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Baby é do Brasil

Prestes a ter sua história contada em documentário, Baby fala sobre música, João Gilberto e os Novos Baianos

Por Cristiano Bastos Publicado em 26/07/2010, às 16h21

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Baby do Brasil em 2009, em São Paulo (foto tirada para o documentário <i>Baby, do Brasil ou Apocalipse</i>) - Gabriel Chiarastelli
Baby do Brasil em 2009, em São Paulo (foto tirada para o documentário <i>Baby, do Brasil ou Apocalipse</i>) - Gabriel Chiarastelli

"Baby sempre foi 'do Brasil', mesmo quando assinava 'Consuelo'". Em 40 anos de vida artística, entre os Novos Baianos, a parceria com o marido e guitarrista Pepeu Gomes e seu voo solo, é assim que a cantora Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, eterna Baby Consuelo, encara as mutações experimentadas por seu nome de batismo. Hoje evangélica (careta jamais), Baby começou soltando a voz na intimidade de seu quarto em Niterói, Rio de Janeiro.

A "falsa baiana" arriscava-se em músicas das musas Julie Andrews, Ella Fitzgerald, Ademilde Fonseca e, também, do futuro guru João Gilberto. "Quem diria que a menina que ensaiava 'Chega de Saudade' escondida no quarto estaria um dia na companhia do próprio mestre?", a cantora lança a pergunta durante essa entrevista concedida numa noite do mês de abril, por telefone. Baby encontrava-se hospedada em um hotel na capital paulista e, antes de iniciar a conversa, pediu um momento para desligar o celular - que não parava de tocar: "São muitos filhos. Se não desligar, eles não param de me ligar", a mãezona se desculpa.

Leia trecho da reportagem "Tinindo Trincando - Novos Baianos e o Melhor da Música Brasileira", sobre o disco Acabou Chorare.

Ela começa contando que, aos 17 anos, fugiu para Salvador. Era 1969 e Baby perseguia o sonho de se tornar estrela. Na Bahia, a mocinha do "nariz arrebitado" conheceu os músicos Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor, o poeta Luiz Galvão e o multi-intrumentista Pepeu Gomes. Época na qual o casal Baby e Pepeu viveu debaixo da Ponte de Piatã, na capital baiana. Baby viu Pepeu pela primeira vez tocando guitarra no show Barra 69 (que carimbou o exílio de Caetano Veloso e de Gilberto Gil). Foi amor à primeira vista: "Pepeu era um guitarrista lindo de 17 anos, uma criança". Após o show, ela foi à festa oferecida por Gil e, na saída, "puxou um beijo" da boca de Pepeu.

Os dois trouxeram ao mundo um sexteto de filhos, cada qual com nome mais espirituoso que o outro: Riroca (que mudou seu nome para Sarah Sheeva), Zabelê, Nãna Shara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá. Baby e Pepeu ficaram casados por 18 anos: "Nos separamos porque éramos praticamente irmãos", ela explica. Na década de 1980, conquistaram juntos o topo das paradas de sucesso. Em 1983, encenaram um dos episódios, no mínimo, mais divertidos de suas vidas: foram - inacreditavelmente - barrados na Disneylândia. Na ocasião, a direção do parque alegou "extravagância". Motivo: seus cabelos coloridos. A história, no entanto, virou um dos grandes sucessos da dupla, o hit "Barrados na Disneylândia".

Em 1985, Baby e Pepeu foram uma das atrações da primeira edição do Rock in Rio. Na época, ela estava grávida e a reprimida sociedade brasileira ficou chocada ao lhe ver cantando com a barriga de fora na TV. Era a fase "Rá!". Nesse dia, Baby se apresentou inteiramente coberta de metais entortados pelo paranormal Thomaz Green Morton.

Em 2012, a nova baiana, que estreou no século 21 convertida à Igreja Sara Nossa Terra, ganhará um filme, o documentário Baby, do Brasil ou Apocalipse. Hoje em dia, Baby - que se autodenomina "popstora" - arrebanha fieis no Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus. Na infância, afirma ter "visto anjos", mas garante, também, ter encarado o "demônio em carne e osso". Nessa entrevista, porém, ela não falou nem de Deus e nem do Diabo. O papo com Baby foi sobre música e outra "divindade": João Gilberto. Além de sua "sagrada família", claro, os Novos Baianos.

Leia entrevista com Rafael Saar, diretor do documentário Baby, do Brasil ou Apocalipse.

Quais suas lembranças do tempo em que João Gilberto conviveu com os Novos Baianos no Rio de Janeiro?

João era considerado o mestre da harmonização, arrebentava musicalmente. Há 40 anos, estava muito à frente de nosso tempo. Ele conseguia transformar a música brasileira, às vezes corriqueira, numa música riquíssima harmonicamente. Naqueles dias de 1972, em que esteve no Brasil, João ficou o tempo todo conosco. Foi nos passando sua "sabedoria". Chegava pela madrugada e sempre trazia uma goiabada embaixo do braço. Ele nos pôs para ouvir o cancioneiro brasileiro pela lente "gilbertiana". Sua visão musical era completamente diferente da usual. Nos sentíamos privilegiados, felicíssimos. Enfim, a gente podia viver o Brasil que não era aquele Brasil que se apresentava. Podíamos viver o Brasil brejeiro, maravilhoso, musicalmente rico.

