Representante maior da vanguarda política brasileira, Fernando Gabeira se diz interessado na construção de conexões entre pensamentos opostos. Agora, o deputado federal mais pop do Brasil quer ser prefeito do Rio. Será?
O político médio brasileiro vive em eterna e acirrada competição. Tem extremas dificuldades em se eleger, mas gastando o que tem, o que não tem e o que arrecada, se elege. Eleito, sem plataforma parlamentar consistente, sem projetos relevantes, muitas vezes sem noção, vê a competição com seus antigos e novos adversários se tornar ainda mais dura. Ele, então, apóia o governo que estiver no poder, não importando se há ou não afinidade ideológica. Ele precisa dessa relação amigável para ter acesso a alguns cargos e, por meio desses cargos, expressar, respirar, viver, enfim, o poder. E precisa também do governo para ter aprovadas algumas das 20 emendas ao orçamento que pode apresentar individualmente em um ano, com as quais ele pode levar algum benefício à região que representa, mas cujo objetivo principal é atender à sua base eleitoral e garantir votos na próxima eleição.
O político médio brasileiro é um cara que tem certeza de que sua sobrevivência no poder está ligada a uma relação positiva com o governo e, ao (não) se posicionar dessa maneira, passa a ser subserviente ao chefe de estado, aceitando e fazendo tudo o que "Ele" mandar, mesmo que isso ameace a própria essência do Congresso, transformado hoje em uma espécie de extensão simbólica e pouco autônoma do Planalto. Uma instituição cuja principal função é votar ilimitadas Medidas Provisórias e operar, sem grande habilidade, carimbos. O político médio brasileiro é um ser amorfo, quando não uma sombra nociva, que de tudo faz para manter-se no poder, se possível perpetuando a profissão na figura de filhos, netos e outros parentes, devidamente postos no caminho da política.
"Os setores... digamos assim, mais instruídos do Brasil... me vêem como uma reserva, do ponto de vista político e do ponto de vista até estratégico, em termos de ter me preparado para... entender o país... de ter me preparado... para colocar o país no mundo... não é?... e o mundo no país [tosse]. Outros me vêem como um político... é... de vanguarda, entende? Outros me vêem como um político... é... que tem posições... condenáveis. Liberais demais... ultraliberais", afirma, calma e pausadamente, com a voz embargada por uma gripe, entre um gole e outro de chá preto não adoçado, o deputado federal pelo PV e agora pré-candidato pela Frente Carioca (PV, PSDB e PPS) à prefeitura do Rio de Janeiro, Fernando Gabeira. É sábado à tarde na cidade que o mineiro de Juiz de Fora escolheu como sua desde 1963, em seu gabinete no Jardim Botânico. "Porra, tá quente aqui, não?", diz tirando o paletó cinza risca de giz, desabotoando e dobrando as mangas da camisa de seda preta.
Nos primeiros minutos da conversa, Gabeira, que, para o eterno alívio dos adversários, defende questões consideradas tabu na política brasileira, como a legalização da canabis, do aborto e da prostituição, além de jornalista, político, escritor e fotógrafo, demonstra ter habilidade para uma espécie de engenharia civil político-social avançada. "O curioso é que, tanto na questão das drogas quanto na questão do aborto, a minha posição está evoluindo no sentido de achar que... [tosse] já não vale mais a pena você, pura e simplesmente, fixar uma posição achando que ela é moralmente superior à do outro. Hoje estou buscando mais as pontes entre as posições. Porque ficar pura e simplesmente como nós estamos vindo desde os anos 60, marcando posições contrárias, não conduz a nada, entende? O caminho é esse, buscar pontes e saídas."
Para a esquerda vanguardista do mundo, as tais pontes, junto com a internet, são a nova revolução a não ser televisionada. Para a esquerda brasileira com data de validade há muito vencida, parecem avançadas e longas demais. Para a direita - e talvez mais para a esquerda vencida -, significam um enfraquecimento das convicções. As duas últimas, geralmente, ignoram que o mundo gira: tudo muda, a realidade, o mundo, as pessoas, e, claro, a política...
