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Brigando para Perder

Como e por que a reorganização escolar se transformou na maior derrota política de Geraldo Alckmin no governo do estado de São Paulo

Pedro de Castro e Regiane de Oliveira Publicado em 13/01/2016, às 12h50 - Atualizado às 13h34

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Como e por que a reorganização escolar se transformou na maior derrota política de Geraldo Alckmin no governo do estado de São Paulo. - Ilustração: Lézio Júnior
Como e por que a reorganização escolar se transformou na maior derrota política de Geraldo Alckmin no governo do estado de São Paulo. - Ilustração: Lézio Júnior

O dia transcorria normalmente no colégio Américo Brasiliense, em Santo André, São Paulo, em meados de novembro de 2015, quando a aluna Gabriela Andrade, de 16 anos, encontrou um bilhete perdido no balcão da recepção. Havia nele uma mensagem assinada pela diretora: “Não receber mais inscrições do 6° ano”. Naquele momento, em que chegavam notícias das primeiras escolas ocupadas em protesto contra a reorganização escolar planejada pelo governo paulista, o bilhete teve o efeito de um rastilho de pólvora.

Ativista da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES), Gabriela fotografou com seu celular a anotação e saiu pela escola mobilizando os colegas. “Foi aí que decidimos ocupar”, ela conta. Em pouco tempo o Amé-rico Brasiliense se tornou mais um “centro de resistência” estudantil. “Tivemos aulas públicas, oficinas e até um show do Zé Geraldo.”

O exemplo do colégio de Santo André ilustra bem a maneira como se desenrolou a maior derrota política do governador Geraldo Alckmin (que acumula quatro mandatos no currículo) e do próprio PSDB (que comanda São Paulo há mais de 20 anos) no estado. Representantes contrários à reorganização afirmam que a iniciativa não passava de um pretexto para cortar custos.

Mas o argumento do governo não era, segundo os especialistas, necessariamente ruim: promover uma reestruturação da rede para fazer com que as escolas tivessem ciclos separados, de forma que determinadas unidades atendessem do 1° ao 5° anos e outras do 6° ao 9°.

Segundo o governo, a medida traria melhorias na gestão das unidades e, consequentemente, maior qualidade educacional. Em tempos de crise e corte de despesas a iniciativa também traria uma boa economia. “A primeira notícia sobre a reforma foi dada pela imprensa e logo começou um boato sobre quais escolas fechariam. Só depois de um mês após o anúncio é que soltaram uma lista sobre as escolas atingidas”, relata o jornalista Paulo Saldaña, especialista em educação que acompanhou todo o processo de perto para o jornal O Estado de S. Paulo. “O governo subestimou a reação dos estudantes e achou que haveria apenas a oposição de sempre, do sindicato dos professores.

”Pegos desprevenidos, os diretores das escolas tomaram atitudes apressadas e acabaram fortalecendo o movimento de resistência. “A nossa diretora chamou a polícia no meio de

uma assembleia e então decidimos ocupar. A PM tentou entrar, mas parou na secretaria”, conta Bryan Aftimus, de 19 anos, aluno do 3º colegial do Colégio Caetano de Campos, no bairro da Aclimação, e diretor do grêmio, que atende pelo singelo nome de Revolucionários.

Aos poucos se consolidou a percepção, tanto dos alunos quanto da opinião pública, de que a medida tinha razões apenas financeiras. “O argumento das salas ociosas é um pretexto para reduzir custos no setor. Não tem fundamento. As escolas privadas mais tradicionais, e que são consideradas de boa qualidade, têm os vários ciclos na mesma unidade”, opina Maria Clotilde Lemos Petta, secretária de relações internacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee).

A ocupação das escolas foi uma surpresa para todos. Afinal, parecia pouco provável que um movimento com o potencial de fazer tremer a paz do governo do PSDB em São Paulo pudesse ser gestado dentro do ensino público, por estudantes que, segundo as piores perspectivas, estavam fadados a engordar os números da chamada geração nem-nem, aquela que não trabalha nem estuda. Imagens de jovens e crianças limpando as

escolas, cozinhando, consertando móveis, assistindo a aulas dadas por voluntários e até mesmo enfrentando policiais militares para defender seu espaço destoam bastante do imaginário do jovem nem-nem esinteressado.

O efeito colateral desse movimento foi ainda mais surpreendente, algo que nem a crise de abastecimento de água e os atrasos nas obras do metrô conseguiram em São Paulo: abalar a popularidade do governador

Geraldo Alckmin.

