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Os Sobreviventes

O Capital Inicial pode provocar reações e amor e ódio no público, mas uma coisa é inegável: entre mais altos do que baixos em um mercado hostil, o quarteto de Brasília jamais deixou de militar em favor do rock nacional

José Flávio Júnior Publicado em 20/02/2017, às 18h18 - Atualizado em 28/02/2017, às 15h04

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Os sobreviventes - Mauricio Nahas
Os sobreviventes - Mauricio Nahas

Dois mil e dezessete não é um ano qualquer para o Capital Inicial. Além de marcar o 35º aniversário do nascimento do grupo – já que os irmãos Fê (baterista) e Flávio Lemos (baixista) começaram a ensaiar com o guitarrista Loro Jones e a cantora Heloísa em 1982 –, o ano tem um gosto especial para Yves Passarell. Egresso da banda de heavy metal Viper, o atual titular das seis cordas do Capital substituiu Loro no final da turnê do Acústico MTV, há exatos 15 anos. E para Yves, esse número, mais do que uma festa de debutante, enseja um questionamento: teria a formação vigente virado a formação clássica do grupo?

A trajetória acidentada e peculiar do Capital permite uma resposta positiva. Falamos da única banda do rock brasileiro surgida nos anos 1980 que conseguiu mais êxito no século 21 do que nos seus primórdios. Que obteve esse sucesso sem se ancorar majoritariamente em canções do passado, muito pelo contrário... Que soube se utilizar dos primeiros erros para construir um presente sólido, mesmo enfrentando um cenário cada vez mais árido para o rock. Voltando à frieza dos números, Dinho Ouro Preto entrou para a banda em 1983, saiu em 1993, tentou outros projetos e retornou em 1998 para o que hoje tratamos como a segunda e mais bem-sucedida fase do Capital Inicial. Loro saiu de vez em 2002. O que significa que essa dupla esteve na linha de frente do conjunto por apenas 14 anos. Em 2017, a dobradinha Dinho e Yves passa a ter mais tempo de estrada que o combo Dinho e Loro.

De todos os integrantes, o único que já havia feito essa conta antes dos encontros para as entrevistas desta matéria era Dinho. O vocalista de 52 anos talvez seja o maior fã do que o Capital se tornou em seu segundo momento. E não apenas pelo aspecto comercial – desde a explosão do Acústico MTV (2000), a banda foi para o topo do mercado roqueiro e passou a cobrar os maiores cachês entre seus pares e a exibir a agenda mais cheia, realizando até 120 shows em anos bons e se aproximando de 90 em anos ruins, como em 2016. O vocalista tem muito nítido em sua mente o que era capaz de produzir nos primórdios e o quanto foi capaz de evoluir no processo. “Quando ouço nossos primeiros discos, percebo minhas limitações bastante claras. Noto que não sabia cantar, que não era o meu tom. Só que, como eu não sabia tocar, eu sequer sabia diagnosticar o que estava errado. Queria imitar o Renato [Russo] nas letras, e ficava horrível”, explica. “Quando a gente voltou, em 1998, eu já entendia o que conseguia escrever ou não. Fiquei mais seguro de mim. Essa é a grande diferença.”

Dois anos mais velho do que o vocalista, Fê Lemos é o grande defensor da primeira fase do Capital. Ele lembra que todos os integrantes participavam do processo de composição, tornando o trabalho mais plural. “As músicas vinham de vários lados. Não eram trabalhos tão coesos, tão focados. Mas eu gostava desse risco”, defende, mesmo reconhecendo o papel fundamental de Dinho ao tomar para si a condição de principal compositor a partir do retorno do grupo. “Se eu fosse o cantor, teria feito a mesma coisa que ele”, completa. Flávio Lemos vai mais longe: “No começo, muitas vezes a gente ficava lá martelando e não saía nada. Ainda bem que o Dinho agora compõe quase tudo. Do contrário, a gente não teria feito esses discos todos. No tempo em que faço uma música, o Dinho faz 12.”