Para ao menos tentar mudar o mundo, os políticos deveriam entendê-lo e rever permanentemente esse entendimento. E é, sim, possível manter-se coerente em suas convicções, ser um incendiário na juventude e um bombeiro na velhice. "Chega um momento da sua vida em que não adianta você ficar batendo pé no seu pensamento. Adianta você, é... [tosse] buscar caminhos pra fazer andar tudo. Porque o seu pensamento continua o seu, o do outro continua o do outro... e as coisas continuam não andando!", ri. "Você tem que ver até que ponto uma ponte entre o teu pensamento e o do outro... pode representar um avanço para os dois... sem que ninguém perca as suas convicções. Por exemplo, no caso do aborto: se você é favorável ao aborto e o outro é contra o aborto, tudo bem. Mas é possível vocês acharem um ponto comum. E esse ponto comum é a informação para as potenciais gestantes. Não importa se você é contra ou a favor do aborto... todos deveriam ser a favor de mais informação." E termina a frase, como quase sempre, com um "não é?", como se aquele fosse o pensamento político mais óbvio entre todos. Não estamos diante de um exemplar do político médio brasileiro.
É manhã de quarta-feira no edifício deputado Flavio Marcílio, o Anexo IV da Câmara dos Deputados, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A casa do povo ou "a casa de todos os brasileiros". E assim parece, porque ali entra quem quer. Enquanto a mochila passa pelo raio-x, atravesso o detector de metais, que berra sem parar. Ninguém me revista. Na fila, à minha frente, um grupo de senhoras maravilhadas por estarem ali se acotovela. Um cadastro é feito com meu nome, RG e uma rápida foto. Recebo um adesivo amarelo em que se lê "visitante" e colo-o à gola do paletó. Alguns passos adiante, uma enorme fila forma-se em frente aos elevadores destinados aos "comuns" - do outro lado, o mesmo número de elevadores serve somente aos parlamentares e não há nenhum deles ali no momento. O povo brasileiro circula pela casa do povo, "a casa de todos os brasileiros", mas não pode usar os mesmos elevadores que seus representantes. Subo até o 3o andar e dobro à esquerda até o corredor em que fica o gabinete 332.
Fernando Paulo Nagle Gabeira, 67 anos, de terno e gravata, a cabeça baixa, pensante, as mãos no bolso, caminha em minha direção. Paro a poucos passos dele. Ele percebe, mas demora alguns segundos para me reconhecer, resgatando na memória nossa primeira conversa no final de semana anterior no Rio de Janeiro. Cumprimenta-me e ri: "Teve de vestir um paletó e uma gravata, né?", se diverte, referindo-se à obrigatoriedade do traje para circular por algumas das dependências do complexo. "A gente sempre tem no gabinete umas gravatas para quem não está nessa" [de usar gravata, completo em pensamento]. "Fez boa viagem?", pergunta gentilmente.
Em seu terceiro mandato como deputado federal, candidato mais votado do estado nas eleições de 2002, Gabeira deveria sentir-se em casa pelos corredores acarpetados do Anexo IV. "Este é um ambiente que me é bastante familiar, conheço muitos - acho - e todos me conhecem. Mas... não posso dizer isso [que se sente em casa]. Mesmo porque eu passo geralmente três dias da semana aqui", diz enquanto caminhamos.
Aquecendo-se para as eleições de 2008, ele hoje se divide, física, mental e espiritualmente, entre Brasília e o Rio de Janeiro. "Evidentemente preciso vir a Brasília. Há o que fazer aqui. Além do que a mídia não favorável pode pegar no pé... e, claro, o Arlindo [Chinaglia Júnior, PT-SP, presidente da Câmara dos Deputados] pode descontar no fim do mês."
Do tiro que o atingiu pelas costas em 1969, ao fugir de um cerco da ditadura militar em São Paulo, e lhe tirou partes do rim, do estômago e do fígado, ao tiro ético que deu na testa do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti em 2005, à tentativa de evitar que a Câmara disparasse um balaço contra o próprio pé na forma de um aumento absurdo de 91% nos salários dos parlamentares em 2007, passaram-se quase quatro décadas. Sua trajetória nos anos 60 até o quase fim dos 70 vai de jornalista com atuação no movimento estudantil, participante do seqüestro do então embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, em uma das mais ousadas ações urbanas da resistência contra a ditadura militar, a exilado político que ouvia, longe do Brasil, Milton, Gil e Caetano - "Para matar a saudade" -, Patti Smith - "'Because the Night' era maravilhosa para mim, me dava um alento" - e Bob Marley. "Ele apareceu nos verões dos anos 70 e teve um impacto muito grande. Trouxe um novo elã para a garotada que vivia fora, sobretudo imigrantes, foi uma sucessão de músicas com um poder político muito grande. Mas depois de uns anos, vi que ele tinha uma capacidade de sobrevivência muito maior. E vi isso também nas minhas filhas, que ouvem Marley até hoje."
