Em 1982, há 30 anos, o diretor ganhava o mundo com E.T. – O Extraterrestre. Ambicionando se superar a cada trabalho, ele ainda mantinha os pés no chão enquanto criava as obras mais mirabolantes que o cinema já havia visto até aquele momento
Michael Sragow | Tradução: J.M. Trevisan Publicado em 11/05/2012, às 17h49 - Atualizado em 11/06/2012, às 10h26
Aos 34 anos, Steven Spielberg é, em todos os sentidos possíveis, o diretor de cinema mais bem-sucedido de Hollywood, dos Estados Unidos, do Ocidente, do planeta Terra, do sistema solar e da galáxia. Três de seus filmes – Tubarão, Contatos Imediatos de Terceiro Grau e Caçadores da Arca Perdida – são clássicos da fantasia que figuram entre as obras cinematográficas mais bem-sucedidas financeiramente em todos os tempos. E antes do fim do verão, eles provavelmente terão a companhia de E.T. – O Extraterrestre, uma ficção científica lírica sobre a condição humana e alienígena (concebido, coproduzido e dirigido por Spielberg), e do terror Poltergeist (coproduzido e coescrito por Spielberg, mas dirigido por Tobe Hooper).
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Spielberg é fruto de uma criação suburbana e de uma educação em escolas públicas. A mãe era pianista erudita e seu pai um cientista da computação que se mudou com a família de quatro filhos “de Ohio para Nova Jersey, Arizona, Saratoga e Los Angeles”. Dos 12 anos em diante, Ele soube que sabia fazer ao menos uma coisa bem: filmes. Quando veio a faculdade, matriculou-se no curso de cinema da universidade Cal State Long Beach. Em 1969, por causa de um curta de 24 minutos chamado Amblin, conseguiu contrato com a Universal, na qual dirigiu episódios das séries Night Gallery, Marcus Welby M.D. e Columbo; o aterrorizante filme televisivo Encurralado; seu primeiro longa, Louca Escapada; e o thriller que o levou aos holofotes, Tubarão.
E.T. – o extraterrestre é outro estouro para Steven Spielberg. Seus filmes anteriores foram todos espetaculares de alguma forma. O escapismo de cada um deles tem origem na infância fantasiosa do diretor: “Quando eu não queria encarar o mundo real”, ele diz, “metia a cara em uma câmera. E funcionou”. Fazer E.T., entretanto, compeliu Spielberg a encarar a realidade das dores de sua infância e fez com que se sentisse “limpo”. “Estou tentando fazer filmes mais com a câmera na altura da cintura e usando meus olhos para enxergar o mundo real”, ele explica.
No dia seguinte a uma triunfante exibição não competitiva de E.T. em Cannes, falei com Spielberg em uma suíte em um hotel de Nova York. Ele exalava normalidade, com seu boné da Nasa, pés só com meias, além da confiança de que seu filme mais intimista pode também se tornar seu trabalho mais amado. Falando sobre E.T., Poltergeist, seu passado e a situação atual de Hollywood, Spielberg parecia ansioso para conquistar o mundo.
Tudo parece se encaixar para você com E.T. Certamente poucos diretores tiveram tanto sucesso em uma tentativa de fazer algo tão profundamente pessoal e ao mesmo tempo fenomenalmente popular.
Você conhece o ditado, “o livro se escreveu sozinho”. O filme não se fez sozinho, mas as coisas começaram a dar certo desde sua origem, em 1980, quando vi que estava pronto para fazê-lo. Não entendo de psicanálise, mas E.T. é um longa que ficou muitos anos dentro de mim e só conseguiu sair de lá depois de muito psicodrama suburbano.
O que quer dizer com isso?
Crescer em uma casa com três irmãs menores gritando e uma mãe que tocava piano erudito com sete outras mulheres – fui criado em um mundo de mulheres.
Em muitos dos seus filmes, as mulheres ou garotas são personagens mais elásticas, emocionalmente falando.
É isso, elas são. Gosto de mulheres, de trabalhar com mulheres. E.T. tinha muitas delas. Uma coprodutora, uma roteirista, uma editora, uma diretora-assistente, uma figurinista, mulheres na construção, no design e na decoração dos sets. Eu chamo de síndrome da ombreira: não dá para chorar em um ombro com ombreiras. É algo que veio dos meus tempos de escola, quando eu era tímido e covarde em um mundo de atletas.
O quão molenga você era?
