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Como Ziggy Stardust Caiu na Terra

Em 1972, David Bowie tentava manter a sanidade enquanto tornava o rock seguro para deuses do glitter e das esquisitices espaciais

Mikal Gilmore | Tradução: Lígia Fonseca Publicado em 12/11/2012, às 15h48 - Atualizado em 21/01/2013, às 13h19

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- - TIM O’BRIEN
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Em 3 de julho de 1973, David Bowie estava sentado nos bastidores do Hammersmith Odeon em Londres, esperando. Assistentes, maquiadores e figurinistas o preparavam para a apresentação mais antecipada de sua carreira: a data final de uma primeira turnê mundial triunfante com sua extraordinária banda, Spiders from Mars. Enquanto ele aguardava, centenas de pessoas se acomodavam no auditório do teatro. Muitas delas eram seguidoras – vestiam-se como Bowie, com roupas ousadas e glamorosas, cortaram e tingiram o cabelo para imitar o vermelho-choque do cantor, empalideceram os rostos e pintaram os olhos. “Essas crianças em quem você cospe/Enquanto elas tentam mudar o mundo/São imunes a suas consultas/Estão muito cientes do que enfrentam”, cantou ele em “Changes”.

Dois anos antes, poucos dos presentes neste evento sabiam quem era David Bowie. Ele tocava rock desde 1962 e gravava álbuns excêntricos desde 1967, chamando pouca atenção. Seu progresso tinha provado ser tão esporádico que ele se perguntava se queria continuar com aquilo. Bowie se via como um ator; queria usar rosto e corpo, voz e músicas, para representar papéis bizarros. Então, em 1971, percebeu que poderia combinar tudo – música e teatro – em um só personagem: Ziggy Stardust, um ser de outro mundo que veio à Terra para salvá-la, mas em vez disso encontrou o rock. Ziggy cantava sobre mudança e dor e tocava música melhor do que qualquer um; sua vaidade era fora do comum e ele tinha o carisma para transar com quem desejasse, homem ou mulher. No final, suas aspirações o levaram à ruína, com seus melhores objetivos não alcançados. Esse personagem tornou David Bowie famoso e formou uma comunidade em torno de sua singularidade.

Só que, naquela noite, David Bowie acabaria com Ziggy Stardust. Anos mais tarde, ele afirmou: “Não conseguia decidir se estava criando os personagens, se eles me criavam ou se todos éramos um só”. Tinha medo de que essa confusão o levasse à loucura. Quando saiu do Odeon naquela noite, Bowie pretendia abandonar Ziggy Stardust, mas também deixaria para trás o feito mais importante de sua vida: tinha dado um modelo de coragem para milhões que nunca haviam sido adotados por um herói da cultura popular. Ajudou a liberar os outros de formas inesperadas, mesmo se não conseguisse fazer o mesmo por si.

David Bowie nasceu com a necessidade de seguir em frente. Era como lidava com uma história que poderia não ter sobrevivido de outra forma. Sua mãe, Margaret Burns (ou Peggy), foi a primeira de seis filhos nascidos em uma família problemática no condado de Kent, Inglaterra. Três de suas irmãs sofriam de doenças mentais, e a própria Peggy, alguns pensavam, poderia ser limítrofe. Antes da Segunda Guerra Mundial, ela teve um caso e dele nasceu um filho, Terence Burns, em 1937. Quando tinha 33 anos, conheceu Haywood Stenton Jones, que era casado e tinha uma filha. Em 1946, ele se divorciou e casou com Peggy. Em 8 de janeiro de 1947, seu único filho, David Robert Jones, nasceu em Brixton.

O filho mais velho de Peggy, Terry, morou com a família Jones durante alguns períodos até David entrar na vida adulta. A mãe mimava David; ela o carregava sobre um travesseiro quando era pequeno e o deixava usar maquiagem, mas Terry era alguém para quem Peggy e John apenas proviam sustento. David, no entanto, amava e admirava o irmão, que, por sua vez, era quem lhe demonstrava mais afeto. Em 1956, Terry entrou para a Real Força Aérea britânica, onde ficou por dois anos. Quando retornou, estava diferente. Terry foi diagnosticado como esquizofrênico e paranoico. Ele provou ser a primeira influência importante sobre Bowie e o apresentou à visão do filósofo alemão Friedrich Nietzsche sobre a vontade, aos textos dos beatniks, incluindo Jack Kerouac e William Burroughs, ao trabalho de Christopher Isherwood, futuro amigo de Bowie, que escreveu sobre uma vida de liberdade sexual, e ao jazz.

