Em quase três anos de ação estrangeira, a crise social se mantém firme na história do Haiti, dilacerado por ditaduras sangrentas e interferências externas. O que a ONU e o Brasil fazem no país?
Vestido quase como um soldado da missão da ONU, de capacete azul e colete antibalas, sou apresentado à região portuária da capital do Haiti pelo buraco de uma escotilha. O calor úmido faz todos suarem nos uniformes. O urutu, apelido dos blindados brancos das Nações Unidas, rodeia o bairro de Cité Soleil - a maior favela do Caribe e principal reduto dos grupos armados do país. Homens de prontidão, de olhar inquieto, empunham fuzis. Dois jipes abertos com metralhadoras montadas na traseira fazem frente e retaguarda ao comboio. Na calçada da avenida pela qual passamos há uma feira onde se vendem roupas usadas e frutas, tudo exposto no chão ao lado de lixo, mijo e merda. Mamões, sapatos, bananas, calças, melancias e lençóis. Pergunto ao coronel do Exército que organizou o city tour para os jornalistas se poderíamos parar e conversar com as pessoas. "Descer aqui? Impossível, não é seguro. É a entrada de Cité Soleil, há muita gente." Em muitas regiões do Haiti, os soldados da ONU sofrem resistência, e a favela é uma delas por conta dos grupos armados. Do lado de lá da avenida, os feirantes sem clientela se escondem das lentes dos fotógrafos que passeiam seguros no carro da ONU.
Naquele agosto de 2004, às vésperas do jogo com a seleção do Brasil, o contexto haitiano era novo para jornalistas, acostumados a não olhar a fundo a história da América Latina; para diplomatas, que até então acompanhavam a situação com reservada distância; e para militares brasileiros, que, apesar de terem participado de outras missões, têm agora o comando do maior contingente militar fora do país desde a Segunda Guerra Mundial. Novidade também para mim, que, pela primeira vez, pisava no país mais pobre das Américas sem saber que voltaria a visitá-lo, como jornalista, outras duas vezes. A principal novidade, no entanto, era a atuação da ONU e, sobretudo, a situação política em frangalhos a partir da queda do ex-presidente Jean Bertrand Aristide - um padre adepto da teologia da libertação que se tornou político e esteve no poder três vezes. Foi retirado do país em fevereiro de 2004 por um grupo de fuzileiros norte-americanos, inaugurando mais uma crise política e social.
Apresentado a Cité Soleil pelos capacetes azuis, não pude conhecê-la fora do roteiro determinado pelos militares. Teria de voltar ali sem a bolha de segurança para conversar com a população. Entender o que achavam os haitianos sobre seu país e a missão de paz. No dia seguinte, logo pela manhã, contrariando as recomendações de não andar sem escolta, peguei um motorista-intérprete, com francês, inglês e creole na bagagem, e seguimos para a favela em uma velha caminhonete cinza, batida várias vezes. Estacionamos o carro o mais perto possível de uma das entradas da favela. A partir dali, seguimos a pé por conta dos bloqueios de concreto instalados nas vias de acesso do local. Segundo os moradores, é parte da estratégia dos grupos armados para evitar a entrada da Polícia Nacional do Haiti. Algo como se faz nos morros controlados pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro. A polícia haitiana tem um despreparo imenso. São inúmeros os relatos de violência desnecessária, prisões sem motivo e até assassinatos. Contei sete esquinas até virarmos à direita. Alguns metros depois, por um enfileirado de barracos de madeira, chegamos à casa de Magalie Foufoune, sua mãe e dois casais de filhos. Sem água encanada, sem energia elétrica e com pouca comida.
A entrada do barraco tem cortinas de sacos de naílon com estampas de bandeirolas norte-americanas, que embalaram o arroz importado pelo país com a abertura econômica. Magalie fala creole, a língua nativa, resultado da mistura entre o francês e vários dialetos africanos. Com ajuda do guia, conversamos por uma hora. Ela trabalha de faxineira e ganha 2 mil gourdes mensais, o equivalente a menos de US$ 10. Para sustentar seis pessoas. Ainda lava roupas para completar o orçamento. O marido morreu em 1993 sem nenhum diagnóstico preciso. Evangélica, ferrenha opositora do sincretismo de católicos e adeptos do vodu haitiano, Magalie insi- nua que tenham "encomendado" a morte do companheiro porque cobiçavam o trabalho dele. No barraco apertado de menos de 10 metros quadrados, vivem todos. Outros dois filhos de Magalie morreram de disenteria e desnutrição. Restam Nana, 17, Jerry, 14, Evelyne, 12, e o pequeno Sonson, de 02 anos, nascido sem aprovação de um segundo marido. Do salário apertado, ainda paga escolas privadas para o letramento da prole. Não há vagas públicas para eles.
