No thriller espacial Sunshine, o diretor britânico Danny Boyle mostra o que sabe fazer de melhor
No Brasil, são 19h30 de uma segunda-feira interminável. Na Austrália, já são 8h30 do dia seguinte. Para minha sorte, o cineasta inglês Danny Boyle acordou de excelente humor. "Está uma linda manhã", diz, exibindo o sotaque característico de quem cresceu em Manchester. Em seguida, me conta sobre sua mais recente descoberta: a privilegiada vista panorâmica do Circuito de Albert Park, em Melbourne, proporcionada pela janela de seu quarto de hotel. "Eu não costumo acompanhar a Fórmula 1, mas a temporada está para começar e dá para ver as equipes testando carros daqui da minha janela", comemora.
Aos 50 anos, cultuado e dono de um estilo indefectível, Boyle não é um cineasta dos mais prolíficos. A viagem para a Oceania é parte da estratégia de promoção de seu sétimo longa-metragem em 13 anos: o violento thriller espacial Sunshine, que estréia este mês nos cinemas brasileiros. À primeira vista, é o trabalho mais convencional do diretor, ao mesmo tempo em que representa com perfeição as mais evidentes características de sua celebrada e errática carreira: câmera nervosa, violência explícita, tensão e agonia constantes e personagens com ímpetos autodestrutivos são ingredientes comuns a filmes perturbadores como Cova Rasa (1994), Trainspotting - Sem Limites (1996), A Praia (2000) e Extermínio (2002). Sunshine, a saga de oito astronautas em missão para reativar o Sol quase extinto, é a prova de que Boyle tem fôlego para se reinventar, ainda que fazendo questão de se manter fiel a si mesmo.
Você parece gostar de repetir atores (Ewan McGregor, Cillian Murphy, Robert Carlyle) e roteiristas (Alex Garland, John Hodges). É mais confortável ter gente conhecida por perto?
Sim, é sempre saudável ter um relacionamento de confiança e compreensão com seus parceiros de trabalho. O problema de ser um diretor de cinema, especialmente se você já fez alguns filmes de sucesso, é que muita gente não lhe fala a verdade: eles tendem a se sentir intimidados e acham que tudo que você diz ou faz é o certo. Uma das coisas boas de trabalhar com quem já te conhece é que eles sempre dizem a verdade. O trabalho fica melhor quando as pessoas são mais honestas.
Sunshine marca sua terceira parceria com o escritor Alex Garland. Como você definiria o trabalho dele?
Sim, ele não se envolveu muito em A Praia, mas escreveu o livro que inspirou o roteiro. Daí, fizemos juntos O Extermínio e Sunshine. Alex é um sujeito bastante incomum, em se tratando de um escritor inglês: ele escreve em larga escala e tem grandes idéias, de um jeito que adoro para o cinema. Existe certa pobreza de grandes idéias no cinema britânico: há uma tendência de se fazer filmes pequenos, e Alex sempre escreve esses filmes enormes e caros. Nós trabalhamos durante um ano no roteiro de Sunshine, e apesar de tentarmos controlar os gastos, sempre nos forçávamos a torná-lo cada vez maior e mais ambicioso.
Ao mesmo tempo em que Sunshine é o seu filme mais atípico, ele remete a seus filmes anteriores. Por que isso acontece?
[Risos] É interessante você dizer isso, porque eu estava bastante consciente de que precisava que Sunshine fluísse de maneira diferente dos meus outros longas. Para se fazer um filme espacial convincente, o ritmo precisa ser lento, especialmente no início. Foi uma disciplina interessante, porque faz parte do meu estilo acelerar as coisas desde o começo. Foi como uma terapia, quase como um mergulho no desconhecido. Além disso, eu gosto de dirigir filmes que conduzam os personagens a limites extremos, que mostrem o quanto eles conseguem tolerar psicologicamente e o que acontece quando eles enfim alcançam esse limite.
A primeira metade de Sunshine nem parece um filme de Danny Boyle. Porém, as coisas começam a dar errado, os personagens brigam entre si, morrem e o filme termina. Aí sim, o filme ganha a sua cara. Você o enxerga dessa forma?
[Risos] Essa é mesmo uma ótima maneira de descrever. Adoro o fato de todo mundo morrer e, mesmo assim, ser um final feliz. Não é algo lá muito comum no cinema. Uma das coisas sensacionais sobre filmes espaciais é que os elencos são normalmente formados por atores que são iguais entre si, então não dá para saber em que ordem eles vão morrer. Não dá para ter um Tom Cruise nesse tipo de produção - tirando Apollo 13, ninguém usa grandes estrelas nesse gênero. É isso que permite ao diretor matar os personagens na ordem em que quiser. Aliás, essa é outra coisa que adoro em filmes espaciais: as mortes são sempre criativas e muito interessantes [risos].
