que foram responsáveis pela eleição dela exigem”, complementa Douglas Belchior, professor e militante da Uneafro-Brasil.

Para Rogério Batistini, no entanto, as medidas tomadas recentemente pelo governo foram necessárias. “Esse governo não tem como ir para a esquerda, seja lá o que isso queira dizer”, afirma. “É preciso adotar medidas realistas, sobretudo na área econômica: romper o déficit público, enfrentar o baixo crescimento econômico, diminuir as concessões na forma de bolsas e benefícios aos vários movimentos, retirar direitos trabalhistas. É isso que esse governo vai fazer. Nossa conjuntura é ruim, o governo pode usar um discurso de esquerda, mas vai praticar o que for necessário para o país não afundar.”

Uma das justificativas do governo para as medidas tomadas até agora é que há uma correlação de forças desfavorável para o PT. Pode- se dizer que o partido ganhou a eleição para presidente, mas perdeu a eleição para o Congresso Nacional, já que o número de deputados e senadores que fazem parte da sustentação parlamentar diminuiu. Dos 513 deputados federais, o PT conta com apenas 70 parlamentares.

O professor Arruda, da PUC-SP, explica que “um partido com 15% dos deputados federais não consegue, de fato, aprovar uma lei de iniciativa do governo, então precisa ampliar seu arco de alianças com partidos, como o PMDB, para conseguir essa maioria”. Outro desafio de Dilma é lidar com as rachaduras na sigla e a reprovação dos aliados. “Existe certa insatisfação dentro do próprio PT, que não é homogêneo. Há tendências no interior do próprio partido. Basta ver que Kassab e Kátia Abreu foram vaiados na cerimônia de posse dos ministros, inclusive por pessoas da sigla”, diz Arruda.

Para agravar o quadro, a senadora Marta Suplicy declarou, em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 10 de janeiro, que o PT está em uma encruzilhada – segundo ela, “ou muda ou acaba”. Marta também não poupou críticas ao governo Dilma, afirmando que a presidente enfrentará desafios gigantescos, “porque não se engendraram as ações necessárias quando se percebeu o fracasso da política econômica liderada por ela”.

O cientista político André Singer, que já foi secretário de imprensa do Palácio do Planalto (2005-2007) e porta-voz da presidência no primeiro mandato de Lula (2003- 2006) , escreveu, em artigo publicado em 3 de janeiro no jornal Folha de S.Paulo , uma crítica ao discurso de posse da presidente. Para ele, a “desconexão entre palavras e atos constitui perigosa sequência daquela produzida por uma campanha à esquerda e a montagem de um ministério à direita”.

No que diz respeito à relação com os movimentos sociais, Dilma Rousseff precisará retomar o diálogo, o que não fez em seu primeiro mandato. “A postura dela foi autocrata, não democrática. O bom governo tem de conversar com a sociedade”, analisa Fornazieri, da FESPSP. “Os governos do PT são fruto das lutas históricas dos trabalhadores. Mas eles se afastaram desses movimentos à medida que praticaram uma política muito distante daquilo que os movimentos sempre reivindicaram”, opina Douglas Belchior.

Uma das práticas de Dilma – reprovada por diversos analistas políticos – foi a quase que desativação do chamado Conselhão. Criado em 1º de janeiro de 2003, pelo então presidente Lula, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) era um órgão de consulta da presidência à sociedade civil. Ele foi composto de lideranças sindicais, empresariais, sociais e religiosas, além de atletas, intelectuais e militantes. “No governo Lula, o Conselhão funcionava sistematicamente e era um fórum de diálogo não só com o movimento social mas também com outras forças. Dilma praticamente abandonou o conselho, relegando-o a um plano completamente secundário”, avalia o professor da FESPSP.

“A ideia do conselho era interessante. O próprio imperador tinha um conselho, e era ele quem ia lá e ouvia. Em nenhum momento foi isso que aconteceu no nosso conselho. A dinâmica sempre foi de nós [representantes da sociedade] discutirmos entre a gente, o que eu acho que foi a grande importância do órgão. Mas com relação à presidência não acho que mudou algo no Brasil, porque em vez de ser um presidente ouvindo, era quase sempre o governo expondo e os atores ouvindo”, opina Sonia Fleury, que integrou o Conselhão nos quatro primeiros anos do governo Lula. “Acho que seria muito bom se o governo fosse um pouco mais humilde e retomasse o conselho como um lugar em que ele pode ouvir a sociedade.”

Já que internamente o diálogo é cada vez mais escasso, as lideranças sociais prometem ir às ruas a fim de pressionar o governo. “O MTST vai continuar fazendo uma política

de pressão para o governo federal, como fez durante todo o ano de 2014”, afirma Boulos. Fornazieri, da FESPSP, defende que a autonomia dos movimentos sociais perante o governo é fundamental. O professor relembra que nos últimos governos petistas, de um modo geral, alguns grupos, particularmente o movimento sindical, se aliaram quase incondicionalmente ao governo. “Isso foi um erro, no meu ponto de vista, porque movimento social deve manter a autonomia. Se ele não mantiver a autonomia, ele perde”, diz.

“O ano de 2015 deverá ser de pressões e enfretamentos, mas para isso os movimentos sociais, sobretudo o movimento sindical, têm que reconstruir suas ligações com as bases”, afirma Sonia Fleury. “Acho que houve muita identificação com o governo, participação no governo, e pouco trabalho de base. Entendo que agora é um momento de voltar às bases, construir força política para obrigar o governo a ser o governo daqueles que o elegeram.”

Apesar dessa visão, de que é preciso um retorno às bases, Fornazieri acredita que o MTST é uma exceção e sabe distinguir a hora de agir. “Acho que é um movimento bastante

politizado e maduro. Eles são capazes de discernir em que hora é preciso se aliar ao governo para determinadas questões e em que hora é preciso fazer pressão nas ruas.”

Enquanto isso, Guilherme Boulos também articula, junto a outros partidos políticos, uma frente de esquerda. “O MTST está buscando dialogar com vários setores e vários movimentos no sentido de construir uma frente em torno das reformas populares. Para nós, a pauta política essencial nesse momento é levantar reformas estruturais que estão obstruídas”, declara. “Sem enfrentar esse desafio, não se vai avançar nas melhoras sociais do país.”