Além de tomar as rédeas da criação, geralmente escrevendo com outros parceiros, sendo Alvin L. o mais constante, Dinho impôs outro padrão ao Capital 2.0: alta produtividade. “Percebi essa volta como uma oportunidade que nos estava sendo dada. E aí a gente fez discos compulsivamente, um atrás do outro. E não quero parar. É a única coisa que encontro para explicar por que o Capital está de pé, por que o Capital toca para tanta gente, por que consegue estar com o pescoço acima da água num momento tão difícil para o rock brasileiro, em que a gente olha para as outras bandas e vê todo mundo enfrentando obstáculos reais”, analisa. Entre 1998 e 2015, o Capital lançou seis álbuns e um EP de inéditas, dois acústicos, um ao vivo e um projeto especial com músicas do Aborto Elétrico, a seminal banda que Fê e depois Flávio dividiram com Renato Russo. O plano para 2017 é seguir fazendo os shows do último lançamento, o Acústico NYC (2015), e talvez soltar um single do próximo disco de inéditas.

“Às vezes, a impressão que eu tenho é que todo mundo fica olhando em volta para a crise”, segue Dinho. “Porque a tempestade perfeita aconteceu: a crise econômica, política e uma enxurrada de sertanejo e funk. Que, na verdade, levou a todos. Levou hip-hop, reggae, MPB, até o axé. Não foi só o rock. No entanto, acho que não cabe ficar nos queixando. Isso pode soar muito perto de inveja. Não me importa esse ruído. Eu tenho respeito pelos artistas desses gêneros. O rock brasileiro deve se concentrar no rock brasileiro. E eu coloquei como meta no Capital produzir, produzir como se nada houvesse, sempre olhando para a frente. Mal ou bem, funciona. Quem gosta de rock brasileiro nos vê como um sopro de ar fresco no meio dessa tempestade. Tipo, ainda bem que há alguém produzindo.”

A mensagem está sendo acolhida. Thadeu Meneghini, guitarrista e vocalista do Vespas Mandarinas, grupo paulistano da safra mais recente do rock que está entre as favoritos de Dinho, define assim o líder do Capital: “Ele é um cara muito especial e, neste momento particular do rock no Brasil, tem tido um papel fundamental. Dinho é como se fosse o que sobrou daquele rock que ainda se segura no mainstream. Só está precisando chutar mais o pau da barraca”, provoca, com a intimidade de quem já abriu shows do Capital e dividiu o microfone com o próprio Dinho. Se bem que a moral do grupo não está restrita ao universo roqueiro. Uma rápida busca no YouTube traz versões de “Natasha” sendo cantada por Luan Santana e de “À Sua Maneira” (originalmente, uma música da banda argentina Soda Stereo) nas vozes de duplas como Rionegro & Solimões, Jorge & Mateus e Matheus & Kauan.

Dinho tem uma boa história que envolve o mundo sertanejo. No Prêmio Multishow de 2014, uma divulgadora de gravadora entrou no camarim reservado a ele e a outros roqueiros que homenageariam os Mamonas Assassinas perguntando se Lucas Lucco e Gusttavo Lima poderiam conhecê-lo. “Eles entraram tão emocionados que, num primeiro momento, até estranhei. Mas aí o menos tatuado deles [Lima] disse que o primeiro show que viu na vida, lá na cidade dele, no interior de Minas Gerais, foi do Acústico do Capital. Ali, ele tinha começado a se apaixonar por música. Mostrou uma gratidão que até me surpreendeu”, recorda. O vocalista revela admiração por essa geração que consegue transitar por estilos diferentes, algo que não era permitido para as tribos de sua época. “Quando comecei a me interessar por rock, eu ouvia Led Zeppelin, AC/DC, Black Sabbath, e era muito sectário. Fui mudando de estilo, mas segui sectário. Comecei a ouvir punk rock aos 16 anos e também fiquei me relacionando apenas com pessoas que só ouviam aquilo. Julgava as pessoas pelo som que escutavam. Muito mais tarde, talvez no fim dos meus 20 anos, foi que percebi que isso não determinava o caráter da pessoa, que o roqueiro podia ser um escroto e o pagodeiro podia ser um grande sujeito.”