No início dos anos 60, o jovem David Jones estava buscando novidades musicais e entrou para bandas de R&B como The Lower Third e The King Bees – em que cantava e tocava saxofone alto e tenor. Ele entrou e saiu de formações de R&B e mod durante boa parte da década, mas não tinha realmente um temperamento de banda. Tentou assumir o controle dos grupos para os quais entrava, e, quando não dava certo, acreditava que a culpa era das bandas. David Jones se via como alguém que deveria se diferenciar. Então, conheceu Ken Pitt, que o via da mesma forma. Pitt era um empresário musical bem conhecido. Depois de vê-lo se apresentar em abril de 1966 no Marquee Club, em Londres, virou seu empresário e conseguiu um contrato solo. Pitt também o convidou para morar em sua casa, resgatando-o do falatório incessante de Peggy e da atmosfera atormentada que existia entre seus pais e seu meio-irmão.

Pitt disse a David Jones que ele não poderia mais usar o próprio nome, devido à popularidade de outro cantor britânico, Davy Jones, do Monkees. O cantor era fã do retrato de Richard Widmark sobre o pioneiro norte-americano Jim Bowie, famoso por sua proeza com uma faca. Assim, aceitou Bowie como sua nova identificação. Pitt o apresentou ao ilustrador Aubrey Beardsley e aos escritores liberais do século 19, como Oscar Wilde, mas sua contribuição mais duradoura ocorreu no final de 1966. Em dezembro, ao voltar de uma viagem a Nova York, trouxe consigo uma cópia adiantada do primeiro álbum do Velvet Underground, uma banda que tinha surgido com o selo de aprovação do líder do movimento da pop art, Andy Warhol. Bowie ficou fascinado: o Velvet tocava músicas que eram belas e cacófonas ao mesmo tempo, e o líder da banda, Lou Reed, compunha sobre pessoas à beira do desespero.

O Velvet Underground deu a Bowie novas permissões para explorar espaços obscuros, mas suas próprias gravações só refletiram essa epifania cinco anos depois. Seu primeiro álbum, David Bowie, lançado em junho de 1967, foi uma demonstração de influências ecléticas, como o estilo pesadamente lírico da chanson francesa de Jacques Brel e das baladas teatrais e grandiosas do cantor e compositor Anthony Newley. O efeito era difuso demais para se destacar no psicodélico final dos anos 60, mas o disco atraiu a atenção de Lindsay Kemp, um mímico abstrato que também era instrutor de dança. Sob a tutela de Kemp, Bowie aprendeu como se mover no palco, como usar luz escura para revelar os significados de uma música e como usar a maquiagem branca dos mímicos, e também sobre estilos teatrais como o kabuki japonês, as peças de Jean Genet e o Teatro do Absurdo. Bowie era aventureiro e impiedoso em aproveitar o que vinha em seu caminho. Angela Barnett, a mulher que mudou seu mundo mais do que qualquer outra pessoa, nasceu na ilha de Chipre, em 1950, e morou com a família na ilha durante um período de revolta cipriota contra a colonização britânica. Foi criada como católica romana e seu pai, George Barnett, insistiu que ela prometesse ficar virgem até os 18 anos. Quando

Angela teve um caso com outra mulher na faculdade, sentiu que tinha mantido a promessa. No final dos anos 60, morava em Londres, onde teve um namoro curto com Calvin Lee, executivo de Artistas & Repertório da Mercury Records. Lee também gostava de Bowie e, em maio de 1969, levou Angela e o cantor a um show do King Crimson no Speakeasy. Mais tarde, ela escreveu na autobiografia Backstage Passes: Life on the Wild Side with David Bowie: “[Ele] era muito lindo: o cabelo cortado e com pequenos cachos emoldurando aquele rosto de anjo caído. David era um jovem muito impressionante, sexy, incomum e poderoso”. David e Angela dormiram juntos naquela noite. “Ele era muito viril”, ela contou mais tarde. Angela sabia que o queria, mas também sabia que ele dormia com outras pessoas, incluindo homens.