O maior exemplo é quando tivemos que correr 1,5 quilômetro valendo nota no primário. A classe inteira, que tinha 50 alunos, terminou, exceto duas pessoas que ficaram na pista – eu e um garoto com deficiência mental. Claro que ele corria meio atrapalhado, mas eu nunca fui de correr. Eu estava talvez uns 30 metros na frente dele, e só faltavam uns 300 metros até a linha de chegada. E a classe inteira começou a torcer para ele – incentivando, dizendo: “Vai lá, ganha do Spielberg! Corre, corre!” E foi como se ele ganhasse vida pela primeira vez, e começou a ir mais depressa, mas não o suficiente para me passar. E me lembro de pensar: “Ok, agora como eu faço para cair sem parecer que foi de propósito?” E lembro de acabar tropeçando mesmo, caindo de cara na pista e arranhando o nariz. Todo mundo vibrou quando eu caí, e começaram a gritar de verdade na torcida pelo moleque: “Vai, John, vai, corre, corre!” Levantei assim que o John chegou em mim, e comecei a correr como se quisesse ultrapassá-lo, mas não para ganhar, correr para deixar que ele ganhasse. E aí ficamos nariz com nariz, e de repente eu diminui um passo, e então mais meio passo. E ele cruzou a linha de chegada na minha frente. Todos pegaram o garoto, colocaram-no nos ombros e carregaram até o vestiário, e eu fiquei lá parado na pista chorando por cinco minutos. Nunca me senti tão bem e ao mesmo tempo tão mal na minha vida.
Em E.T. a visão dos adultos é ao mesmo tempo otimista e dolorosa. Se Elliott não tivesse feito amizade com o E.T., ele ainda seria um garoto solitário.
Para mim, Elliott sempre foi o “Nowhere Man” da música dos Beatles. Eu estava extraindo meus próprios sentimentos de quando era criança e não tinha muitos amigos, e tinha que me apoiar no fato de fazer filmes para me tornar quase popular e encontrar uma razão para viver depois das aulas. Muitos dos meus amigos jogavam futebol americano ou basquete ou beisebol e saíam com garotas. Eu não fiz nada disso até ficar mais velho.
E.T. é sua vingança imaginária – transformando o “Nowhere Man” em herói?
Ah, sim, com certeza. Quando comecei a fazer E.T., pensei que talvez o certo fosse voltar e mostrar a vida como deveria ter sido. Quantos garotos em sua imaginação adorariam salvar os sapos ou beijar a menina mais linda da classe? Essa é a fantasia de infância de qualquer garoto.
O quanto E.T. foi baseado na sua experiência suburbana contemporânea, comparado com o que foi tirado das suas recordações?
No mundo de hoje, um garoto de 12 anos é o equivalente ao que éramos aos 16 e meio. Por isso houve uma transformação, uma vez que escalamos o elenco do filme com garotos de verdade. Não atores de Hollywood – crianças que nunca haviam entrado no escritório de um diretor de elenco na vida. Gente real, só isso – foram eles que escalamos.
Os diálogos mudaram consideravelmente. Eu nunca chamaria meu irmão, se tivesse um, de “bafo de pênis” na frente da minha mãe. Não é o termo mais popular no vernáculo da geração Pac-Man, mas é uma palavra que é usada vez ou outra, e evoca imagens bem vulgares e hilárias. Eu queria que os garotos dissessem algo que mexesse com a mãe, porque queria que ela risse primeiro, e depois desse a bronca, em vez de simplesmente dizer: “Não se atreva a dizer isso na minha casa!” Essa seria a mãe dos anos 50, a que foi atacada por marcianos que comeram o cachorro. Os pais de hoje, tendo a minha idade, cairiam na risada e de repente se dariam conta: “Caramba, sou o pai, não posso rir disso. Senta, filho, e nunca mais diga essa palavra de novo ou vou fingir que sou meu pai e minha mãe dos anos 50, e você vai ser obrigado a aprender”.
Acho que as crianças tendem as ver os adultos como pessoas exageradamente melodramáticas. Muitos garotos vão atrás deles só para poder olhar de cima para baixo. E descobri, mesmo quando estava dirigindo Henry Thomas [Elliott], que se eu perdesse o contato com a realidade dele, ele me daria aquele olhar que parecia dizer: “Ah, cara, ele é velho”. Dava para perceber isso quando eu conseguia alcançá-lo de alguma forma. Ele sempre sorria ou gargalhava, ou dizia “Tá, tá, beleza”. Eu estava constantemente sendo recompensado ou corrigido por pessoas três vezes mais novas que eu. Eu estava indo mais rápido que as crianças. Então tive que diminuir o ritmo e começar a metabolizar no ritmo delas, não no de Steven Spielberg.
Isso assustou você?
Morro de medo de algum dia acordar e deixar alguém entediado com algum dos meus filmes. E isso fez com que eu me empenhasse em filmes que tentavam superar uns aos outros em termos de espetáculo. Me meti em uma situação em que meus filmes são muito grandes, e eu tinha um departamento de efeitos especiais e mandava em tudo isso, o que era muito divertido. E aí eu me divertia em reuniões de produção – não com três ou quatro pessoas, mas com 50, às vezes quase 100 quando chegávamos perto de começar – porque tinha a capacidade de liderar as tropas na “Guerra dos Filmes”. O poder se tornou um narcótico, mas não era só pelo poder pura e simplesmente. Eu realmente me sinto atraído pelo tipo de história que não se pode contar na televisão e que não se vê todo dia. Assim, essa atracão me levou ao “Sonho Impossível”, e esse “Sonho Impossível” normalmente custa cerca de US$20 milhões. François Truffaut ajudou a me inspirar a fazer E.T. ao dizer: “Você é maravilhoso com crianças, você tem que fazer um filme com crianças...” E eu disse: “Bem, sempre quis fazer um filme sobre crianças, mas tenho que terminar este, e depois vou fazer 1941, sobre os japoneses atacando Los Angeles”. E Truffaut me disse que eu estava cometendo um grande erro. Ele me dizia: “Você é a criança”.
