Festival Glastonbury deixa de lado a ditadura do rock e se consolida como evento comercial com fins solidários
São quase 10h da noite de sábado, e ainda está claro na fazenda de Worthy, sede da 38ª edição do Festival de Glastonbury, considerado o maior e mais influente evento musical da Europa. Em frente ao palco principal - uma estrutura piramidal de mais de 40 metros de comprimento na base e 30 metros de altura, alinhada à distância com a Abadia de Glastonbury (onde, segundo a lenda, estão os restos mortais do Rei Arthur) e o monumento pré-histórico Stonehenge -, um público de 75 mil pessoas aguarda, descontraído. Não se sabe se Amy Winehouse, atração das 21h45, vai de fato aparecer. Menos de dez dias antes, a cantora jazia em um quarto de hospital com dificuldades respiratórias. Havia fortes rumores de que aquele poderia ser o seu último show.
Mas, finalmente, Amy surge renascida, como uma fênix desmilingüida. Ela tem guarda-chuvinhas no cabelo e os seios esmagados dentro de um vestido azul de escamas metalizadas, que escurece quando a noite finalmente chega, às 22h20. "Eu precisei da ajuda de três mulheres para colocar este vestido. E não demora nada para tirar, não é meninas?" O público ri. "Onde está Pete Doherty?", grita o rapaz de chapéu à minha frente. Ele e os amigos não são os únicos a concordar que é necessário zombar ao máximo de Winehouse, principalmente quando ela decide fazer mais uma constrangedora declaração de amor pública ao namorado preso, Blake Fielder-Civil. No final do show, durante "Me and Mr. Jones", Amy ainda esmurraria um fã que, segundo ela, havia tentado apertar seus seios (ou cabelos, não se sabe ao certo).
"Há algum negro por aqui?", a provocação de Amy percorre a espinha. Não está claro, mas essa é a forma que a cantora encontrou de saudar a presença controversa do rapper Jay-Z, que subiria ao palco em seguida. No início de maio, após a divulgação das atrações do festival, Noel Gallagher, guitarrista do Oasis, declarou que a presença de um rapper como headliner era "errada". Por outro lado, houve alegações de que o Glastonbury não poderia continuar a ser um reduto do rock branco inglês e deveria se abrir para outros estilos. "Ele não conhece minha música. Eu o convido a assistir ao meu show", se defendeu Jay-Z.
Talvez não por coincidência, pela primeira vez desde 1992, os ingressos para o Glastonbury não se esgotaram como de costume. Em 2007, a venda de ingressos se encerrou em uma hora e 45 minutos.
As vendas mais tímidas também podem ter sido causadas pelas lembranças remanescentes das chuvas torrenciais que atingiram a fazenda nas últimas três edições, transformando o local em um verdadeiro "festival da lama" e ilhando os freqüentadores em suas barracas. Em 2008, o Glastonbury parecia condenado a sucumbir diante da concorrência com festivais europeus mais aconchegantes, como os britânicos Eastnor Castle Deer Park e The Green Man, o dinamarquês Roskilde e o espanhol Benicassim. A edição deste ano, que aconteceu no fim de semana de 27 a 29 de junho, era tão aguardada por suas polêmicas quanto pela capacidade da organização de conseguir contornar as adversidades e continuar nos anos futuros.
Por volta das 18h do mesmo dia, alheio a polêmicas e comprometendo a memória de curto prazo, um grande público se aglomera dentro e ao redor do palco John Pell Stage, localizado a noroeste do palco principal. O clima é pacífico e um aroma de maconha percorre as rodas. Rostam Batmanglij, tecladista do Vampire Weekend, impecável em uma camisa branca como em um protesto singular contra o barro, anuncia os primeiros acordes contagiantes de "Walcott", do álbum homônimo de estréia. "Eu não acredito em quanta gente está nos assistindo agora", comemorou, estupefato, o vocalista e guitarrista Erza Koening. Minutos após o show, o público ainda saltita ao redor do palco, onde também se apresentaram o cancioneiro indie Lightspeed Champion, John Cale, Santogold, The National, The Long Blondes, Franz Ferdinand, MGMT, British Sea Power, além de mais 24 bandas.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 23 da Rolling Stone Brasil, agosto/2008