Bowie mais tarde disse a ela que não a amava, mesmo depois que se casaram e tiveram um filho, Duncan Zowie Haywood Jones, nascido em Maio de 1971. No entanto, durante anos, Bowie não pôde ficar sem os instintos dela – que o pressionava para ir mais longe em sua arte e ousadia. Ela acredita que radicalizou Bowie – se não politicamente, certamente de formas sexuais que tiveram ramificações culturais. Angela apoiou Bowie quando o pai dele morreu de pneumonia, em agosto de 1969. David ressentiu a mãe – ele não queria cuidar dela, afirmou Angela. Peggy não conseguia mais lidar com Terry. Ela o internou em Cane Hill, um hospital para doenças mentais graves, e não suportava visitá-lo. David e Angela recebiam Terry em casa durante suas altas do hospital, mas David ficou cada vez mais distante do meio-irmão. Ainda o amava, mas seu medo da proximidade com a esquizofrenia era grande demais.

Pouco antes da morte do pai, “Space Oddity”, a música que se tornou o primeiro grande sucesso de Bowie, foi lançada. Era um conto assustador de um homem perdido no espaço, deixado à mercê de sua própria incerteza – um retrato de toda a desconexão psíquica de Bowie, mas também de como os ideais e as esperanças dos anos 60 estavam desaparecendo. Na mesma época, David e Angela se mudaram para Haddon Hall, uma casa vitoriana com janelas góticas. Ela se tornou o local de nascimento da lenda de David Bowie, e foi uma tentativa de formar novas formas de vida. Enquanto viviam em Haddon Hall, David e Angela se casaram, em março de 1970. Na véspera da cerimônia, fizeram sexo com um amigo em comum. No dia seguinte, Bowie ficou surpreso com a presença da mãe no minúsculo casamento. Não tinha contado nada a ela sobre a ocasião. Peggy insistiu em assinar o registro como testemunha do filho e em posar para fotos. Angela alegou que não esperava que o casamento fosse duradouramente romântico, mas, escreve, “com certeza não queria que meu parceiro viesse na forma de um jovem astro promíscuo e obcecado consigo mesmo que tivesse uma mãe saída de um pesadelo”. Mais tarde, Bowie diria que a experiência de ser casado com Angela era“como viver com um maçarico”.

Em 1970, Bowie gravou “The Man Who Sold the World”, uma história de paranoia e sobrevivência, com música que combinava com a postura: retumbante e dissonante. Agora, ele trabalhava com músicos que o ajudavam a criar um ambiente sonoro inovador. “Eu respirava a empolgação de saber que tínhamos um grupo que realmente começaria incêndios”, escreveu ele mais tarde. O guitarrista Mick Ronson, em particular, deu às músicas de Bowie uma majestade dinâmica que se tornaria crucial para o que estava prestes a ocorrer. “Você acreditava que cada nota tinha sido arrancada da alma dele”, disse Bowie.

Quando tudo se juntou, aconteceu rápido, como algo inexorável. Os álbuns daquele período, de 1971 a 1974 – Hunky Dory, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, Aladdin Sane e Diamond Dogs – formam um dos grandes épicos do rock: uma crônica sobre a queda de mundos internos e externos – a desintegração do ego e da sociedade – e sobre novos valores arduamente adquiridos que podem ou não ser a salvação. No entanto, mais obviamente, os discos tratavam sobre realizações sexuais de uma forma que a cultura popular nunca tinha permitido. A expressão sexual no rock tinha provocado a revolta de muitos moralistas desde os anos 50, mas ainda assim a conversa era sobre uma sexualidade convencional: a luxúria, o romance e o sofrimento entre homens e mulheres. O território começou a mudar quando os Beatles popularizaram o cabelo comprido. À medida que o cabelo crescia, provocava chacota, até hostilidade pública; para alguns, sugeria uma feminização perturbadora dos homens.

