Charlie Sheen pode ser um viciado patético e iludido, mas é tão norte-americano quanto a torta de maçã
Olha só, ninguém fantasia em ser Charlie Sheen. Fantasiamos é com seus delírios, sua convicção inabalável de que ele próprio é foda, a despeito de sua média de 100% de falha enquanto ser humano. Foi assim que ele virou a estrela de sitcoms mais amada dos Estados Unidos por mais de uma década, interpretando dois caras rudes e festeiros, também chamados Charlie, em Two and a Half Men e Spin City. E por isso tornou-se repentinamente uma estrela gigante.
Encarar o fracasso olho no olho e chamar de "vitória" ("winning", no original, um dos chavões de Sheen) é a coisa mais próxima que temos de uma religião ianque. É a tradição nativa, do Capitão Ahab, em Moby Dick, a Ron Burgundy, em O Âncora. E se essa é a religião, Charlie Sheen é o bruxo. Muitos de nós podem olhar para trás e contemplar vidas arruinadas, empregos perdidos, fortunas desperdiçadas. Mas ver tudo isso e dar de ombros? É algo que está pau a pau com Ahab ameaçando atacar o sol se o astro ousar insultá-lo.
Pense: até este ano, nenhum de nós jamais havia ouvido o que Charlie pensa. Quem diria que ele era dono de uma mina de ouro verbal? Ele é como um vulcão que esteve dormente por anos, e que entra em erupção cuspindo sangue de tigre ("tiger blood", outro de seus chavões). Limado de seu emprego - o de recitar de forma pouco empolgada as piadas pouco inspiradas de seus roteiristas em Two and a Half Men -, o ator finalmente quebrou o silêncio e transformou o ato na performance de sua vida, porque ele é realmente brilhante nisso. Seu talento energético para criar frases e neologismos é empolgante de um modo como Charlie Sheen jamais foi.
A última vez que Charlie Sheen falou ao mundo foi em uma entrevista coletiva para promover o filme Tudo por Dinheiro, de 1997. "Vocês nem querem saber dessa porcaria", anunciou. "Só querem saber sobre as drogas e as putas." Nos 14 anos seguintes, as pessoas que cuidavam dele o mantiveram a rédeas curtas e longe dos microfones. Mas nós sabíamos que ele era louco, daí nosso júbilo ao vê-lo fora de controle. Coloquemos sua carreira em uma perspectiva cronológica. Ele surgiu na mesma época que Tom Cruise, quando os dois eram os novos bonitões do pedaço. Ambos interpretaram veteranos do Vietnã em filmes de Oliver Stone. Ambos pareciam adoráveis e inofensivos: não muito espertos, mas desesperados para serem levados a sério. Um deles ficou doidão. O outro se tornou Charlie Sheen.
Sheen passou de ator pomposo à autoparódia em tempo recorde, pulando de filmes como Wall Street para a franquia Top Gang. Em 2000, quando Michael J. Fox saiu de Spin City, Sheen ganhou o papel principal na série. Então veio o grande estouro de sua carreira, Two and a Half Men - acabado no cinema, ele se tornou ainda mais famoso ao interpretar uma versão caricatural de sua imagem. Seus vicíos tornaram-se conhecidos em 1995, quando veio à tona o escândalo envolvendo astros de Hollywood e a cafetina Heidi Fleiss. Mas, enquanto Fleiss foi parar no reality show Celebrity Rehab, Sheen ganhou milhões na TV. Quando Whoopi Goldberg apresentou o Oscar em 1996, fez piada sobre quantas das indicadas ao prêmio de Melhor Atriz tinham interpretando prostitutas: "Sharon Stone, Elisabeth Shue e Mira Sorvino fizeram prostitutas. Quantas vezes o Charlie Sheen votou?" Isso foi há 15 anos. Hoje, James Franco poderia ter feito a mesma piada no Oscar e recebido as mesmas risadas. Alguém mais conseguiu reinar por 15 anos como o cara que corre atrás de prostitutas?
Charlie diz que "as coisas pelas quais passei fazem Sinatra, Jagger e Richards parecerem crianças inofensivas com olhar de peixe morto". Mas esses caras são estrelas de verdade, que inspiram. Charlie não. Talvez você tenha sonhado em transar com a Denise Richards, mas não sonhou em casar com ela e passar pelo relacionamento envolvido em uma nuvem de raiva chapada. Ninguém quer ser um zumbi drogado de 45 anos, com cinco filhos e várias ex-mulheres metendo as mãos no seu bolso. Não parece divertido ser Charlie Sheen. Mas ter todo esse ego apenas por um dia? Encarar a derrota total e dizer: "Desculpe-me se minha vida é muito pior que a sua - foi assim que planejei"? Esbravejar contra o fracasso com os punhos em chamas? Esse é, com certeza, um sonho americano.