"A vida é sofrida. Estamos nas mãos de Deus", completa Magalie com olhar baixo. O perfil de sua família coincide com o da população em geral. O Haiti não é qualquer país pobre. É um dos piores, de acordo com os índices sociais. Tem o tamanho do estado de Sergipe. Divide a ilha Hispanhola com o país vizi-nho, a República Dominicana. Tem cerca de 8,4 milhões de habitantes, o equivalente à população do estado de Pernambuco. Os dados sociais até 2006 eram estimativas, porque o último censo havia sido realizado quase 25 anos atrás. O levantamento do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) mostra um país de maioria jovem, com menos de 20 anos; afro-descendente, quase a totalidade é negra; analfabeta, 59% de analfabetos adultos e menos da metade das crianças em idade escolar podem ir às aulas; além dos piores índices de mortalidade infantil e infecção por aids do hemisfério oeste. O que justifica sua 154ª colocação no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ou seja, apenas 23 posições na frente do pior do mundo - Níger, na África.
O diálogo que tenho com Magalie é escasso e truncado quando começamos a falar de política. Pergunto o que ela acha de Aristide. Após eu ter lido um artigo da revista britânica New Left Review, refe-rência para o debate da esquerda, sabia que Cité Soleil era reduto político do ex-presidente. Ele mobilizou o país inteiro para levantar a voz e derrubar de vez as ditaduras sangrentas de Papa Doc e Baby Doc. Na primeira eleição direta, Aristide foi vitorioso com esmagadora votação de 67% em 1990. Um golpe militar o derrubou meses depois. Foi recolocado no poder por uma missão de militares norte-americanos a mando de Bill Clinton. Chegou a ser acusado por movimentos sociais de adotar um receituário ortodoxo em sua política econômica. Nesse raciocínio, Magalie explica que não gostava das ações do presidente nos últimos tempos. "Ele não dava atenção para a população. Ele estava cheio de discurso, mais nada", critica. Nosso guia, um haitiano empregado e de classe média chamado Ronald Morin, complementa: "Muita gente não gostava mais de Aristide, mas era uma relação ambígua. Entre o populismo baseado em seu passado e o cansaço por tão poucas mudanças".
A conversa com a faxineira e com o guia me instiga a saber mais sobre Aristide. Procuro o economista haitiano Camile Chalmers, conhecido por seu pensamento altermun- dista nas edições do Fórum Social Mundial. Calmo, falava em tom pedagógico com todos. Relatava que apoiou a mobilização que levou o padre à presidência em 1990. Após o golpe militar, liderado pelo general Cédras, o eco-nomista foi preso e torturado. Depois, junto com movimentos de campesinos, lideranças de bairro e de mulheres, ajudou a organizar os protestos contra Aristide em 2003, por conta da política econômica que classificava como "neoli-beral". Futuramente, ele seria o organizador da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti, em que representantes de movimentos sociais latino-americanos estiveram em Porto Príncipe, em 2005 e 2006, sob a liderança do prêmio nobel argentino Adolfo Pérez Esquivel. O grupo formou a principal voz contra as ações da ONU desenvolvidas no Haiti.
Chalmers explica inicialmente que Aristide obteve grande apoio popular em fins da década de 1980. "Para os movimentos sociais, havia uma esperança grande que seu retorno, após a ditadura militar, seria um recomeço. Mas sua política adotada foi gradativamente se tornando mais conservadora", relata. Segundo ele, a situação política haitiana é sensível, extremamente politizada e com uma herança de disputas armadas. Pelo menos cinco principais grupos armados atuam no país. A Frente Revolucionária Armada pelo Progresso do Haiti (FRAP), grupo paramilitar formado durante a última ditadura para atuar contra militantes do Lavalas, partido do ex-presidente Aristide. Os ex-militares, cujos membros são soldados das antigas Forças Armadas, extintas por Aristide em 1994. O terceiro grupo é a Frente de Resistência, principal ator do movimento de derrocada de Aristide. Já os chiméres formam o braço armado dos simpatizantes do Lavalas. Além de quadrilhas e gangues, cujos interesses estão ligados ao crime organizado e ao narcotráfico.