Desde a metade dos anos 60, com seu cabelo no estilo do guitarrista Brian Jones, dos Rolling Stones, Bowie sabia que sua aparência transmitia ambiguidade: ele tinha um rosto e um corpo bonitos, que chamavam a atenção tanto de homens como de mulheres. Agora, no início da década de 70, a transgressão era permitida – a homossexualidade tinha sido descriminalizada na Grã-Bretanha em 1967 – e Angela pressionou o marido para usar seu apelo andrógino com mais ousadia. Ela o ajudou a escolher vestidos longos de seda para homens – como roupas medievais de príncipes, feitos por Michael Fish, que também tinha desenhado figurinos para os Rolling Stones – e usá-los em material promocional e sessões de fotos para revistas. Combinada com os trejeitos sugestivos de Mick Jagger nos shows dos Stones e com a maquiagem brilhante que seu amigo Marc Bolan, do T. Rex, pintava no rosto, e usando lantejoulas em uma apresentação na BBC, a androginia de Bowie sinalizava que mudanças estavam a caminho. O glitter rock tinha nascido e, em seu ponto mais alto, não se tratava apenas de música e estilo – em vez disso, era um novo modo radical de liberação. “Estávamos dando permissão a nós mesmos”, ele escreveu mais tarde, “para reinventar a cultura da maneira que queríamos.”

Bowie finalmente estava pronto para destroçar fronteiras. Demitiu Ken Pitt – Angela achava que suas ideias eram antiquadas – e contratou Tony DeFries, cuja promessa de fazer dele um astro levou o cantor às lágrimas. A jogada seguinte de Bowie, o álbum Hunky Dory (1971), marcou seu lance pela transfiguração tudo ou nada. A capa o mostrava em um retrato feito à mão, com o cabelo loiro longo puxado para trás como o de atrizes dos anos 40, como Lauren Bacall ou Marlene Dietrich. A música em si era irresistivelmente deliciosa, aparente desde as linhas de piano na abertura de “Changes”, que era uma declaração de independência e ousadia para Bowie e o público que ele definiria. O cantor tinha recentemente começado a compor no teclado e ficou inspirado pelas possibilidades estruturais e melódicas que o instrumento lhe dava. “Eu me forcei a virar um bom compositor”, afirmou mais tarde. O quão longe tinha chegado – em todos os sentidos – ficou evidente em uma apresentação de “Queen Bitch”, de Hunky Dory, com o Spiders from Mars, no programa The Old Grey Whistle Test da TV britânica, em 1972. Usando botas vermelhas de cano longo e um macacão com zíper aberto, Bowie era instigante enquanto dava uma festa ruidosa influenciada pelo Velvet Underground, cantada na voz de um homem que esperava em seu quarto de hotel por outro homem, até seu ciúme lhe deixá-lo doente. Foi um momento incrivelmente ousado e Bowie o fez com autoconfiança impávida.

Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), seguiu Hunky Dory tão de perto que os dois discos pareciam um só. Ambas as obras são impecáveis – na verdade, formam um dos melhores álbuns duplos já feitos. Só que Ziggy Stardust and the Spiders from Mars era uma história – ou, pelo menos, a sugestão de uma: a de um alienígena que caiu na Terra e perdeu tudo, menos o legado. Bowie tirou partes de Ziggy de vários lugares. Sua inspiração para o nome do personagem, contou mais tarde, vinha de um cantor de psychobilly de Lubbock, Texas, chamado The Legendary Stardust Cowboy. Ele também tinha em mente Vince Taylor, um cantor de rock magro, sexy e problemático do início da década de 60 que teve algum sucesso na França, mas que passou a ter ilusões devido a alucinógenos, declarando uma vez para um público que era mensageiro de Cristo. “Encontrei com ele algumas vezes em meados dos anos 60”, disse Bowie. “Não estava nada bem da cabeça.” O pioneiro do rock Gene Vincent foi outra referência. O mais importante foi o que Bowie tomou emprestado dos exemplos de Lou Reed, do Velvet Underground, e Iggy Pop: eles faziam música influente que se diferenciava dos valores dominantes, mas ficavam arrasados com a falta de consideração dos críticos e do público.