Na estrada, o Capital constantemente cruza com artistas do universo mais popular – e Dinho diz que quase sempre faz questão de se apresentar. “Quando tocamos em Maceió com o Wesley Safadão, fui lá falar com ele. Um cara com um nome desses? Eu precisava conhecer!”, diverte-se. Esse encontro com Safadão foi bastante marcante para a banda, pois exibiu uma das impotências do rock frente a alguns artistas populares que hoje dominam o show business nacional. “O cara já tinha tocado em Fortaleza na mesma noite. Pegou um jatinho sozinho e encontrou uma outra banda esperando por ele ensaiadinha em Maceió. Um grupo de rock não tem como fazer o mesmo”, reconhece Fê. “Cabe a nós manter o público já conquistado, algo que o Capital tem feito”, conclui. “O rock sempre foi cada um por si”, pontua Yves. “Já os sertanejos, por exemplo, sempre foram muito unidos, e hoje eles têm usado essa união muito bem.” Fê corrobora o pensamento do guitarrista com uma memória: “Em Brasília, nós, que tínhamos bandas, saíamos todos juntos. Mas a competição era enorme”.

O que leva a uma pergunta: o que Renato Russo de fato pensava sobre o Capital Inicial? Todo mundo sabe da adoração que Dinho nutre pelo legionário. E também que, por causa do Aborto Elétrico, a relação entre Fê e Renato teve início ainda no final da década de 1970 e é naturalmente recheada de intimidades – a banda começou a acabar quando Fê atirou uma baqueta nas costas de Renato, que anos mais tarde foi padrinho de casamento do baterista e por aí vai. Mas e sobre a apreciação estética do Capital? Fê conta que recebeu uma ligação de Renato para elogiar o primeiro LP da banda. No entanto, o contato com o amigo foi diminuindo com o passar dos anos. Uma passagem que nenhum integrante esquece é a entrevista em que Renato questionava se seria positivo para o Legião Urbana tocar no hoje extinto festival Hollywood Rock, afinal “para isso já existe o Capital Inicial”. Flávio assume: “Renato desdenhava um pouco da gente”. E Fê elabora: “Talvez ele visse que o ponto forte da Legião era o que o Capital não tinha, que era um líder. Ele devia ver a gente como uns garotos meio avoados, uma banda improvável de dar certo. E que talvez lidasse mais com o varejo, enquanto a Legião estava num patamar superior, como se fosse um King Crimson”.

Já extrair algum comentário desabonador de Dinho sobre Renato é mais difícil. Ao se lembrar dos primeiros contatos com o ídolo, sua feição até muda, fica mais radiante. “A liderança e o talento do Renato naquela turma de Brasília sempre foram óbvios para mim. Quando saíamos, se ele não estava, tinha menos graça, pois os papos mais instigantes eram com ele. Eu frequentava a casa do Renato como se fosse uma ida a Meca. Eram conversas intermináveis sobre literatura, música. A primeira vez que ele se dirigiu a mim foi para perguntar o que eu lia. E ele me presenteava com livros no meu aniversário, livros que guardo até hoje”, recorda. Sobre a polêmica declaração “para isso, já existe o Capital Inicial”, Dinho praticamente dá razão ao seu herói. “Não sei direito o que dizer. Comigo, ele sempre foi um doce. Talvez houvesse uma rivalidade inerente. Quando esse comentário foi feito, Capital e Legião estavam em prateleiras diferentes. Eu sentia que tinha caído de paraquedas nesse negócio. Que eu era um adolescente, que tinha entrado para o Capital para me divertir e, de repente, aquilo tinha virado a minha profissão. Mas eu não estava preparado. Nos anos 1990, durante o hiato da banda, aprendi a compor, a tocar, virei unha e carne com o Alvin L. E, quando o Capital se reuniu, em 1998, percebi que não havia uma hierarquia, apenas uma diferença. O Capital é diferente da Legião. É como comparar maçãs e laranjas.”

