Com a estreia do filme Coco Antes de Chanel, o interesse pela estilista mais famosa de todos os tempos é renovado
"Não dê pipoca aos jornalistas" - nem aos estilistas. a máxima, geralmente contada a algum incauto, enquanto visitava pela primeira vez a gaiola das loucas (o calabouço, a fábrica de fazer notícias e doidos) - como este ambiente e seus habitantes costumavam ser conhecidos antes da assepsia pós-advento dos computadores - cai como uma luva (preta, de couro, com os dedos cortados) ao bando de estrangeiros e desgrenhados que escrutinam cada fresta e paetê na Maison Chanel. Sim, estamos na primeira loja e workshop aberta por Coco Chanel, em 1910, na Rue Cambon, coração parisiense. Boquiabertos, os macaquinhos midiáticos internacionais são conduzidos pelo estabelecimento por uma espécie de guia (falando aquele inglês com aquele carregado sotaque francês).
A moça, que não revela seu nome, faz revelações sobre as esquisitices, manias e invenções de madame Chanel, enquanto portas de salas privativas se abrem, aonde só ela e um seleto staff (incluindo o popstaff Karl Largerfeld, atual estilista-chefe da grife) tiveram ou têm acesso. Falando no diabo que certamente não veste Prada, em um dos entra e sai, passa e fica, não é que damos de cara com o próprio? E ele não está contente - será que algum dia esteve? Afinal, o que seria pior pesadelo do que trombar com jornalistas (mal vestidos, diga-se, e em número maior que cinco) dentro de sua casa, enquanto, depois de noites em claro e inúmeros ataques histéricos, você consegue provar algumas peças da nova coleção - mantida a sete chaves - que desfilará na Semana de Moda de Paris? Assim como Ozzy Osbourne diz ter se sentido quando descobriu que a MTV havia posto câmeras em todos os cômodos de sua casa para filmar o reality show The Osbournes, em sua recém-lançada biografia, I Am Ozzy, o velho Karl "queria dar um tiro no saco!"
"Olá", é tudo que conseguimos dizer, congelados pelo constrangimento e assombrados pela constatação de que o homem se veste daquele jeito bizarro mesmo até para trabalhar. "Como ele consegue?", questiona mais tarde, abestalhado, o correspondente do Times. Ninguém sabe, mas todo mundo viu. Calça social, as botas pretas estilo caubói, o laçarote preto no pescoço, os óculos escuros, as correntes sobre o proeminente colarinho branco e as indefectíveis luvas pretas. De prático, somente o rabo-de-cavalo prendendo as madeixas brancas. Agora, é minha vez de me questionar: o que Chanel - que, em 1932 declarou à revista Harper's Bazaar, que "A simplicidade é a chave da verdadeira elegância" e cujo lema era "sempre remova, nunca adicione" - acharia de ter o espalhafatoso Karl Largerfeld no comando de seu império? Não ouso concretizar a pergunta. O silêncio, depois do seco "olá", rebatido por Monseur Chanel, é condição sine qua non para a continuidade da visita sem nenhuma baixa. A moça-guia fica muda. Por três minutos. É como se entrássemos em um elevador com o deus supremo dos fashionistas e ordenássemos, sem rodeios: "Leve-nos a seu líder!"
Afinal, é Chanel o motivo do "tour de France", por conta do filme Coco Antes de Chanel, lançado recentemente no Brasil. Ela, aliás, deve estar se revirando no túmulo (onde descansa desde 1971). A guia solta o verbo novamente e entramos na intimidade da mítica designer - coisa que ela odiava -, ao adentrar em seus aposentos pessoais. Ficamos sabendo que Coco mentia - "Invento sobre minha vida porque não gosto de algumas partes", admitiu, em uma ocasião. Mentia principalmente sobre suas origens (órfã e pobre e não "fi lha de um abastado industrial que vivia na América"), enquanto seus clientes se lambuzavam com Chanel No. 5. Cinco era seu número de sorte - supostamente também trazida por sapos - há uma coleção na sala de estar do boudoir que mantinha em cima da loja, onde recebia amigos. Também colecionava leões, como boa leonina, por razões óbvias. Há livros, objetos de arte, um lustre de cristal com Cs e 5s entrelaçados. Há presentes dados por amantes como Igor Stravinsky (o affair entre ambos também rendeu um filme, exibido em Cannes, este ano) e o Duke de Westminster. A sensação é que verdadeiros tesouros reluzem diante de nossos olhos, em uma expedição arqueológica pela história da moda. Por um momento, vejo a enfant terrible do preto e branco puxando, no último segundo, um de seus chapéus, quase masculinos, enquanto a passagem secreta se fecha. Como Indiana Jones, Chanel gostava de assumir riscos.