De volta, acostumado ao naturismo e à liberdade sexual e do corpo das praias gregas de Pylos e Mikonos na última fase do exílio, virou notícia e alvo de discussão - "Isso lá é coisa de homem?" - ao usar uma tanga de crochê na Ipanema de 1979. "Essas coisas acontecem na sua vida e... Jamais me ocorreu naquele momento que... A verdade é que quando vim pro Brasil e fui à praia de tanga... achei que estava muito bem vestido, entende? Não achei que estava escandalizando", conta. "As pessoas estavam começando a tirar o sutiã pela primeira vez na praia e veio muita gente do interior ver aquilo, a praia foi começando a ficar muito concorrida, você sentia que já estavam te jogando amendoim, entende? Aí eu parei de ir. Saí fora. E a praia do Rio naquele momento tava muito suja também." O Brasil parece nunca esquecer aquela imagem. "É...vou fazer o quê?", diz, como se o preço de pensar como pensa, de fazer o que faz, fosse mínimo. "Pago um preço muito barato... Tá incrivelmente barato", ri. Soa estranho para alguém que tomou um tiro por uma causa. "Na verdade o tiro representou um momento difícil também porque... eu fui preso simultaneamente. Mas a verdade é que jamais tive uma seqüela do tiro. Quer dizer... eu não posso culpar o tiro por nada. Acho que o chumbo, às vezes... em boas condições, é até melhor para a sua saúde, entende?", ri alto. Soa estranho para quem foi preso e exilado. "Os anos de exílio foram muito duros, mas ao mesmo tempo foram anos de aprendizado... Consegui entender melhor a vida. Tive tempo pra estudar, entende? E voltei, na verdade, muito melhor do que saí. E a prisão... a luta contra a ditadura, apesar do sofrimento que se viveu nesse período, não me trouxe nenhuma amargura, entende?" Nenhum entrave, nenhum trauma de cadeia, medo do exército, como muitos da esquerda, ou da polícia, nada? "Nada. Às vezes, à noite, eu sonho que estou numa prisão, entende? Mas percebi que... muita gente que nunca esteve numa prisão às vezes sonha que está numa prisão."
No elevador dos parlamenta-res, homens de terno, exibindo os famosos broches que os identificam como deputados, cumprimentam-no pela pré-candidatura à prefeitura do Rio. "Ainda dá tempo de mudar o título de eleitor para o Rio de Janeiro", brinca um deles com sotaque do Norte. "Pois eu vou é fazer isso já!", responde outro com sotaque do Nordeste. Gabeira contrai os lábios sem mostrar os dentes em algo que poderia ser definido como um pré-sorriso, uma reação aos tapinhas nas costas. Ambos descem no térreo, mais tapinhas nas costas, enquanto nos dirigimos ao subsolo. Pergunto a Gabeira quem eram aqueles. "Não sei."
O caminho até o plenário 3 do Anexo II, onde se reúne a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, da qual ele faz parte, tem escadas, curvas e um imenso túnel com um carpete verde e esteiras rolantes em ambos os lados. Andamos pelo meio. Quatro outros deputados endossam os comentários feitos no elevador. "Salve, Prefeito!"; "Fiquei muito feliz em saber que o senhor estará neste páreo, deputado"; "É uma felicidade para o povo do Rio de Janeiro"; "Boa sorte para a sua campanha, o senhor vai precisar, deputado". Repito a pergunta, tentando num esforço inútil puxar da memória aqueles rostos que não conheço: quem são? "Não sei. Quer dizer, aquele acho que... Não sei." E o broche, por que não usa? "Não preciso disso."