A morte de Renato Russo, em 1996, abalou Dinho imensamente. Três anos antes, ele próprio achou que poderia ter o mesmo destino da figura em quem se espelhava. Já fora do Capital Inicial, o cantor passou a levar uma vida ainda mais desregrada, cometendo todos os tipos de abusos que são clichês nesse meio. A luz vermelha acendeu com um telefonema. “Era um sujeito dizendo que sabia que eu tinha ficado com uma garota que havia dividido o apartamento com ele. E essa menina estava com o vírus da aids, já em estado terminal. Ele estava ligando para todo mundo que ele sabia que tinha ficado com ela nos últimos dois anos. Entre essas pessoas, estava eu”, relata Dinho, ironicamente, um hipocondríaco assumido. “Isso foi numa quarta-feira. No dia seguinte, fui num laboratório fazer o exame de sangue. Só que, naquela época, o resultado demorava para sair. Só na segunda-feira eu saberia. Nesses dias todos fiquei pensando o que iria dizer para os meus pais. Tinha certeza de que estava infectado. Perdi um tio com aids, perdi vários amigos. Achei que tinha chegado a minha vez. Dei como fato consumado. Fiquei pensando o que eu ia fazer com o resto da minha vida. Pedi para uma amiga ir comigo no dia e ela abriu o exame para mim. Quando vimos o resultado negativo, eu fiquei tão feliz que cismei de agradecer a algum ente superior. Logo eu, que não sou religioso!” Como muitos causos fantásticos de Dinho, esse também teve um twist cômico no final. “A única coisa que tinha ali perto era uma sinagoga. Só que não me deixaram entrar. Acho que é porque eu estava usando dreadlocks na época, ainda mais descoloridos. Foram um pouco preconceituosos comigo [risos].”

O episódio aconteceu quando o vocalista tinha 29 anos. Passado o susto, sua maior paranoia foi de que ele poderia ter morrido sem ter tido um filho. O destino quis que, pouco tempo depois, ele conhecesse a arquiteta Maria Cattaneo em um evento da MTV. Já são mais de 20 anos de matrimônio, duas filhas e um filho. Maria ajuda a administrar a parte contábil da banda desde o começo desta década, quando o Capital deixou de ter um empresário e as funções burocráticas passaram a ser geridas a partir da casa da família Ouro Preto, com Dinho recebendo uma comissão por exercer esse papel de gestor.

“Já me disseram que é o mesmo modelo do Bon Jovi”, ele diz. Em cima do palco, o cantor também tem sua voz ativa com relação às drogas, ainda que seja um bedel pouco respeitado pelos companheiros. “Parei de cheirar pó há dez anos, mas nunca impus nada para ninguém. O que eu não quero é que toque doidão. Todo mundo toca pior chapado. E quem toca não percebe. Eu mesmo não percebia. Sinto muita responsabilidade para cima de mim. Eu me sinto na posição do cara que está pilotando o avião. Preciso estar 100% consciente. E percebo quando eles não estão na plena capacidade. Mas ninguém obedece o que falo. Fica um balde de cerveja no palco. Peço a eles que comecem a beber o mais tarde possível e se hidratem para não ficarem alucinados durante o show. Eu tomo meu vinho quando acaba. Durante, só água.”