Isso explica sua suposta colaboração com os nazistas, na Paris ocupada pelo exército alemão na Segunda Guerra, em troca de favorecimentos? Ou mesmo Karl, o Germânico, um ás das finanças, do marketing e por mais de 20 anos feitor da cadeia industrial do último bastião da haute couture? "É uma pretensão acharmos que conhecemos Chanel", adverte Audrey Tautou, que interpreta a estilista no cinema com grande competência. A atriz francesa, uma garota do interior como a então Gabrielle Chanel, sabe o que está dizendo. Afinal, mergulhou fundo na vida e na iconografia dessa que foi a única representante - e mulher - do mundo da moda a constar na lista das 100 pessoas mais influentes do século 20 feita pela revista Time. Impetuosa e rebelada contra os sexos forte e frágil, o establishment, além dos babados, espartilhos e, principalmente, seu próprio destino, ela foi - muito antes da arquiteta fashion do punk Vivienne Westwood - pioneira na contestação por meio da roupa, fazendo dela o veículo de uma revolução - sexual, comportamental, filosófica, estética. Puro rock'n'roll - em plenos anos 20! Foi exatamente o lado revolucionário e ousado da trajetória e da obra de Coco - apelido que ganhou em uma de suas performances medíocres da música "Coco Qui a Vu Coco", quando tentava, obsessivamente, ser cantora de cabaré e se estabelecer no show biz - que atraiu Tautou. "Não tinha ideia do quanto ela foi moderna para a época", conta, em entrevista em uma suíte do opulento Hôtel Astor, em Saint-Honoré, Paris, revirando os expressivos olhos negros como se voltasse no tempo das flappers (uma nova geração de mulheres confiantes e determinadas a desafiar o conceito de conduta feminina aceitável na época). As flappers tinham atitude também no visual: cabelos e saias curtas, muita maquiagem, sempre um cigarro à mão e um estilo de vida que incluía praticar esportes e ir a clubes de jazz, dirigindo seus próprios automóveis, beber coquetéis e dançar o Charleston. Coco criava para elas - afinal, era uma delas - e usar uma de suas peças, como a célebre jaqueta, era um atestado de rebeldia com firma (no caso marca) reconhecida. Nesse sentido - de associar uma atitude mais dinâmica ao consumo de peças mais confortáveis -, Chanel foi pioneira, assim como a primeira designer a dar seu nome a um perfume. "As roupas foram o veículo que encontrou para expressar seu desejo por independência e liberdade", advoga Tautou. A estilista foi mais longe, em um tempo em que mulheres mais pareciam bibelôs e se vestiam para agradar aos homens, com uma abordagem sociológica e utilitarista: "Devolvi a elas seus corpos".