"...Fernando Gabeira é o mais bem-sucedido remanescente de 1968", escreve Zuenir Ventura no recém-lançado 1968: O que Fizemos de Nós (Ed. Planeta). "Ele não está falando do ponto de vista material, certo?", tenta confirmar o deputado. "Porque do ponto de vista material... eu não sou absolutamente bem-sucedido. Muito possivelmente sou mais duro que você... muito possivelmente!", e cai na risada - tem-se a clara impressão de que Gabeira deve ter participado da notória conversa entre o dr. Timothy Leary e o filósofo canadense Marshall McLuhan, em que o segundo, devido aos tempos difíceis que atravessava o primeiro, aconselhou: "Sempre sorria". "Nunca tive grana para comprar nada. Minha família é muito pobre, meu pai era fudidaço lá em Minas, nunca tive nada. Sou bastante pobre comparado com... a média de pessoas da minha... classe. Não tenho nem casa própria, mas alugo um apartamento e a mulher com quem eu vivo tem o apartamento e eu vivo com ela lá." Voto de pobreza? "Não, evidente que não! É falta de grana mesmo!", e torna a rir. "Tenho duas motocicletas, computadores... e câmeras fotográficas. Só." De "jornalista militante no movimento estudantil em 1968" a "uma das raras unanimidades políticas do país em 2008", Zuenir Ventura define a figura do bem-sucedido político: "Pelas suas atitudes e comportamento de vanguarda, Gabeira corria o risco de ser tratado como um político charmoso e excêntrico. No entanto, poucos parlamentares têm tanta credibilidade quanto ele".
"O senhor poderia me dar um minuto da sua atenção? É um assunto de extrema urgência", diz o senhor de barba branca, óculos escuros e camiseta do Raul Seixas que intercepta nossa caminhada. Ele traz nas mãos um calhamaço de papéis e mostra alguns deles para o deputado. "Tenho planos de construir um reator para a extração de minérios, preciso de sua ajuda." Não seria a última vez que eu ouviria aquela resposta padrão naquele dia: "O senhor pode entrar em contato com o meu Gabinete e então falamos". E seguimos. "Tem muito maluco aqui."
São 10h38. O clima e a aparência da comissão são de sala de aula de cursinho. Um fala ao microfone, os outros falam entre si. No fundão, jornalistas, curiosos, assessores parlamentares, alguns ao telefone, outros tomam nota. Celulares dos deputados tocam ininterrupta e desrespeitosamente. O deputado Marcondes Gadelha, presidente da mesa, pede ordem e toca aquela irritante campainha. "Passemos então ao item 3 da pauta - os itens 1 e 2 ficam sobrecitados porque os senhores deputados William Woo e Takayama não se encontram presentes. O item de número 3, que é o requerimento 162 do senhor deputado Fernando Gabeira, 'solicita que sejam convidados os Ministros das Relações Exteriores sr. Celso Amorim e da Defesa, sr. Nelson Jobim, para falarem sobre a alta de preços de alimentos no mundo, sua conseqüência no Haiti e a possível repercussão no futuro da Missão Brasileira naquele país. Com a palavra, o deputado Fernando Gabeira."
A alta mundial dos preços dos alimentos, segundo Gabeira, pode causar uma situação ainda mais crítica no Haiti, país que visitou em 2006 e onde conheceu o polêmico General Augusto Heleno, "uma pessoa por quem tenho muito respeito, um dos melhores militares do país".
"Depois que formulei esse requerimento", ele continua sua explanação, "o Presidente Lula na ONU já obteve do secretário-geral um acordo no sentido de a ONU produzir uma reunião de emergência para estudar as conseqüências do aumento dos preços dos alimentos no Haiti e as possibilidades de tomar algumas medidas que impeçam o agravamento da situação e que, através desse processo, também impeçam que o Brasil venha a ser forçado a reprimir famintos desesperados como está acontecendo no Haiti neste momento. Na verdade já é um procedimento antigo no país, mas grande parte, ou uma parte substancial da população haitiana, tem se alimentado de bolinhos de barro."
O mineiro-carioca quer acompanhar o que está sendo feito no governo e sugere que o Brasil traga antes à comissão as propostas que levará para a reunião de emergência na ONU. O presidente da comissão faz seus comentários a favor do requerimento e põe o tema em discussão. Um complementa a explicação de Gabeira, outro acredita que as duas questões, a Missão Brasileira no Haiti e o aumento do preço dos alimentos no mundo, não caminham tão juntas, mas concorda. "Não havendo mais quem queira discutir, vou colocar em votação. Os senhores parlamentares que aprovam permaneçam como se encontram. Aprovado!", sentencia o presidente.
Naquela manhã, a pauta da 13ª Reunião Ordinária Deliberativa da CREDN vai do convite ao Comandante Militar da Amazônia, General Augusto Heleno, "para debater em audiência reservada à política indigenista e, em especial, à situação da reserva Raposa Serra do Sol" - ficou aprovado que se realizará uma audiência reservada com o militar e outra com o presidente da Funai, o antropólogo paraense Marcio Augusto Freitas de Meira, por sugestão do deputado Gabeira - à realização de "uma Audiência Pública conjunta com a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul e a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio, com a presença de representantes do Ministério das Relações Exteriores, Banco Central e Ministério da Fazenda, para debate da unificação monetária do Mercosul" - "O nome 'América' poderia ser um nome de moeda que agregasse os interesses de todos os países do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana", defende o deputado Carlito Merss (PT-SC).