Chegou um momento em que Dinho passou a achar impróprio o uso corriqueiro que fazia das drogas. Demorou para ter essa consciência. Só veio aos 42 anos. “Entrei numa ‘noia’ de saúde. Corro todos os dias. Comecei a lutar muay thai. E este ano começo no jiu-jítsu. O Capital já foi a síntese do excesso. Coisa de filme”, revela. “Nos anos 1980 era pior. Era durante gravação, usávamos piano para cheirar. No retorno, voltamos meio tortos também. Não sei como a gente chegou até aqui. Éramos muito da pá virada. Mas acho que todo mundo da nossa geração era assim. Já vi o Nando [Reis] falando sobre isso, o [Paulo] Miklos. O Renato [Russo] foi atormentado pelos excessos. Era divertido, era ok.” Fê, que curte velejar na represa de Guarapiranga, na zona sul de São Paulo, vai por uma tangente. “Nos anos 1980 era mandatório ficar chapado o tempo inteiro. Isso foi muito ruim para a nossa turma. Hoje, acho que você pode usar drogas, mas você não pode falar. Você não pode repartir suas experiências, porque vão dizer que está dando dinheiro para o PCC, essas coisas. Eu só digo que o adulto que usa recreativamente não está fazendo mal a ninguém. E que não deveria ser algo proibido.”

As divergências dentro do Capital Inicial podem ser maiores se o assunto for política. Engana-se quem acredita que os outros integrantes ficam de boa quando Dinho desanda a fazer discursos políticos no meio das apresentações. “Nenhum deles concorda comigo. Só que eu tenho o microfone [risos]”, ele zomba.

“Essa é uma angústia do Dinho, algo que ele exorciza a cada show”, pontua Fê. “Sou da visão de fazer a canção e executá-la, seja ‘Saquear Brasília’, ‘Autoridades’, ‘Psicopata’. Verbalizar além da música é algo do Dinho e que ele não consegue não fazer. Se eu estivesse na plateia e um cara começasse a falar, gritaria ‘toca rock and roll!’”, completa.

“Só que ele só vai nas unanimidades. Vê se ele fala do Lula? Vê se ele critica a Dilma? Falar do Sarney é fácil”, alfineta Flávio, o principal opositor de Dinho nos debates políticos dentro da banda. O baixista sai do sério ao ser classificado como “de direita” pelos colegas e ironiza: “[Tem quem diga que] eu sou direita, fascista, escravagista, preconceituoso... Tudo porque eu criticava Lula, Dilma, a roubalheira toda e a incompetência deles. O Dinho era totalmente de esquerda. Mesmo depois do mensalão, ele ficava ‘não, veja bem...’ Eu falava ‘veja bem, não, você está enganado, a gente vai pagar a conta’. Os fatos provaram que eu estava certo. Nossa discordância é que o Dinho demorou mais do que eu para abandonar o PT”.

Filho de um cientista político (vitimado por um câncer no estômago dias depois de esta entrevista ter sido feita), cheio de historiadores na família, Dinho Ouro Preto é um social-democrata há muito alinhado com os partidos de centro-esquerda do país. Hoje, vota preferencialmente no PPS, no PSB e deve repetir o voto em Marina Silva, da Rede, em 2018 (Fê também prefere Marina; Flávio e Yves simpatizam com a candidatura de Geraldo Alckmin, do PSDB). “Acredito que o Estado tem um papel a desempenhar para o resgate de milhares de brasileiros. Isso não vai ser feito apenas pela economia de mercado. Você precisa interferir na economia, porém sem sufocá-la, em prol dos menos afortunados”, analisa Dinho. “Meu modelo são os países europeus que alternam governos de esquerda e direita, mas que não colocam em dúvida fundamentos econômicos. A lei de responsabilidade fiscal ninguém maquia por lá. A esquerda brasileira precisa aprender isso.” E ele pode ter demorado mais do que Flávio para pular do barco petista, mas não alivia para o partido. “A história dos postes do Lula, por exemplo. Isso beira o culto à personalidade, é muito stalinista. Como ele indica alguém para governar o Brasil ou a cidade de São Paulo sem que eles tivessem experiência? Como ele sabia que podia dar certo? Como você faz isso com uma nação? É de uma irresponsabilidade gigantesca. E deu no que deu: um desastre.”

