Um ex-integrante dos Carecas do ABC revela os segredos da facção urbana mais temida da década de 80 e afirma: "Ninguém jamais me derrubou"
Sempre que pensava em bater em alguém - isto é, sempre -, fazia mil conjeturas. Todas elas postulavam a invencibilidade. Era acordar, olhar-se no espelho, certificar-se de que os músculos permaneciam retesados. Sair, escolher um rosto que tivesse um mínimo quê de desagrado, para simplesmente cobrir-lhe de porrada. Até sangrar. A mínima infração a um código de moda errátil. Um olhar de desaviso. A dissipação de um sorriso em um rosto sério. Qualquer alteração climática, de humores, física, e sabe-se lá o que mais era motivo para que Ricardo Gomes e sua turma de oitenta e tantos homens fortes do vilarejo que é o bairro de Casa Branca, em Santo André (região do ABC paulista), cobrissem um cidadão de porrada. Afinal, eles eram os temidos Carecas do ABC.
Hoje, Ricardo conta 37 anos. Tem dois filhos. A barriga cresceu. Os músculos, cultivados durante anos por quatro horas diárias de boxe, quatro de malhação de ferro e outras tantas na promoção de arruaças de toda a sorte, permanecem. Mas Ricardo, mesmo entrado em anos, ainda não suporta caçoadas: "Eu brigava tanto para tentar encontrar quem me vencesse. Nunca encontrei. Aquilo me dava sensação de força, de vida".
Volta e meia, Ricardo trabalha como segurança de jornalistas. Não faz muito tempo, alguns fotógrafos quiseram retratar o centro de São Paulo na madrugada. Quando supunha-se que os parasitas obscuros e desvalidos dormiam a sono solto nas calçadas engorduradas de patena secular, algumas criaturas se levantaram desses túmulos. "Vieram roubar os fotógrafos. Eu peguei um pedaço de pau. Fiz um risco no chão. Disse: 'Quem passar daqui leva porrada'. Ficaram na boa", orgulha-se.
Ao passo que os Carecas do ABC não existem mais, códigos de comportamento deles ainda sobrevivem no eu mais profundo de Ricardo. Durante os anos 80, eles foram o grupo organizado mais temido de São Paulo. Andavam com tacos de beisebol, machadinhas, barras de ferro. Orgulhavam-se de serem antinazistas. Suportavam negros, nordestinos, gays, judeus. Aliás, orgulhavam-se de ter minorias, como negros e nordestinos, em suas fileiras. Nem um lampejo de incerteza, no entanto, lhes roçava as mentes quando se tratava de apontar os inimigos a serem exterminados em uma chuva obstinada de porradas: roqueiros, punks, rockabillies. E, sobretudo, skinheads neo-nazistas. Ao contrário do que se pensa, os Carecas do ABC sempre odiaram o nazismo. Seus resplendores em moda eram os mesmos dos skinheads neonazistas: cabeça raspada, músculos de concreto, suspensórios, calças jeans e coturnos. Mas sempre se bateram. Mortalmente. Hoje, é a primeira vez que um Careca do ABC resolve contar tudo. Não só contar, aliás: Ricardo fez questão de mostrar, ponto a ponto, onde e como os carecas se reuniam. Ele quer também comandar uma versão bem desobstruída dos fatos, que se resume em uma matemática descomunal. "Durante cinco anos, briguei 27 vezes por mês, ou a cada 365 dias, eu brigava 330". Exagero? Não. Ricardo sustenta uma conta que é uma coleção de zeros, zeros que parecem ter sons esféricos e orbiculares como bolotas de ferro na ponta de um instrumento medieval. Tais contas são lamentavelmente respeitáveis: Ricardo deve ter metido porrada em alguém, enquanto Careca, pelo menos 1.650 vezes. Não sabe quantas ele levou de volta. Usando um olhar obscuramente calmo, mostra um corpo com estrelas sulcadas na pele, seja por pauladas, seja por facadas. As mãos, cobertas pelo vitiligo de alabastro, ocultam-lhe algumas marcas.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 21 da Rolling Stone Brasil, junho/2008