Mas é o requerimento nº 167, do deputado Clodovil Hernandes (PR-SP), que me chama mais a atenção: "Requer a constituição de Comissão Externa destinada a cumprir missão temporária autorizada com a finalidade de obter informações acerca da organização, funcionamento, instalações e tecnologias utilizadas pelo Porto de Barcelona, na Espanha." Com a palavra o senhor deputado Clodovil Hernandes: "Senhor Presidente, primeiro eu sou uma pessoa que, me desculpe, mas eu sou assim, eu falo muito em Deus porque eu acredito muito Nele mesmo - não nesse Deus de igreja, mas num Deus ecumênico que é o universo, e eu acredito nessas coisas de uma maneira visceral. Eu fui passar o réveillon em Barcelona e fiquei muito doente. E meu carro errou o caminho e passou por dentro do porto, o que não era necessário. O que me fez conhecer um excelente brasileiro que mora em Barcelona, que é o nosso cônsul", e continua, "eu achei que fui levado até lá porque estou numa costa que começa em Peruíbe e vai até o limite do Rio de Janeiro. O porto de Santos que é um deslumbramento e que está deixado de lado seria um ponto de referência para tudo isso". Por "tudo isso", o nobre deputado quer dizer que há como transformar os portos brasileiros em belíssimos pontos turísticos, dado nosso potencial marítimo e humano. "Se o projeto for aprovado, eu agradeço, porque acho que ele é realmente muito importante para o país e com certeza vai trazer divisas importantes", finaliza.
"Em discussão", diz o presidente da mesa. Silêncio. "Não havendo mais quem queira discutir, vou colocar em votação. Os senhores parlamentares que aprovam permaneçam como se encontram. Aprovado!"
Pouco mais de meia hora depois que entramos, saímos da Comissão. Clodovil passa por nós e cumprimenta Gabeira com um balançar de cabeça e um olhar seco. A mesma democracia que deveria transformar o cidadão comum em parte fundamental do todo permite que figuras públicas sejam eleitas por sua popularidade, e não por seus feitos ou habilidades políticas. "Aprovaram o requerimento dele por pena. É algo que tem que passar pelo Presidente da República, que nunca vai aprovar." E completa: "Ele não fez nada até agora, ainda não entendeu como as coisas funcionam aqui".
Agora, somam-se aos cumprimentos pela pré-candidatura os elogios e felicitações pela filha mais nova, Maya, 21 anos, considerada a melhor surfista de ondas grandes do mundo. De passagem pelo Rio de Janeiro, com aparições em toda a mídia, embarcara naquela manhã para o Tahiti, atrás de um swell que provavelmente traria as maiores ondas do ano.
As questões que atraem grande parte do eleitorado do político mais pop do Brasil são as mesmas que os adversários irão usar contra ele na eleição.
Mas em vez de seguir a cartilha de um experiente Romário de cabelos brancos, que nunca entrava em bola dividida, deixando a pelota rolar solta em campo até chegar a ele, Gabeira simplesmente não pode deixar de abordar os temas que os candidatos a cargos majoritários temem, ainda que aborto, drogas e prostituição não sejam temas de âmbito municipal.
Em 1986, um ano depois de ser preso no Rio durante uma sessão proibida do filme Je Vous Salue, Marie, censurado pelo governo do então presidente José Sarney, a forte e colorida campanha de Gabeira ao governo do Rio de Janeiro tropeçou em uma manchete do Jornal do Brasil e caiu de cabeça no nada: "Gabeira propõe a legalização da maconha".
"É inevitável. Durante muito tempo, é... eu fui chamado de veado e maconheiro por defender a... união civil entre homossexuais e discutir a questão... é... das drogas, com ênfase na legalização da maconha. Recentemente, há uns... seis anos, comecei a defender também a legalização da prostituição.." - mas ninguém te chamou de prostituta, interrompo. "É, não...[risos] mas isso adicionou mais um elemento... no meu currículo, não é? Eles sempre jogam cascas de banana para quem está em ascenção nas pesquisas e...bem, não troco convicções pessoais e políticas por votos", responde em seu escritório no Rio, ciente de que, numa disputa pesada como essa, para quase todos os políticos vale tudo, que políticos eleitos a cargos majoritários, como Martha Suplicy, defendem a união civil entre homossexuais, e que os chamados políticos de carreira planejam-se a longo prazo para nunca cometer tais "deslizes".