Difícil imaginar que, em 2000, o “companheiro Dinho”, engajado na campanha de Marta Suplicy para a prefeitura de São Paulo, tenha vivido um dia de palestrante petista. É mais uma daquelas suas histórias improváveis com desfecho cômico. “O Capital tocou num comício da Marta em frente ao Pacaembu e ela me chamou para a reunião do diretório num hotel no centro. Aí eu chego lá, com o teatro todo tomado, e alguém me pega e me senta no palco, onde estavam todos os oradores, do lado de uma tribuna, perto do [ex-deputado] José Genoíno, da [filósofa] Marilena Chauí. Pensei ‘o que eu estou fazendo aqui?’ De repente, alguém anuncia ‘agora o Dinho vai mandar uma ideia para vocês’. E eu ‘caraca, o que eu vou dizer para essa gente?!’ Todos os intelectuais da USP ali, que situação!!! [Risos] Lembro que eu citei Delfim Netto, aquela coisa que ele dizia de que o bolo precisava crescer para que houvesse algo a ser repartido. Eu disse que isso estava errado, que o Brasil só ia crescer se distribuísse renda primeiro. Todos pareceram concordar. Foi a única coisa que me veio à cabeça!”

Dinho assina os dois principais jornais de São Paulo, a versão digital do The New York Times e sempre assiste à CNN e à BBC pelo celular. Vez ou outra, vê suas manifestações políticas chegarem aos periódicos, como quando provocou a ira de José Sarney após um discurso no Rock in Rio de 2011 ou quando recebeu o juiz Sérgio Moro em sua plateia, no ano passado. Da segunda história, Dinho revela dois fatos curiosos. O primeiro foi que, ao avistar Moro entrando na casa de shows de Curitiba, ele ficou sem saber como se dirigir ao juiz. “Excelentíssimo? Senhor? Mas falei ‘você veio num show de rock, então vou te chamar de Sérgio mesmo’.” E o segundo rolou no camarim, após a apresentação, que rendeu um vídeo que viralizou. Dinho levou um puxãozinho de orelha do motor da Operação Lava Jato. Moro pediu a ele que tomasse cuidado com seu ceticismo, com a generalização de que toda a classe política é corrupta. O cantor deu razão ao fã ilustre.

Se alguém estiver precisando de palpite sobre o futuro imediato do país, o de Dinho é que não teremos calmaria. “Acho que o Temer vai cair. E não vejo isso com maus olhos. Votei na Marina porque não queria a Dilma e não queria o Temer também. Acho essa turma do PMDB o fim da picada.” A questão é que turbulência é algo que não assusta o veterano do Capital Inicial. “A gente aprendeu a ser uma banda de verdade em pleno voo. Isso foi mais um dos feitos que nos deram a casca-grossa indispensável para os dias de hoje, para poder encarar qualquer situação”, garante o vocalista. “A dificuldade enobrece o homem, dá a sua real dimensão, você percebe o quanto tudo é efêmero. Em 1997, a gente parou de tocar. Eu fiz publicidade, fiz tradução para filmes, tinha desencanado da música. Embora isso tenha acontecido há 20 anos, a sensação que eu tenho quando um fã vem falar comigo é de uma gratidão eterna. Eu paro, falo, desço do carro, faço as fotos, não me importo com o quanto de tempo aquilo vai levar. Sei o quanto isso evapora facilmente.”

O último momento em que a banda viu quase tudo ruir foi em 2009, mais precisamente no dia 31 de outubro. Dinho caiu de uma altura de 3 metros ao se desequilibrar na beirada do palco durante um show em Patos de Minas, no interior de Minas Gerais – sofreu traumatismo craniano e quebrou seis vértebras e três costelas. Durante a recuperação, uma infecção hospitalar provocou novas complicações, quase levando o cantor a óbito. O mês na UTI mais as sessões de fisioterapia e fonoaudiologia redundaram em seis meses de shows cancelados.