“A mobilização se dá pelo receio de um prejuízo absoluto. Eles iam perder as escolas e se mobilizaram de maneira autônoma”, afirma Daniel Cara, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Mas é claro que fica a pergunta: por que a ameaça ao espaço escolar gerou mais indignação entre os estudantes do que outros problemas frequentemente encontrados na escola pública, como falta de professores? Haroldo da Gama Torres, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), tem uma pista. “Apesar de não termos elementos que ajudem a pesar o lado político dos jovens, sabemos em nossas pesquisas que a escola é um espaço importante de socialização, por isso é um espaço muito valorizado”, afirma. Isso não significa que os jovens gostam da escola. Em geral, o jovem da ocupação não aprecia as aulas, que são consideradas chatas, repetitivas, expositivas e cansativas. “A movimentação começa não com os alunos comportados, mas sim com os que davam pouco valor à escola, que com a possibilidade de perdê-la decidem lutar por um outro modelo de reorganização”, explica Daniel Cara.

Os estudantes das ocupações já são considerados por muitos como produto do es pírito dos movimentos de junho de 2013. Porém, se em junho de 2013 a juventude rejeitou a participação de entidades políticas ao ir às ruas protestar contra tudo e todos, as ocupações foram diferentes – tiveram um foco muito claro (barrar a reorganiza- ção da rede) e valeram-se da solidariedade de entidades como o movimento estudantil.

Essa cooperação se ampliou e passou também a vir de artistas, educadores, pais e movimentos sociais. E foi interpretada pela Secretaria de Educação como uma politização do movimento para algo muito além da reorganização e do protagonismo dos jovens. “Eu não glamorizo essa reação como uma situa- ção única dos jovens, mas sim como algo que está relacionado ao que está acontecendo no âmbito federal”, afirma Fernando Padula, chefe de gabinete da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, que atua no estado desde 1999. Ele protagonizou um dos episódios mais emblemáticos da ocupação ao ter o áudio de uma reunião, realizada com dirigentes de ensino do Estado de São Paulo, divulgado pelo portal Jornalistas Livres. Na gravação, ele anunciava que a Secretaria se preparava para uma “guerra” contra as escolas que foram ocupadas. O episódio levou à queda do secretário da Educação, Herman Voorwald, que pediu para sair do cargo, e a uma nova onda de apoio aos estudantes, que levou à suspensão da reorganização escolar no começo de dezembro.

Até o fechamento desta edição, Irene Kazumi Miura respondia como secretária adjunta. Padula continuava firme, mas com um tom bem menos bélico no discurso. Com a suspensão da reorganização, as prioridades mudaram. “Estamos nos dedicando a fazer as matrículas e a organizar a rede, o que é um processo complexo, pois impacta em uma nova logística de distribuição de materiais didáticos, cadernos, merendas, contratos. Todo o foco está sendo para garantir o início do ano letivo, que foi prorrogado para 15 de fevereiro”, explica.

O segundo desafio é mais complexo – criar canais de diálogo que garantam que os jovens sejam ouvidos. Padula afirma que já há um plano. “Queremos aproveitar para rediscutir a composição dos conselhos de escola e aumentar a participação de pais e alunos.” Por meio de um projeto de lei, a Secretaria propõe intensificar a participação da comunidade no projeto pedagógico das escolas, que é, de maneira resumida, o documento que explica a identidade da escola em sua prática educacional diária.

A mensagem de Padula parece, de maneira geral, ter mudado. Ele cita o filósofo Mario Sergio Cortella e diz que sabe que o aluno é do século 21, enquanto o professor é do século 20 e a escola é do século 19. Garante que o estado entendeu o recado dos estudantes e que é necessário repensar o modelo de escola para que ela seja mais inspiradora. Porém, explica que “isso tudo nada tem a ver com a reorganização”.

Na visão do chefe de gabinete, o protagonismo juvenil, se é que existiu, foi cooptado por movimentos estranhos à escola, como a CUT, o MTST, o Sindicato dos Bancários, e até mesmo a Sindicado dos Professores

de Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), que, segundo Padula, já tem até meta de ocupação de 500 escolas no estado. São os movimentos que ele chama de “pró-Dilma”, que, aliados a entidades como Unifesp, Faculdades de Educação da USP e Unicamp, entre outras, se manifestaram a favor dos estudantes. “A reorganização foi desculpa para colocar em prática uma agenda política. Era uma minoria de jovens, com

escolas ocupadas por 10, 15 alunos. Foi uma onda. Todo mundo já teve essa idade”, diz Padula.

Alberto Goldman (PSDB), ex-governador do estado de São Paulo, concorda. “Bloquear avenida com cadeiras é molecagem, fiz isso quando estava na escola politécnica para reclamar de aumento da tarifa de jogos nos anos 1956/1957. É a mesma tática. Parávamos a avenida inteira. A diferença é que éramos adultos.”