"Mas eu nunca tive o objetivo de ser nada, entende? Não tenho uma carreira construída com o objetivo de vir a ser nem prefeito, nem governador, nem presidente. Eu não tenho objetivo", e ri alto. Mas corrige-se: "Meu objetivo é ajudar, entende? Agora, se eu ajudo como prefeito, entende?, eu ajudo como prefeito. Se eu ajudo como deputado, eu ajudo como deputado. Onde achar que possa ajudar eu ajudo, entende? Se um dia, é... eu achar que posso ajudar fora da política... convencional, da política, digamos assim, eleitoral, eu ajudo também. Para mim não tem essa. Eu não tenho apego nem à política como profissão, nem à política como carreira."
É pouco mais de meio-dia, o sol queima a capital. De óculos escuros, ele decide caminhar até o estacionamento distante pouco mais de 1 quilômetro - "Se não posso nadar, como faço sempre que estou no Rio, procuro caminhar 10 quilômetros por dia" -, onde se encontra o carro de uma dupla de jornalistas que prestam serviços de comunicação e marketing ao PV. O destino é uma produtora. Gabeira vai gravar um vídeo de 1 minuto para o programa eleitoral do partido.
"Tenho Moura Brasil e Lerin, o senhor tem preferência por algum colírio", pergunta a maquiadora, já nos camarins. "Olha, eu não uso nenhum dos dois... não uso colírio. Qualquer um está bem."
De volta ao carro, Gabeira pede encarecidamente: "Vamos usar uma música legal, algo moderno, interessante, não deixem a finalização disso na mão do partido. Eles vão fazer uma coisa com uma linguagem velha". "Pode deixar, deputado", responde o mais novo. "Pô, na edição daquele outro vídeo o [Alfredo] -Sirkis [fundador e ex-presidente nacional do PV] usou 'Sem Lenço Nem Documento' [na verdade, a marcha "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso]. Que coisa mais retrô. Isso traz uma imagem antiga para o PV como algo que não muda", diz o político cuja imagem é totalmente veiculada ao partido. "A minha preocupação em certos momentos... tem sido, justamente, a de dissociar essas duas coisas."
Pegamos uma carona até a Asa Sul da cidade. São quase 2 da tarde. Em uma cantina, pedimos saladas, massas sem nenhum tipo de carne, água com gás e suco. Ligo o gravador. "É para declaração?". É. "Tudo bem."
O PV corre o risco de seguir uma trajetória como a do PT?
Sou um pouco cético sobre o futuro do PV. O PV nasceu conosco, vindos todos da Europa, de uma experiência crítica de esquerda no Brasil, havíamos encontrado o movimento ecológico e outros novos movimentos no Velho Mundo. Mas o mundo mudou muito, não basta você ter umas idéias gerais, você tem que amplamente mudar suas idéias sempre, tem de se adaptar ao mundo, tem que responder à complexidade do mundo. [Bingo!] E o PV ficou muito, assim... acomodado em...digamos, uma imagem de defensor da natureza, apoiou-se na repercussão positiva disso, e não se preparou para os novos momentos. Então ele foi virando uma coisa de museu... museu moderno, mas museu. Acho que não há um elã intelectual no PV para acompanhar as coisas.
Mas nenhum partido no Brasil tem um clã intelectual para acompanhar o mundo.
É verdade. É mais um sinal da decadência dos partidos, que hoje em dia não expressam mais nada, não representam mais ninguém. Não sei se o caminho vai passar por um partido ou por novas associações de pessoas que conseguem ver o horizonte de vários partidos diferentes e que se unem, entende?, criando um outro partido, ou frentes, associações momentâneas para resolver um problema. É o que eu faço na Câmara. A 3ª Via foi isso: pessoas de vários partidos que se unem para resolver um problema.
Imagino que o seu eleitor não gostaria de lhe ver em outro partido, mesmo no PT.
Nunca verá! Nunca verá! Peraí, acho que tem um mosquito na sua testa.