Em artigo de 2004 à New Left Review, o pesquisador Peter Hallvard avalia que as disputas entre os grupos armados remontam às decisões repressivas das ditaduras e de seus partidários. A própria decisão de enviar tropas internacionais para "controlar" os protestos e retirar Aristide surge nesse contexto. "Os objetivos reais da ocupação iniciada em 29 de fevereiro de 2004 são absolutamente evidentes: silenciar e dificultar todo o apoio restante [a Aristide]. Durante a primeira semana de sua intervenção, a força de invasão franco-americana operou quase exclusivamente em localidades pró-Aristide e só matou seguidores do Lavalas. O novo primeiro ministro, o títere Gérar Latortue, abraçou publicamente o assassino convicto Tatoune [que liderou operações armadas contra o presidente] e seus rebeldes de Gonaïves", registra Hallvard no texto. Camile Chalmers também denuncia indícios de que o principal grupo armado das mobilizações contra Aristide marchou da fronteira com a República Dominicana e teria tido ajuda, por meio de treinamento e recursos, dos próprios Estados Unidos.
O que motivou realmente, nos subterrâneos das decisões dos gabinetes presidenciais, a ação de retirar Aristide do Palácio do Governo, em fevereiro de 2004, e levá-lo exilado dificilmente será explicado. Havia interesses diversos nos protestos sociais, nos grupos armados e dos estrangeiros. E que se misturavam na conjuntura política. O que interessa é que, de prontidão, França e Estados Unidos se uniram com Canadá e Chile para enviar ao Haiti uma força militar internacional em nome da "transição democrática". Retiraram Aristide e, somente depois, foi convocada uma reunião na ONU sobre o assunto. Foi um período tenso e violento. Houve massacres nos subúrbios da capital, Porto Príncipe, e acusações de violações de direitos pelas tropas estrangeiras. Feridos levados aos hospitais eram assassinados por inimigos armados - cenas que infringiam regras do direito humanitário internacional, ou seja, quando é possível classificar a situação como conflito armado. Mas a situação progressivamente se normalizava. E, no contexto em que os Estados Unidos se atolavam cada vez mais na invasão do Iraque, era preciso encontrar uma solução para o Haiti.
A discussão no Conselho de Segurança da ONU, órgão que trata da guerra e da paz, então começou a dar passos largos. Em um acordo por intermédio do presidente francês Jacques Chiraq, os líderes sul-americanos, Ricardo Lagos (Chile), Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) e Néstor Kirchner (Argentina), aceitaram entrar no comando de uma futura missão de paz, autorizada pela ONU. O embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, ex-crítico da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, foi o escolhido para chefiar a missão. Ao Brasil, ficou a tarefa de chefiar uma tropa militar, inicialmente de 6,7 mil soldados sob os comandos do general Augusto Heleno Pereira. Foi instalado um governo provisório sob o comando do presidente interino Alexandre Boniface e do primeiro-ministro Gérard de Latortoue, economista e ex-funcionário da Agência de Desenvolvimento da ONU. As reações foram diversas. A Comunidade dos Países do Caribe (Caricom) pediu, por exemplo, investigação das Nações Unidas sobre a atuação da força internacional (MIF), o que foi rejeitado pelo então secretário de Estado, Colin Powell. Aristide disse que foi retirado à força pelos norte-americanos. Com o tempo, os países aceitaram a situação como normal.
A resolução que autorizou o envio da força de estabilização de paz da ONU previa apoio ao governo de transição para estabelecer ambiente seguro e estável, reestruturação da Polícia Nacional do Haiti, adoção de medidas de segurança pública e desarmamento, apoio ao processo constitucional, à realização de eleições, e o monitoramento da situação dos direitos humanos. Os soldados não ti-nham poder de polícia e, sim, o de dar suporte à força implementada, a Polícia Nacional do Haiti, que tem funções de defesa nacional e vigilância ostensiva. A atuação das tropas militares exerceria uma função pacificadora, mas que era limitada. Essa questão foi anunciada pelo próprio general Heleno nos primeiros meses de missão. Depois, virou bandeira de movimentos sociais. No Haiti, país carente de quase todos os serviços básicos à população, somente um mutirão para cooperação médica, agrícola, pedagógia e de engenharia poderia ajudar os haitianos. "Em vez de mandar seus soldados, o governo brasileiro deveria enviar alfabetizadores e técnicos da área de biodiesel. Queremos aprender com o Brasil as ótimas experiências recentes que o país vem vivendo, como o Bolsa-Família. Isso é o que resolve nossos pro-blemas", disse o economista Chalmers.