Na mão inversa da história, Audrey Tautou emprestou seu corpinho ao agigantado ego de Coco Chanel. "Ela era extremamente arrogante", reconhece. Logo depois, afirma ter a certeza de ser predestinada ao papel. Por quê? "Sou uma criança selvagem como ela", ilumina-se, quase que em estado de graça. Quanta transformação nessa cara de menina de 14 anos - a metamorfose é equivalente à trajetória da garota órfã pobre, criada por freiras (daí sua obsessão pelo preto e branco, que os hábitos inspiraram), que vira um ícone da moda. E se não é, em si, a conquista de seu próprio destino, nem necessariamente o glamour do mesmo, mas os meios para atingir essa realização o que movia Chanel, também parece ser o que move Tautou. O fato de o filme ser, em vez de um desfile da grife, praticamente um retrato sombrio da luta de classes que Chanel travou cavando acessos, mesmo escusos, na burguesia, atraiu Tautou. "Coco Antes de Chanel não é um filme fashion e nunca teve a intenção de ser", avisa. Predestinada ou não para o papel, teve a atriz cautela ao fazer acontecer, escolhendo bem em que projeto entraria. "Imediatamente me identifiquei com o filme de Anne Fontaine porque mostra como Chanel se recusou a aceitar sua condição desfavorecida e traçar seu destino como uma tragédia - ao contrário, virou o jogo com absoluta determinação e ambição."
Tautou não se acha tão ambiciosa quanto Chanel, apesar de, aos 33, já ter estrelado 14 longas, e de, depois do sucesso mundial de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, ter sido convidada a ingressar na Academia de Artes e Ciências de Hollywood. "O óbvio seria eu mudar para Los Angeles, mas gosto da minha vida aqui na França", diz. "Detesto o apetite da mídia pela vida pessoal das 'celebridades'. Não é para isso que faço meu trabalho." Em seu país, ela desfruta o status de uma das atrizes mais adoradas desde Brigitte Bardot - e sem ser nada curvilínea -, ainda mais após viver Chanel com uma honestidade capaz de dar três voltas em sua cinturinha de pilão. Nada mau para uma desencanada estudante classe média que não tinha noção de onde chegaria quando começou o curso de teatro na prestigiosa escola Cours Florent, paralelamente ao curso de letras, na Sorbonne. Mas, em 1999, veio o primeiro sinal de que Audrey Tautou poderia, mais dia, menos dia, estar no topo dos créditos de qualquer produção. Ela ganhou o prêmio de melhor atriz revelação, o César francês, por Instituto de Beleza Vênus. Daí para O Código Da Vinci, para o qual foi catapultada por Amélie Poulain.
Coco também não estava interessada em se tornar uma socialite, como Tautou não está em tornar-se uma celebridade que alimenta revistas de fofoca e tabloides. Ambas mantêm sua vida privada em algum lugar inacessível. Há vários pontos turvos nas biografias de Chanel, como seu envolvimento com os nazistas e, principalmente, seus anos antes da fama. Reza a lenda que, ao nascer, em 19 de agosto de 1883, o escrivão grafou errado o sobrenome da menina - Chasnel - tornando ainda mais difícil para seus biógrafos investigarem suas origens. Mas o fato é que Chanel nunca foi uma caça-sobrenome, Depois que conseguia o que queria dos homens importantes com os quais se envolvia, esnobava-os, com pompa e circunstância. O affair com o Duke de Westminster? Questionada por que não se casava com ele, respondeu: "Existem várias duquesas, mas apenas uma Chanel". Ela nunca se casou, e a morte trágica do industrial inglês Arthur Capel, por quem, também reza a lenda, se apaixonou de verdade, contribuiu para sua visão tanto cínica quanto realista do amor: "Uma mulher apaixonada é como um cachorro submisso, nada mais", comparava. "Chanel exercia seu charme sobre homens e mulheres", diz Tautou, insinuando a bissexualidade de Coco. Quanto à própria atriz, não se sabe nem com quem (ou se) namora. "Gosto de ter minha privacidade respeitada e sou um túmulo em relação à minha própria vida", brada, dando um chega pra lá em qualquer pergunta que não envolva sua arte. A impressão é que Tautou aprendeu muito com Chanel e, se já era tinhosa (as duas, aliás, são do signo de Leão), ficou ainda mais depois de incorporar a mulher que transcendeu o pretinho básico para tornar-se um mito da modernidade. "Ela era muito rápida em detectar hipocrisia e superficialidade", garante Tautou. "Chanel não era deslumbrada - na verdade era uma clandestina num mundo do qual se apropriou".