Lembra de quando João Gilberto os visitou pela primeira vez? Como foi esse encontro?

Numa daquelas noites, levado pelo Galvão (que apelidamos de "Joãozinho Trepidação" por causa de seus trejeitos gilbertianos), João Gilberto vai fazer uma visita aos Novos Baianos. Os dois eram conterrâneos de Juazeiro. Quando fomos morar na cobertura do apartamento da Conde do Irajá, no Rio de Janeiro, fizemos do lugar uma espécie de país, um território nosso. Na sala e nos lugares que cabiam pusemos cabanas feitas com cortinas de crochê. Enfeitamos tudo com maravilhosos tecidos. Quem era casado tinha direito a um quarto inteiro. Nesse momento começamos a ter uma "experiência de família". Também percebemos que, de fato, a situação política era um terror: podíamos ser presos por causa de nossos cabelos grandes. Conhecemos, também, as dificuldades do show business nacional, extremamente careta. Caetano e Gil, os dois únicos "loucos", estavam exilados. E nós naquele cenário em que o Brasil sofria tanto. Ao nos unirmos para morar juntos, sobretudo, era para que tivéssemos uma vitória. Ou seja, a união faz a força. Só foi possível porque nos unimos.

A relação com João Gilberto, por outro lado, era paternal.

Quando João Gilberto nos despertou para a brasilidade, sim, o encontro foi paternal. "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor" (Baby canta ao telefone com a voz rouca). Na hora em que ele cantou Assis Valente acendeu em nosso coração a raiz brasileira. Com o importantíssimo diferencial do nível dos acordes e das moderníssimas harmonias. Declaramos: "Acabou Chorare", não tem mais choro. Lembro de, adolescente, ouvir na vitrola de casa "Chega de Saudade" deitada no tapete da sala. Nunca eu supunha que estaria um dia cantando com o criador daquilo.

E o encontro com Moraes e Galvão em Salvador, como foi?

Eu estava na casa da minha amiga Edilane Lobão, em Salvador. Uma noite fomos ao Brazas, o point da época, e lá fui apresentada ao Moraes e ao Galvão. Eu estava com minhas calças rasgadas, roupas loucas, sem saber o que iria acontecer no futuro. Foi um encontro marcado de Deus. Os dois me viram e logo foram perguntando: "Você não quer fazer um show com a gente?" Logo em seguida, no Teatro Vila Velha, montamos o show O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal. Foi a primeira vez que nos apresentamos juntos.

Mas você cantava nessa época?

Sim, mas nesse primeiro encontro não contei para eles. Como é até hoje, eu tinha um trato com Deus. Consiste em "tudo que tiver que ser para mim tenho de saber". "Porque o Senhor enviou-me pra cá?". Moraes, Paulinho e Galvão ainda nem sabiam que eu cantava. Depois de Desembarque dos Bichos, ainda fiz muitas coisas na banda, mas eu ainda não tinha revelado que eu era cantora. Um dia Moraes estava cantando no chão da sala e falou: "Canta aí, Baby!". Improvisei com a voz rouca. "Como é que você não fala pra gente que canta?", Moares disse, admirado. E eu: "É que estou com uma 'parada' com Deus..." Antes, o Pepeu tocava na banda os Leif's, mas o conheci no show Barra 69. Começamos a flertar de cara. Depois do show, fomos todos para casa do Gil. Vi Pepeu por lá e pensei: "Não tem mais jeito. Esse cara tem a ver comigo". Eu andava interessada no Gil, mas Pepeu bateu o olho em mim e a química rolou no ato.

O quão emblemática "A Menina Dança" é para você?

"A Menina Dança" é simbólica porque fala que "tava tudo virado", que eu "cheguei depois do tempo regulamentar". Na época havia muitas cantoras famosas bombando, como Gal Costa e Elis Regina, e eu vinha com outro estilo e com meu jeito ousado de ser: a brasilidade com pegada rock 'n' roll, a marca do Novos Baianos. Nessa música eu improvisei, que é outra faceta minha, a jazzística. Também existe a influência de instrumentos musicais, eu gosto de solfejar. O "din-gon", por exemplo, é influência das sílabas do João. Essa música é um retrato fiel da Baby, musical e pessoalmente. E nela coloquei um pouco das cantoras que reverencio: Ademilde Fonseca, Edith Piaf, Janis Joplin, Julie Andrews e Elis Regina.

É verdade que, antes de gravar Acabou Chorare, os Novos Baianos chegaram na casa do produtor João Araújo mortos de fome e, ao sete anos, Cazuza (filho de Araújo) teria ficado impressionado com vocês? Trazia comida da galadeira...

Sim, é verdade. Depois ele contou que fora nesse dia que pensou em ser artista pela primeira vez. Certamente, o Cazuza deve ter oferecido a geladeira inteira. Sempre que a gente chegava na casa do João Araújo, ele nos oferecia um jantar. Éramos todos uns mortos de fome naquele tempo.