O que Bowie fez com essas fontes era totalmente seu – algo inédito e liberador. Enquanto Hunky Dory começava com a esperança de “Changes” e terminava na ruptura de “The Bewlay Brothers” (uma música que parece ser sobre Terry), Ziggy Stardust and the Spiders from Mars revertia esse movimento. A faixa de abertura do álbum, a fascinante “Five Years”, descrevia os momentos horríveis depois que um grupo de pessoas recebe a notícia de que a Terra morrerá em poucos anos. Dez músicas mais tarde, depois que todos os Messias vieram e foram embora, Bowie revelou um ato furtivo de redenção, tentando confortar uma alma solitária em “Rock ’n’ Roll Suicide”: “Você não está sozinho. Não importa o que ou quem tenha sido/Não importa quando ou que lugares tenha visto/Todas as facas que parecem dilacerar seu cérebro/Já passei por isso, vou te ajudar com a dor/Você não está sozinho”.

David Bowie se tornou um astro como nenhum outro. Seus discos venderam mais rápido do que os de qualquer outro artista na Inglaterra desde os Beatles, e seus shows com o Spiders from Mars viraram eventos cobiçados e legendários. Ninguém jamais havia se parecido com ele – um rosto esquelético marcado por raios audaciosos, olhos penetrantes que tinham cores diferentes. Ninguém se movimentava como ele, com graça impossível às vezes, depois em ângulos tortuosos, espasmódicos, quase inumanos. Ninguém usava as roupas que ele vestia, roupões de príncipe, mas femininos, calças justas que apresentavam seu sexo como o centro de seu ser, como o foco do palco.

Bowie alegaria que pretendia que Ziggy Stardust fosse apenas uma criação teatral, “mas representei o personagem à risca”. Quando ele se ajoelhou diante de Mick Ronson, enlaçou o traseiro do guitarrista com as mãos e puxou Ronson e sua guitarra em direção à sua boca – em uma simulação de sexo oral – durante um show no Oxford Town Hall em junho de 1972, o efeito foi titânico. O momento (uma surpresa para Ronson) foi fotografado e impresso nos jornais musicais. Bowie ficou preocupado – teria ido longe demais? Ao mesmo tempo, estendeu os riscos para fora do palco. Em sua entrevista mais famosa, para a Melody Maker, em 1972, anunciou espontaneamente: “Sou gay e sempre fui, mesmo quando era David Jones”. Depois, nova preocupação: será que o que havia dito tinha destruído sua chance de ser aceito nos Estados Unidos? Bowie era bissexual – e ser casado e ter um filho deixaram sua declaração mais provocante e confusa. Em 1983, afirmou a Kurt Loder, da Rolling Stone EUA, que dizer que era bissexual “foi o maior erro que cometi”. O crítico John Gill achava que Bowie tinha usado e traído a cultura gay, mas também admitiu que tinha encorajado muitas pessoas a serem mais abertas quanto à sexualidade.

Bowie e o Spiders from Mars – o baixista Trevor Bolder, o baterista Woody Woodmansey e o guitarrista Ronson – fizeram uma turnê incessante por 18 meses entre 1972 e 1973. No livro Starlust: Secret Life of Fans, de Fred e Judy Vermorel, de 1985, um fã contou aos autores: “Muitos homens jogavam a cueca e mostravam o pênis. Muito fluido jorrava. Uma garota chupava alguém enquanto, ao mesmo tempo, tentava entender o que acontecia. Achei aquilo extraordinário, porque ninguém tinha inibição alguma”.

Aquela noite no Hammersmith Odeon em 1973 foi o último suspiro. “Realmente queria que tudo acabasse”, escreveu Bowie em Moonage Daydream. “Agora, estava escrevendo para um tipo diferente de projeto e completamente entediado com todo o conceito de Ziggy, não conseguia manter o foco na apresentação. Estava esgotado e infeliz.” No fim do show, antes do bis com “Rock ’n’ Roll Suicide”, Bowie falou para o público: “Este não é apenas o último show da turnê, mas também o último que faremos. Tchau. Amamos vocês”. A plateia ficou estupefata. Os membros do Spiders from Mars, também. David Bowie havia abandonado seu alter ego e demitido a banda no mesmo momento, em público. Era um exemplo de sua famosa capacidade de encerrar relacionamentos, deixá-los para trás como havia se deixado para trás. Angela alegou também ter ficado surpresa. Disse que depois desse show virou “persona non grata”.