O argumento primeiro da defesa da missão era o de que a situação estaria pior se não houvesse o envio de tropas, o que desconsidera o movimento armado anterior que provocou a instabilidade. O secundário, e repetido subliminarmente, era o de que, caso os "bons" sul-americanos não estivessem no Haiti, os "imperialistas" norte-americanos estariam. Um auto-elogio ideológico, mas que não se sustentava sem um planejamento alternativo para pacificar e criar condições soberanas para um país explorado e ocupado. O Conselho de Segurança da ONU, como todo espaço diplomático, é resultado direto das propostas e dos interesses de seus membros. Isso significa que interesses maiores - de paz, soberania e igualdade - podem ou não ser preservados em cada decisão. Depende da atuação de seus membros. Então, estaria o Brasil interessado em garantir uma cadeira permanente no conselho e, por isso, teria aceitado a participação no Haiti? Ou seja, em nome de ter direito a veto e voto nas decisões sobre os conflitos armados, teríamos ido com tropas para o Caribe sem um planejamento de médio prazo?
Para o professor brasileiro Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais da Universidade de Santa Maria (RS), a possibilidade de o Brasil ter cogitado utilizar a missão como trampolim para entrar no Conselho de Segurança não existe. Como especialista na situação haitiana, Seiteinfus chegou a elaborar um relatório para o Ministério das Relações Exteriores do Brasil sobre a articulação política dos atores haitianos para as eleições, realizadas em fevereiro do ano passado. "Quero que você me mostre uma única frase ou documento que prove essa teoria. Essa não é a regra para entrar no Conselho. Não é fazer o bem. Teríamos de fazer o mal, como fa-zermos a bomba atômica. Esse é o caminho do Conselho de Segurança. É o que a Índia está fazendo. O conselho é um clube atômico. O Pentágono, que detém o poder de veto no Conselho de Segurança, eles fizeram um seguro mútuo entre eles. Está lá dentro para ser controlado. Quem diz isso no Brasil, me desculpe a expressão, está sendo um neófito ou ingênuo. Ou alguém que possui um co-nhecimento da história e das relações de poder internacionais extremamente limitado", critica.
A situação do povo haitiano, segundo o professor Seitenfus, pode ser dividida em três fases atualmente com a missão de paz. "A primeira é a securitária. Houve muitas discussões, mas enfim organizaram suas eleições após uma transição longa, demasiadamente longa. Uma segunda fase se inicia com um governo democraticamente eleito e reconhecido por todos. A terceira fase, que ainda não se iniciou, que está engatinhando, é a fase operacional, quando nós vamos atacar os verdadeiros problemas haitianos, que não se trata da luta pelo poder, mas do 'hipersubdesenvolvimento' ou da universalização da miséria, do massacre da esperança. Quando vamos atacar esses problemas? Essa é a grande questão."
Com a vitória do presidente René Préval nas eleições para a Presidência da República, o país tem uma nova chance de buscar o caminho de democracia. O dirigente pede a continuidade da missão de paz e da cooperação internacional, que ainda mantém ritmo burocrático e lento. Em março, os militares capacetes azuis começaram a ocupar o bairro de Cité Soleil. Suspeitos de integrar as gangues foram presos. Evens Jeune, apelidado de Ti Kouto, foi capturado em março na cidade de Les Cayes, no sul do país, depois de ter fugido da favela, na capital. Ele era considerado o mais procurado pela polícia nacional. A população chegou a organizar passeatas para agradecer a operação, organizada de maneira semelhante àquela realizada no bairro de Bel Air, região mais próxima do Palácio do Governo, onde ficam o gabinete presidencial e o centro político do país.
"A situação no Haiti é caracterizada pela violência, cujos efeitos são sentidos principalmente nas áreas pobres da capital, Porto Príncipe. Até fevereiro de 2007, a área mais afetada pela violência era Cité Soleil, onde, desde 2004, conflitos freqüentes tomaram lugar entre grupos armados, a Minustah (sigla em francês para Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) e a polícia local. A população vivia sob constante ameaça de ser pega no fogo cruzado. Desde fevereiro, a situação tem se acalmado", registra uma nota do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, que monitora a situação haitiana.