Flávio, que tinha acabado de dar entrada em uma Land Rover, suspendeu a compra do carro. Dinho, que se diz cauteloso com as finanças, conta que o acidente comeu parte de suas economias. O episódio foi imediatamente sucedido pelo rompimento com o empresário Haroldo Tzirulnik, que trabalhava com a banda desde 1998 e hoje guia a ascendente carreira do rapper Projota. Tzirulnik move alguns processos contra a banda pelo desligamento e critica escolhas feitas pelos integrantes desde então. “Acontece que o que nós construímos até 2009 é muito poderoso. Equivale a um prédio de 26 andares, pois foram 26 hits em sequência. Eles podem fazer cocô no palco durante o Rock in Rio e isso ser exibido no Jornal Nacional que nada vai mudar. O Capital não tem concorrência”, diz o empresário.

Fê prefere explicar a situação de destaque que hoje cabe ao Capital de maneira mais holística. “É um reflexo da mitologia do rock de Brasília, dos órfãos do Renato. A gente tem uma história que tem mistério, tem charme. Esse imaginário ajuda a despertar o interesse por um lado e, por outro, temos os hits da segunda fase. Fora o fato de que a gente permaneceu enquanto vários parceiros nossos, por diversos motivos – separação, morte – não conseguiram dar prosseguimento à carreira." Dinho arremata jogando os holofotes nos arranhões. “Não somos uma banda imaculada. Esses esbarrões, esses altos e baixos, esses excessos, essas cicatrizes, se você quiser colocar de um jeito poético, dão caráter ao Capital, dão personalidade, consistência, honestidade, legitimidade. Você pode falar o que quiser, que gosta do nosso som, que não gosta, que não gosta do que eu falo no palco, que me acha de esquerda, de direita... Foda-se! Mas o Capital é uma banda de rock brasileira que passou por tudo, que sobreviveu a todas as intempéries. Tudo que podiam jogar na gente foi jogado, tudo que podia nos acontecer aconteceu. Quando uma banda resiste a tantos furacões e terremotos e continua de pé, há algo de especial ali. Uma banda que demonstra uma resiliência como essa? No final, vão sobrar as baratas, o Keith Richards e o Capital Inicial [risos].”

A VIDA É UM VAI E VEM

Trinta e cinco anos de ascensão, queda, nova ascensão, nova queda, nova ascensão...

1982 O Capital Inicial dá os primeiros passos, com a cantora Heloísa no posto que seria de Dinho a partir do ano seguinte;

1985 A banda lança o primeiro compacto, com “Descendo o Rio Nilo” e “Leve Desespero”, mas se desentende com a gravadora CBS, que enrolava para autorizar o registro do álbum de estreia;

1986 Já na Polygram, o grupo consegue gravar o primeiro LP e se dá bem com singles como “Fátima” e “Música Urbana”, que entra na trilha sonora da novela Roda de Fogo, da Rede Globo. Capital Inicial ultrapassa a marca de 200 mil cópias vendidas;

1988 Com o tecladista Bozo Barretti efetivado na formação desde o segundo álbum (Independência, 1987) o Capital grava Você Não Precisa Entender, disco que Dinho classifica como “um engano gigantesco”. Mas ele traz “Fogo”, balada que se mantém como uma das prediletas dos fãs;

1991 Distante da sonoridade agressiva dos primórdios, o grupo é escalado para uma das datas mais pop do segundo Rock in Rio, realizado no Maracanã. A-ha, Information Society e Debbie Gibson tocam na mesma noite;

1993 Após mais dois álbuns que não repetiram o êxito do primeiro, Dinho decide abandonar o grupo. Fê, Flávio e Loro recrutam o santista Murilo Lima;

1995 A banda lança Rua 47 e não consegue fazer barulho algum. Dinho, após tentar retornar aos palcos com a banda Vertigo, aposta em um disco solo de texturas mais eletrônicas e também naufraga;

1997 Sem obter sucesso com o primeiro disco ao vivo, lançado ainda em 1996, o Capital enfrenta mais um baque: Loro sai da banda. Os poucos shows no segundo semestre são feitos com Yves Passarell na guitarra;