Mas Goldman entende que a reação ao movimento acabou prejudicando a imagem do governo. “A cena, em qualquer hipótese, de um militar fardado e armado arrancando a cadeira de um jovem no meio da rua – o que é absolutamente correto, já que o cidadão não pode bloquear uma avenida –, sempre parece truculência. Com adulto dá para fazer, mas com criança não dá.”

O custo político foi muito alto. “Não esperávamos que fosse afetar a popularidade, pois temos que lembrar que estamos falando de cerca de 200 jovens em meio a uma ação política evidente. Mas não acredito que o governo tenha disposição de levar a reorganização adiante, ao menos não sem antes acordar com as partes”, diz Goldman.

Enquanto o governo tenta decidir que rumo tomar, os estudantes parecem deixar claro que não é uma questão de suspender a reorganização e voltar à normalidade. O que alunos e um efetivo de 230 mil professores e quase 60 mil servidores.

Por enquanto, o único consenso é a nota zero do estado de São Paulo em comunica- ção. “O governador e o secretário erraram desde o começo. Deveriam ter conversado com as pessoas. Não apenas com professores

e pais, mas também com as pessoas que estão ligadas à educação”, afirma Cristovam Buarque, ex-ministro da Educação, ex-governador do Distrito Federal e senador. A inexistência de canais que promovam o diálogo com a sociedade impede o avanço da iniciativa. O projeto de reorganização sequer está disponível para aná- lise da população. Buarque acredita que a ideia em si não é ruim, mas acha que ela carrega dificuldades de execução no lado logístico, já que é preciso levar em conta onde moram os alunos, para onde vão se deslocar e o ônus de cada jovem que vai ter que mudar de escola.

O economista Claudio de Moura Castro, especialista em educação, também avalia que o erro maior foi a maneira como a ideia da reorganização foi colocada para a sociedade. “A reorganização das escolas é um processo mais do que justificado. Você tem escolas com capacidade ociosa e alunos com idades diferentes misturados, o que não é necessariamente uma boa ideia. Mas a venda disso foi muito ruim”, afirma.

Nem todos pensam, no entanto, que a comunicação foi o maior dos problemas. “O projeto é péssimo, pois sabemos que ele não terá um efeito pedagógico. A medida é para reduzir custos. Não foi só a comunicação que era ruim, a medida era ruim”, afirma Daniel Cara.

Não dá para não reconhecer o protagonismo dos jovens em São Paulo ao promoverem um movimento que se espalhou para outras cidades e foi notícia fora do país. “Tem uma importância enorme e teve repercussão mundial. Os estudantes demonstraram preocupação com a qualidade da educa- ção, capacidade de organização e apontaram para uma escola que poderia ser aberta para a comunidade, com envolvimento de todos”,

afirma Maria Clotilde Lemos Petta, secretá- ria da Contee.

O momento em que os jovens chamaram atenção do povo não poderia ser mais propício. Em 2016 vence o prazo para que estados e municípios adaptem-se à Lei 12.796 de 2013, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, que determinou ajustes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatória a educação básica dos 4 aos 17 anos de idade. Até então, a obrigação dos governos era oferecer educação básica dos 7 aos 14 anos de idade. “Como o estado de São Paulo planeja fechar escolas se ele ainda tem que garantir que o jovem esteja na escola? Somos radicalmente contra fechar escolas”, declara Priscila Cruz, diretora executiva do movimento Todos pela Educação. Priscila vê o panorama atual com muito otimismo, já que a atuação dos jovens pode dar novos rumos às discussões sobre educação. Aliás, ela diz que o estado vai ter de fazer a lição e casa e trabalhar com vários cenários, inclusive o de potencial aumento no número de ocupações. Porque se depender dos estudantes

acabou-se a progressão continuada de Geraldo Alckmin.

EXEMPLO DO PASSADO

Reorganização escolar na década de 1990 também foi motivo de debate

Esta não seria a primeira vez que a rede de São Paulo passaria por uma ampla reorganização. Na década de 1990, na gestão do governador Mário Covas, a secretária de Educação Rose Neubauer promoveu a separação de escolas entre os ciclos I e II. O objetivo era organizar a rede para facilitar a municipalização. “A LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] diz que a prioridade do estado é cuidar do ensino médio, porém, em 1995, a reestruturação teve como foco a municipalização dos anos iniciais, de 1ª a 4ª série, além da implementação da progressão continuada”, afirma Cláudia Petri, gerente de projetos no Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Como todas as grandes mudanças impostas de cima para baixo, a reorganização da década de 1990 também não foi bem assimilada pelas bases. Até hoje a ideia de que na chamada progressão continuada o aluno simplesmente passa de ano sem nenhuma avaliação continua como motivo de debate.