Pá! Tinha. O inseto jaz esmagado entre os dedos indicador e médio da minha mão esquerda. "É, era um mosquito mesmo, limpa com o guardanapo", aconselha. Percebendo o pequeno calombo vermelho e alérgico que se forma em minha testa em segundos e meu discreto nervosismo em coçá-lo, Fernando Gabeira conclui: "Acho que ele te mordeu". Acho que sim. "Fica tranqüilo, aqui em Brasília não tem dengue."
Quando a Cássia [Eller] morreu, alguém me ligou, não lembro se foi a Zélia [Duncan], e eu fui a primeira pessoa a chegar ao IML. E fiquei muito impressionado com a situação do órgão, completamente esquecido... deplorável, entende?", conta Gabeira, na sala vip do Plenário Ulysses Guimarães, na Câmara dos Deputados. Ele explica seu interesse em uma audiência pública da qual acabara de participar na Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, no Plenário 09, anexo II da Câmara dos Deputados. O tema: "Denúncias de corrupção nos serviços de medicina legal e em outros órgãos da área de segurança pública do estado do Rio de Janeiro". "Então, eu conversei com o [deputado estadual, PMDB-RJ, que teve sua cassação pedida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em 2006] Álvaro Lins, na época ele era o Chefe da Polícia Civil do Estado do Rio, me mostrei... interessado em ajudar a resolver aquilo, querendo buscar meios de colaborar. Mas ele nem se interessou por proposta alguma. Daí que essa audiência pública... vem de encontro a este tema e revela... digamos, possivelmente, o porque, não é?, daquela situação terrível em que se encontrava o IML do Rio."
No Plenário, a discussão acalorada é para decidir se aprovam ou não a Medida Provisória que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas estradas. "Você verá que o lobby da cerveja é fortíssimo", diz Gabeira. Na sala VIP, os nobres deputados dividem-se entre sofás, cadeiras e um fumódromo. Grupos de quatro ou cinco se formam em torno de mesas redondas brancas. Ouço uma pérola, vinda da mesa logo atrás: "...as menores que se engravidam (sic) e as famílias não quer saber (sic) ...". A maioria assiste ao jogo entre Barcelona e Manchester, um entendiante 0x0 que não encanta José Genoíno (PT-SP), sentado logo à frente da televisão, e nem atrai Aldo Rebelo (PC do B-SP), que conversa com uma conhecida repórter de política enquanto fuma um cigarro. Gabeira está mais preocupado com o Flamengo e Coronel Bolognesi, às 19h30 no Maracanã. "O Barcelona está pressionando", diz. "Mas não faz gol", responde algum "vossa excelência" ao lado dele.
"Vou ali, até a minha liderança e falo com você na volta", desconversa Aldo Rebelo, quando peço para conversarmos sobre Gabeira. "Eu não faço definição nem julgamento de ninguém", responde Jose Genoíno. Outros deputados, menos famosos e não tão importantes para seus partidos, ecoam as mesmas evasivas. Gabeira não só defende tabus, ele próprio é um tabu.
Depois de duas horas de conversa, temos de subir ao estúdio improvisado no restaurante da cobertura do edifício comercial no Jardim Botânico para fazermos as fotos. Pergunto para o homem à minha frente se o processo de decadência do Congresso é reversível. "Toda a minha preocupação é exatamente tentar fazer com que, é... o Congresso recupere minimamente... as suas relações com a opinião pública para que a democracia não seja ameaçada. E, na medida que o Congresso avança na decadência, começa também... a colocar em risco um pilar da democracia. Embora eles achem que estão fazendo uma coisa certa. Ou então achem que estão fazendo uma coisa que não é certa, mas que... não vai resultar em absolutamente nenhuma conseqüência. Essa falta de cuidado com a democracia é produzida também por... [tosse] por horizontes muito estreitos. O sujeito está pensando na carreira dele, na melhoria da situação dele, em como ele vai sobreviver ali, como vai foder um adversário eventual que ele tenha no estado dele. E essa sucessão de indivíduos lutando pela sua... sobrevivência política... independentemente da preocupação geral não resulta bem, entende?. Era preciso que houvesse pelo menos uma elite no Congresso... que tivesse a noção, é... da sobrevivência da Instituição, entende?"
Mesmo sabendo que os adversários mais sujos podem, em determinado momento da campanha, no desespero e na safadeza, usar qualquer frase do melhor pré-candidato à prefeitura do Rio de Janeiro fora de contexto, na tentativa de desmoralizá-lo, arrisco:
Gabeira, afinal, você é ou não é usuário de canabis?