Ziggy Stardust perseguiu Bowie por muito tempo, tornou-se o que ele achava que tinha de superar ou ultrapassar. Esperava poder abrir mão do personagem, mas manter o crescente público que a imagem tinha conquistado. Só que Aladdin Sane e Diamond Dogs foram, essencialmente, continuações: a música se tornou mais profunda, arriscada, complicada, maldosa; o ponto de vista, mais tóxico. No entanto, aquele ainda era o mundo e o personagem de Ziggy Stardust.

Em 1974, Bowie lançou uma turnê elaborada na América do Norte. Desta vez, os músicos foram relegados a ficar atrás de uma tela, invisíveis, enquanto ele dominava o palco com coreografia brilhante e acessórios complicados. Sua voz estava, no mínimo, melhor – tinha um alcance e controle impressionantes –, mas ele ficou entediado no meio da turnê. Queria revisar seu som, deixá-lo com mais soul e funk. Trouxe o guitarrista Carlos Alomar, que tinha trabalhado no Apollo Theater e tocado com James Brown e recrutou Luther Vandross para arranjar os vocais de apoio. Conheceu John Lennon e ambos compuseram e gravaram “Fame” para o álbum Young Americans de Bowie, de 1975. A música e o disco foram um grande sucesso nos Estados Unidos.

Bowie também desenvolveu uma obsessão por cocaína durante esse período, que o levou ao frenesi, delírio e terror. Morou por um tempo em um sobrado em Manhattan, mas, depois de um conflito intenso certa noite com Jimmy Page, Bowie passou a acreditar que o guitarrista do Led Zeppelin – proprietário da casa, na Inglaterra, do falecido mago e filósofo Aleister Crowley – havia colocado sua alma em perigo. Ele se mudou para Los Angeles e continuou se desintegrando, ficando sem dormir por dias a fio, sustentando-se com uma dieta de leite, pimentões e cocaína, estudando literatura e ocultismo. Ligou para Angela em Londres, pedindo ajuda: “Bruxas queriam que ele engravidasse uma delas durante a Noite das Bruxas pagãs”. Falava que Satã vivia em sua piscina. Ele precisava de um exorcismo, e Angela fez isso – em uma ligação internacional. “David nunca ficou louco”, ela disse. “As doidices eram o consumo de cocaína, álcool e outras drogas.”

No final de 1976, por sugestão do escritor Christopher Isherwood, Bowie se mudou para Berlim Ocidental, com o amigo Iggy Pop. Por um tempo, o retiro só fez seus problemas mudarem de lugar. Ele começou a beber muito e vomitava nos becos. Pior: ficou obcecado com o Terceiro Reich e pela mitologia nazista. Chegou a dizer: “Acredito no facismo. Adolf Hitler foi um dos primeiros astros do rock”. Só que, quanto mais ficava em Berlim, mais conseguiu entender a ruína que o fascismo tinha levado à Alemanha e à Europa. Teve repulsa dos nacionalistas e racistas e se horrorizou ao ver seu nome transformado em uma suástica em um grafite. Mais tarde, chamou seus interesses de “medonhos” e afirmou que estava saindo de um ano de dificuldades terríveis. “Estava fora de mim, completamente enlouquecido.”

Mesmo assim, Bowie fez músicas excepcionais nos anos pós-Ziggy Stardust. A faixa-título de Station to Station (1967) soava como uma batalha pela alma entre uma estrutura autoritária e burocrática e guitarras raivosas e anárquicas. Com Low (1977) – gravado com a colaboração de Brian Eno, ex-tecladista do Roxy Music – ele construiu uma nova linguagem musical a partir de fragmentos e texturas. Inicialmente, sua gravadora, a RCA, não queria lançar Low; no entanto, junto com Heroes, do mesmo ano, o álbum acabou inspirando uma geração, ou mais, de novos artistas, de Joy Division a Trent Reznor, e provou ser o trabalho mais influente de Bowie em termos sonoros.