1998 Tem início a segunda vida do Capital, com Dinho e Loro voltando à formação para fazer shows celebrando os 15 anos de carreira. Surge a chance de um novo álbum de inéditas, que sai no final do ano: Atrás dos Olhos, dos hits “O Mundo” e “Eu Vou Estar”;

2000 O grupo atinge o auge até então, batendo a casa de 1 milhão de cópias vendidas com um despretensioso Acústico MTV, tendo Kiko Zambianchi como convidado especial;

2001 No terceiro Rock in Rio, o Capital sai aclamado de uma noite em que o headliner Red Hot Chili Peppers não estava tão inspirado. As 250 mil pessoas presentes na Cidade do Rock testemunham um fenômeno;

2002 Loro sai da banda de novo (desta vez, para valer) e Yves assume o posto (desta vez, para valer). A banda solta Rosas e Vinho Tinto e emplaca mais cinco hits;

2004 2004 Dinho aposta na ideia de lançar álbuns de inéditas e segue virando hits, caso de “Não Olhe pra Trás”, um dos destaques de Gigante!;

2008 A banda se apresenta para cerca de 1 milhão de pessoas na gravação do CD e DVD Multishow ao Vivo: Capital Inicial em Brasília;

2009 Em 31 de outubro, Dinho cai do palco durante um show em Patos de Minas (MG). Sofre traumatismo craniano e quebra seis vértebras e três costelas. Durante a recuperação, uma infecção hospitalar provoca novas complicações. São seis meses sem cantar;

2015 A banda grava um segundo álbum desplugado (Acústico NYC), com repertório focado na produção pós-entrada de Yves;

2017 Yves completa 15 anos no Capital Inicial. Seu tempo com Dinho na formação já supera o tempo de Loro Jones ao lado do cantor.

À SUA MANEIRA

Há uma conexão entre Capital Inicial e Aerosmith - e Dinho quase teve a chance de falar isso pra Steven Tyler

Na história do rock são raros os casos de bandas que conseguem uma segunda chance e, nessa segunda chance, multiplicarem o sucesso obtido na primeira fase da carreira. Por isso mesmo, Dinho Ouro Preto cultiva uma obsessão por um certo quinteto de Boston que, anos antes do Capital, traçou jornada semelhante à dos brasilienses: começo com algum brilho, fundo do poço, retorno triunfal quando ninguém esperava e êxito turbinado a partir da volta. “Ao longo do tempo, especialmente na nossa segunda fase, eu sempre olhava para o Aerosmith”, relata o cantor, para na sequência revelar um episódio inusitado ocorrido na última passagem dos norte-americanos por São Paulo, no ano passado. “Minha filha quase atropelou o Steven Tyler na frente de casa!” Cabe explicar que Dinho mora próximo ao hotel Unique, em São Paulo, local que abrigou os músicos do Aerosmith naquela ocasião. “Ela chegou de Uber de uma festinha de madrugada e eu estava na sala. Minha filha de 17 anos reconheceu o Steven e falou para ele ‘meu pai te adora!’ Ela entrou em casa e me disse ‘pai, o Steven Tyler está aqui na rua!’ Eu saí doido, descalço, sem camisa, e perguntei para o guardinha da rua para onde o cara tinha ido. Ele tinha virado a esquina. Continuei correndo, com a minha filha atrás, e avistei o Steven. Ele, uma mulher e três seguranças. Aí, de repente, quando eu estava a 20 metros, parei e pensei: ‘O que eu estou fazendo? O que eu vou dizer para ele?’ [risos] Ia chegar um cara todo esbaforido, de bermuda, falando ‘eu te adoro, te ouço desde os 12 anos, sou um roqueiro brasileiro, minha banda tem uma história parecida com a da sua banda...’ Ele estava passeando. Parei minha filha e falei ‘tá errado’. Ele estava com três seguranças justamente porque havia a chance de algum maluco fazer o que eu estava prestes a fazer [risos].”