Poltergeist parece ser a antítese de E.T. em praticamente todos os sentidos.
E.T. é minha ressurreição pessoal, e Poltergeist é meu pesadelo pessoal. Muitas coisas de ambos vieram verdadeiramente das minhas experiências na infância. Poltergeist é sobre meus medos – de bonecos, de palhaço, de armários, do que estivesse debaixo da cama, da árvore em Nova Jersey que eu sentia que se mexia toda vez que havia uma tempestade de vento e me assustava com seus longos dedos de graveto. Mas Poltergeist é só uma história de fantasma suburbana. É para ser um susto por segundo, com humor. A coisa mais importante que eu queria fazer com esse filme era mostrar uma família norte-americana simples que vê com bom humor a vida e a ciência. Eles gostam de ciência até demais. A mãe fica mais curiosa do que devia sobre o efeito poltergeist, o que não é nada bom para sua filha, e depois acaba ficando responsável pelo resgate da garota. Minha parte favorita do filme é do começo até eles conseguirem a filha de volta. A parte que menos gosto são os 15 minutos finais. Foi divertido; e eu realmente não levei a sério. Depois de assistir à maioria dos filmes, você pode voltar para a segurança da sua casa. No caso deste, queria ter roubado a frase que usamos para divulgar Tubarão II: “Quando você achava que era seguro voltar para casa... Poltergeist”.
A coprodução de E.T. e Poltergeist é sua. E.T. parece ter ido muito bem, mas Poltergeist teve uma série de problemas. Como você reage ao enfrentar este tipo de turbulência como produtor?
Bom, a turbulência é criada essencialmente por querer fazer as coisas do seu jeito e ter que passar por todos os procedimentos. Por isso nunca mais vou deixar de dirigir um filme que escrevi. Foi frustrante para [o diretor] Tobe Hooper, e foi frustrante para os atores, que ficavam divididos entre a minha presença e a dele no set todos os dias. Mas em vez de Tobe dizer: “Não aguento mais. Vá para o Havaí, caia fora do set”, ele ria e eu ria. Se ele tivesse dito: “Tenho algumas ideias que você não está deixando entrarem neste filme. Eu adoraria que você visse o resultado das filmagens diárias, que me desse uma consultoria, mas não fique aqui no set”, eu provavelmente teria aceitado.
Algum produtor já colocou você na linha e o ajudou do mesmo modo que, digamos, Darryl Zanuck supostamente ajudou John Ford?
George Lucas em Caçadores da Arca Perdida. Ele não veio picotar meu filme ou ditar as regras ou estilo ou conteúdo. Mas estava sempre disponível para conversar, e sempre tinha ideias. Você vai rir: a única experiência similar que tive com alguém em que eu confio e acredito foi com Sid Sheinberg [presidente da MCA]. Em todos esses anos ele tem me dado apoio e conselhos inestimáveis. Mas ele está em um degrau tão alto na escala corporativa que precisa dar duro para conseguir descer alguns lances e arregaçar as mangas.
Caçadores II [Indiana Jones e o Templo da Perdição] será lançado através do estúdio Paramount, Poltergeist foi lançado pela MGM, E.T. pela Universal. Por que você gosta tanto de trabalhar com estúdios diferentes o tempo todo?
Um alvo móvel é mais difícil de ser acertado [risos]. Deve ser por isso.
É uma forma de reforçar sua independência como cineasta...
Na verdade, nos filmes em que estou envolvido depois de E.T. , serei o dono dos direitos e dos negativos. Os estúdios providenciam os serviços de distribuição por uma quantia negociada e uma parte dos lucros. Quero um dia ser dono dos meus próprios filmes. Quero ter o controle de quando eles vão para a TV a cabo e quando não vão. De quando vão para a TV aberta. Não quero ter uma inspiração como E.T. caindo na minha cabeça vinda dos céus para depois ter todas as decisões de negócios e financeiras arrancadas das minhas mãos por um banco. Não vou conseguir fazer isso todas as vezes. Se eu bolar uma história em que o orçamento será de US$ 20 ou US$ 25 milhões, então vou financiá-la com um estúdio grande porque não vou querer levantar esse dinheiro todo. Ninguém consegue levantar tudo isso de forma independente. Só quero continuar me movendo rápido, assim ninguém pode dizer: “Eu sei o que o faz trabalhar. É fácil. Qualquer um pode fazer isso”.
A ideia é não deixar que eles se sintam confortáveis demais com o “gênio da casa”.
Acho que ninguém assumiu o posto de “gênio da casa”, mas fazer parte da casa, de uma empresa em qualquer função, me incomoda. Uma vez que você está trabalhando em um estúdio por mais de três semanas, você vira apenas mais um nome em um arquivo no fundo de um corredor. Isso vale para qualquer um, se você seja você Fellini, seja você Francis Coppola, seja você alguém tenha acabado de sair da Universidade de Nova York.