Bowie deixou o empresário Tony Defries em 1975 e se divorciou de Angela em 1977. O casamento tinha começado a desandar dias depois do nascimento do filho, Duncan, em 1971. Traumatizada pelo parto e com pouco instinto materno, Angela partiu para férias na Itália poucos dias depois com uma amiga. O comportamento pode ter feito Bowie se lembrar demais da mãe – uma traição da fé, o abandono de uma criança. Antes do divórcio, Angela tentou se suicidar mais de uma vez e humilhou o ex-marido na imprensa. “Realmente queria que ele sofresse”, afirmou. Ela queria crédito pelo sucesso e fama de Bowie, que lhe deu pouquíssimo reconhecimento em troca. O cantor conseguiu a guarda de Duncan e o filho raramente se comunicava com a mãe. Bowie provou ser um excelente pai. A vocação o ajudou a se endireitar. Ele se casou novamente em abril de 1992, com a modelo Iman. Ainda estava sujeito a crises de depressão, mas encontrou estabilidade e consolo. “Sem a Iman”, ele disse, “já teria colocado a cabeça dentro de um forno.” Bowie e Iman têm uma filha, Alexandria, nascida em agosto de 2000.

Em 1983, depois de um hiato, ele se mudou para uma nova gravadora, EMI, e fez o álbum mais bem sucedido comercialmente de sua carreira, Let’s Dance. Também embarcou na primeira de diversas turnês mundiais espetaculares. Tinha se reinventado novamente e não havia mais espaço para Ziggy Stardust. Durante esse período, mencionou brevemente o meio-irmão Terry, durante uma entrevista. “É minha culpa nos distanciarmos”, afirmou, “e isso é doloroso.” Terry havia tentado se matar no ano anterior, ao se jogar da janela do hospital onde estava confinado. Ele visitou o irmão pouco depois – sua primeira visita em dez anos – e levou livros, roupas e suas músicas. Terry esperava que Bowie voltasse – disse às enfermeiras que o irmão o salvaria – mas os dois nunca mais se viram. Em 27 de dezembro de 1984, Terry saiu do hospital psiquiátrico Cane Hill, foi para uma estação de trem nas proximidades e deitou a cabeça sobre os trilhos. Levantou-se no último minuto. Também tentou ter uma overdose de soníferos naquele dia e exigiu ser levado para a casa da mãe, “onde David estaria esperando”. No mês seguinte, em 16 de janeiro, deixou Cane Hill novamente e voltou à estação de trem, mais uma vez deitando a cabeça sobre os trilhos. Foi a última coisa que Terry Burns fez. Tinha 47 anos. Bowie não foi ao enterro, mas enviou um cartão e rosas. O cartão dizia: “Você viu mais coisas do que conseguimos imaginar, mas todos esses momentos serão perdidos, como lágrimas lavadas pela chuva. Deus te abençoe. David.”

A obra posterior de Bowie nunca transcendeu suas invenções no início da década de 70. Artistas pop nem sempre têm a oportunidade de mudar o mundo mais de uma vez e, com o acúmulo de poder, perdem um pouco da santidade. David Bowie fez mais do que a maioria. Se realmente se ressentiu do rock ou não, ele o usou para o que este faz de melhor: dar voz a quem não a tem. Fez isso para pessoas que o próprio rock não tinha exatamente acolhido – que talvez ainda não tivessem certeza quem eram ou quem poderiam ser. Ele as ajudou a se esclarecer, deu permissão e estímulo para que descobrissem sua identidade sem inibição, exibir prazer consigo mesmas e com os outros. Estendeu a mão e lhes disse: “Me deem suas mãos porque vocês são maravilhosos/Oh, deem suas mãos”.

O sucesso de Bowie não pode ser medido pelo fato de ele ter conseguido ou não se reinventar e seguir em frente. Ele ajudou os outros a proclamar identidades das quais tinham sido coagidos, ou humilhados, a negar. Ziggy Stardust deu as pistas, mas David Bowie provou ser o homem que possibilitou que Ziggy existisse.