Autor da célebre frase "a pior droga é a ignorância" e mantenedor do site E-Legalize, um dos mais completos do país em informação sobre o tema, e diplomado pelo Secretário Nacional Antidrogas do Gabiete de Segurança Institucional da Presidência da República, general-de-divisão Paulo Roberto Uchôa, em reconhecimento a sua significativa contribuição nas ações de implementação e fortalecimento da Política Nacional sobre Drogas, Fernando Gabeira responde. Ele sabe que suas próprias palavras podem, pelas mãos de ratazanas, se voltar contra ele. "Numa campanha, tudo o que eu digo pode ser usado contra mim." Mas também pode ser usado a favor.
Olha [tosse], eu sou um entendedor da canabis. Eu procuro... Eu escrevi um livro sobre a canabis [A Maconha, Publifolha, 2000], sobre toda a questão. Sempre me interessei pelo assunto, estudo e escrevo sobre. A canabis é uma cultura. Tem um museu sobre ela em Amsterdã, assim, não tem o museu da batata, do inhame, mas tem o museu da canabis. Ela é uma planta complexa porque tem um potencial econômico extraordinário. Você faz tudo com a canabis, desde casa até roupa. Mas no Brasil, como é proibido, eu não posso fumar. Não posso simultaneamente discutir a legislação e feri-la. Mas quando vou à Holanda, e tenho a possibilidade, experimento.
Que coffee shop você freqüenta em Amsterdã?
Não, não tenho um coffee shop, vou ao primeiro que aparece. Estou sempre fazendo muitas coisas, não tem esse ou aquele...
Te interessa algum tipo especial de skunk?
Não, não. Me interessa ver o menu e em cada momento experimentar um, tomar anotações, fazer algumas observações.
Deve ser um esforço pra você se manter careta no Brasil, não?
Não, não é um esforço. Porque, na verdade, é... Existe uma coisa. Talvez, a gente possa dizer: ela não produz uma dependência tão forte quanto outras drogas. Na verdade, são inúmeros os casos de pessoas que fumam e que passam uma semana sem fumar sem que haja sintomas... É... de... de... é... qualquer sintoma de... falta de...
Abstinência
Abstinência, desculpe. Então ela não é como as outras drogas que você dependa dela. Por isso que existe o usuário por lazer, entende? Porque ele pode passar sem isso.
Você já falou em experiências de amor livre. Você já teve algum relacionamento homossexual?
Não, nunca tive. Mas... na verdade...eu não proponho o amor livre, proponho o amor espontâneo, é diferente. Dessas experiências todas, não me lembro de nada na minha vida que seja especial, entende? Procuro ser um cara fiel às minhas idéias e fiel ao que eu vivo. Essa questão do homossexual é uma combinação da tanga com a defesa das idéias. Porque quando vim para o Brasil e usei a tanga e me acusaram... é... que aquilo não era uma atitude digna de um homem, aí eu comecei a questionar o machismo. A minha idéia não era, naquele momento, tratar de homo ou hetero, era dizer que o homem podia ser aquilo que ele queria sem que você perdesse necessariamente a condição de homem. E que no medo de parecer homossexual também havia um componente machista, porque era o medo de parecer mulher. Então, eu estava mostrando, na época, que o machismo tinha que ser superado. E vínhamos do exílio, onde nós estávamos percebendo isso: os homens latino-americanos estavam muito defasados em relação à evolução no mundo. A relação deles com as mulheres, deles com seu próprio corpo, deles com o mundo era muito [tosse] atrasada, comparada com a relação que [tosse] já se vivia em países mais desenvolvidos.
Para ser político é preciso mentir?
Não, você não precisa mentir mais do que qualquer ser humano precisa mentir. Talvez, em alguns momentos, você tenha que mentir, mas a verdade é que a vida sem mentira também é impossível, não é? Ninguém pode dizer que não mente nunca. Às vezes é necessário você mentir... para evitar situações piores ou situações que poderiam ser trágicas ou desastrosas. Mas você pode ter uma vida política clara, pode prestar contas, pode, nesse momento de prestar contas, dizer o que você conseguiu, o que você não conseguiu, e isso ser transparentemente controlado.
Em política, dizem, não existem certezas. Mas, definitivamente, sem sombra alguma de dúvida, não estamos diante de um exemplar do político médio brasileiro.
O editor-chefe da RS Brasil, Ricardo Franca Cruz, entrevistou o apresentador Fausto Silva na RS 13 (out. 07).