Tanto a atriz quanto Chanel não veem o sucesso de maneira tradicional. Para ambas, 2009 tem sido um ano especial. A estilista recebeu nada menos que duas cinebiografias e a atriz, além de ter estrelado uma delas, ainda foi o rosto do Chanel No. 5. "Não, eu não me vendi", defende-se. Como não? "Eu aceitei o convite para estrelar o comercial primeiro porque confio no diretor [Jean-Pierre Jeunet, o mesmo de Amélie]; segundo porque me identifiquei", insiste batendo o pé que o filme não teve nada a ver com o comercial: "Train de Nuit é uma imagem publicitária da grife Chanel, um projeto não está relacionado a outro porque são totalmente diferentes". A direita, Anne Fontaine também jura que não houve qualquer ingerência da Maison em seu filme. "A ideia não era fazer um filme sobre a história da moda, mas sobre a luta de uma mulher formidável", explica. A diretora também, ao estilo Chanel, tem consciência de que assumiu riscos ao apostar na sobriedade e melancolia que o fi lme passa. "A moda não tem de necessariamente ser divertida", observa com muita propriedade, sem necessariamente ter mostrado na tela o mundo-cão fashion. "Queríamos refletir o modo de ser e de pensar de Coco - e eles não eram algo que possa ser comparado a lantejoulas", revela Fontaine. "O que nos interessa é sua extrema habilidade de transmutar sofrimento em realização. Ela se joga no trabalho e, praticamente a base do que a fez célebre, ela criou nos primeiros anos de sua vida, antes da consagração."
Apesar de evitar assuntos polêmicos como a postura de Chanel perante a política e o aborto, Coco Antes de Chanel tem como trunfo não ter se rendido ao apelo do mercado da moda e não ter se convertido numa espécie de desfile opulento de peças Chanel. "Estávamos sempre em contato com Largerfeld e ele nos deu alguma consultoria", conta a figurinista Catherine Leterrier, que, pelos brincos de caveira pink na orelha, não deixa dúvidas: estamos diante de uma enfant terrible do figurino. Veterana do cinema francês, Catherine Leterrier (Um Ano Bom, Prêt-à- Porter e Joana D'Arc) teve em Coco Antes de Chanel uma prova de fogo. A responsabilidade e a proximidade com Karl, o poderoso chefão, não a intimidaram. "Quis decodificar Coco de trás para frente", conta a figurinista, agora nos bastidores das filmagens, em um estúdio em Ivry, a cerca de uma hora de Paris. "O que Karl Largerfeld faz ao adaptar o estilo Chanel para o futuro, procurei fazer voltando ao passado." Ela se refere ao fato de ter bebido nas mesmas fontes, seguindo as pistas dos signos que inspiraram a costureira Coco para que se tornasse o mito Chanel. "Há muitas referências de sua própria experiência em suas criações - referências que marcam o estilo Chanel de vestir e de viver", diz Leterrier. "O branco e preto, por exemplo, vieram de sua convivência com as freiras no orfanato em que foi criada. As correntes surgem carregadas de simbologia feminista, assim como a camisa masculina adaptada ao corpo da mulher, como se sinalizasse a emancipação das amarras dos corpetes e espartilhos."
Catherine Leterrier admite que sua escalação como designer de figurino de um filme em que o figurino é tão importante fez com que ela arregaçasse as mangas e se concentrasse nas pesquisas por toda a história da arte, com forte ênfase nas vanguardas europeias, como o dadaísmo de Marcel Duchamp. Nesse sentido, a roupa de Chanel assume uma aura de ready-made: "A praticidade primordial. Importante, para ela, é vestir-se de acordo com seu estilo de vida", completa a figurinista. Resultado: ela tornou fashion o que era praticamente uniforme, uma roupa de trabalho. E isso era um choque para a sociedade. O maior legado de Chanel, portanto, está nas ruas, na atitude, na forma de pensar e de vestir os novos tempos - e não nas butiques de alto luxo.