O controle de Cité Soleil marca uma etapa na situação de segurança, mas não altera a questão estrutural. O modelo de missão de paz da ONU no Haiti completa três anos em junho. A permanência foi renovada sucessivas vezes pelo Conselho de Segurança. A última decisão prorrogou o prazo da força até outubro de 2007. Há a sinalização de vários diplomatas, inclusive a do embaixador brasileiro no Haiti, Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, de que o prazo pode continuar a ser renovado até 2011. Até agora, no comando geral, foram duas trocas. A chefia das tropas militares passou pelas mãos de quatro brasileiros. A ONU contabilizou 15 mortes de soldados, três policiais e admite a morte de quatro estrangeiros e três civis haitianos em situações de conflito. Cada ano de ação gerou um custo de cerca de US$ 500 milhões, cerca de 40% do total da dívida externa do Haiti.
Como criticam os movimentos sociais do Haiti, a intervenção da ONU e da comunidade internacional não ajudou a apontar saídas para bases da dependência econômica do país. Entre o alto comando militar brasileiro, que acompanha a missão, são duras as críticas sobre a ausência de um planejamento dos países ricos para implementar projetos de infra-estrutura e serviços básicos. Outro ponto que não muda, ajudando a manter dependência econômica internacional, é a forma de administrar o pagamento da dívida externa. Segundo a Rede Jubileu Sul, a situação do endividamento é "crítica". Durante o exercício 2004/2005, começo da missão, 22% do total do orçamento do governo era utilizado para o pagamento dos juros da dívida. No período posterior, 2005/2006, o pagamento de juros somou US$ 69,21 milhões, o dobro do valor dos recursos para a saúde pública.
Desde a chegada dos espanhóis, em 1492, no Haiti, o país vem sofrendo com sucessivas formas de exploração, contraindo, assim, dívidas intermináveis com países como França e Estados Unidos. Porém, um olhar crítico da história pode avaliar a questão de maneira inversa. Foi o que propôs a Missão Internacional de Investigação e Solidariedade com o Haiti, liderada por Adolfo Pérez Esquivel, em 2005 e 2006. Entre os exemplos, a dívida da independência, cobrada pela França, antiga metrópole colonizadora, em 1825, para aceitar a alforria dos escravos perdidos como mão-de-obra. Segundo o relatório final da missão, "para aceitar a independência, impôs uma dívida de 150 milhões de franco-ouro (US$ 22 bilhões em valores atuais) para indenizar franceses que tinham perdido os seus escravos e suas plantações". O movimento pede uma auditoria detalhada da dívida e o perdão sem condicionalidades do montante atual. O círculo vicioso da dívida pode ser traduzido em "quanto mais pagamos, mais devemos e mais empobrecemos", critica a secretária-executiva da Rede Brasil, Fabrina Furtado. Atualmente, também tramita no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) uma proposta de anulação da dívida. O governo brasileiro tem direito a voto na proposta e pode influenciar a situação. Contudo, ainda não há confirmação sobre a estratégia em relação ao montante perdoado e às condicionalidades.
No Brasil, a versão oficial dos fatos, transmitida pelos governantes, não dá conta de relatar o problema haitiano. Ao mesmo tempo, a cobertura da imprensa é fragmentada. Mesmo a minha. Co-nheço diversos jornalistas que viajaram ao Haiti. A maior parte na sombra das ações militares e, até por isso, com poucas variações de entrevistados em suas matérias. Quase nenhum cativa fontes para explicar o que a ONU e o Brasil fazem ali. Ainda sabemos pouco sobre o que está em jogo nas rodas da diplomacia internacional e na realidade popular haitiana, onde mantemos uma missão sem perspectiva real de saída. Se o Brasil mantiver uma missão exclusivamente militar no Haiti, o país pode ficar marcado como só mais uma potencial mudança. Outra interferência em uma história de cobiças imperialistas.
Talvez, no país do futebol, o que tem chance de ficar na história é somente o dia de um jogo entre as duas seleções. Quando Ronaldinho Gaúcho escapou de quatro jogadores haitianos, driblou o goleiro e marcou o gol de perna direita. Sua comemoração foi uma sambadinha na marca da linha de fundo, em frente a uma placa "Peace". Três vira, seis acaba, segundo a gíria da pelota. O time brasileiro goleou. O Haiti não marcou nada. Foi um jogo de estrelas contra um time de fãs. Ao final, inclusive, os jogadores haitianos pareciam tietes dos brasileiros. E o país voltava à sua luta diária.