Deve ser o sonho de todo cineasta dirigir um filme que se passa no espaço - isso se você for um fã ardoroso de Stanley Kubrick. É esse o seu caso?
Sim, é mesmo como um sonho realizado. Mas, quando você enfim consegue fazer um filme desse tipo, é um pesadelo total. É interessante notar que nenhum diretor filma no espaço mais de uma vez - nem mesmo o Kubrick. Uma vez que você dirige um filme espacial, não quer fazer outro, a não ser que tenha que fazer uma continuação, como Star Wars, ou coisa do tipo. Leva quase uma vida inteira para ser feito. Sério, não dá nem para descrever, é de deixar qualquer um louco. Eu nunca mais farei um desses, prometo a você! [risos]
Qual foi a maior dificuldade?
As cenas em gravidade zero, obviamente, são muito difíceis. Tudo o que fazemos na Terra é controlado pela gravidade, então fica muito difícil filmar em uma condição contrária. Sabemos que o público espera que essas cenas saiam muito caprichadas, então tudo se torna muito exaustivo. Outro detalhe é conseguir pegar o clima da imensidão do espaço e transportar para a tela. Leva muito tempo e é muito difícil.
As cenas violentas de seus filmes costumam ser sangrentas e muito fortes. Como você decidiu que, quando se trata de violência, é preciso ser bem explícito?
Para mim, a violência tem um papel-chave no cinema. E é assim que funciona desde a Grécia antiga, quando surgiu a dramaturgia. É o que chamamos de "catarse": o público quer assistir a fatos que nunca viveu, porque isso está em nosso DNA, em nossa natureza genética. Quando se faz filmes extremos, você quer levar esses momentos ao limite. Uma coisa de que gosto é misturar cenas visualmente lindas com cenas terríveis de violência, para que as duas sejam mostradas ao mesmo tempo. Tento repetir isso em todos os meus filmes.
Se olharmos os filmes de sua carreira, fica claro que você prefere projetos não-convencionais a grandes franquias. Qual é seu objetivo como diretor?
Eu sou muito melhor trabalhando em filmes "fora do radar". Não costumo seguir conselhos de gente de Hollywood, que me diz que devo fazer determinado filme ou trabalhar com determinado ator. As pessoas dizem: "Seria legal se você fizesse esse filme com Angelina Jolie", ou "Will Smith gostaria de trabalhar com você". Não sou muito bom nesse tipo de coisa. Prefiro muito mais que a idéia do filme seja a coisa mais importante, e que tudo o que for construído em torno disso - elenco, dinheiro - surja dessa idéia, e não de um elenco estelar. Descobri que é essa a maneira que gosto de trabalhar. Se meu próximo filme for sobre crianças que moram nas favelas de Bombaim, é a partir daí que todo o resto irá surgir. Eu não sei quem estará no elenco ou quanto ele irá custar, mas é essa idéia principal que irá determinar toda a produção.
Seria interessante assistir a um filme de heróis dirigido por você. Há chances?
[Risos] Eu acho que não. É bom nunca dizer nunca, afinal não se sabe o que pode rolar. Até gosto desse tipo de filme, e não acho que eles devem parar de ser feitos. Não vou entrar numa cruzada para mudar a indústria, mas é que sei o que faço melhor, e estou feliz com isso.
Você consegue se imaginar ganhando o Oscar algum dia?
[Risos] Acho difícil que isso aconteça. Bem, o Guillermo del Toro [cineasta mexicano] é um diretor muito interessante e ficou próximo de ganhar este ano, então quem sabe um dia? Acho que ele é um cara bem parecido comigo, apesar de trabalhar em uma escala bem maior. Ele fez Hellboy e esse Labirinto do Fauno, que é um filme lindamente executado. É dele também o A Espinha do Diabo, um filme de terror fantástico, assustador.
Mas, falando sério, esse tipo de prêmio tem algum significado para você?
É claro que sim. É como se uma mulher incrível e maravilhosa o abordasse e dissesse que gostaria de dormir com você. Ou seja, fantástico! [Risos] Seria ótimo vencer um dia, mas é muito mais provável que eu me dê bem com uma bela mulher do que com o Oscar...
Se pudesse mudar alguma coisa em seus primeiros longas, o que seria?
[Pensativo] Não funciona assim. As pessoas me perguntam isso, mas não consigo pensar em nada. Não estou dizendo que tudo é perfeito, mas esses filmes são produtos de uma determinada época. De uma maneira bizarra, dá para dizer que seu melhor filme é sempre o seu primeiro filme, porque todos os seus erros estão ali, e são eles que representam o seu aprendizado. É engraçado ver que é impossível recriar a inocência e ingenuidade do tempo em que você não sabe nada e vai lá e faz. Mas eu não mudaria nada.
Você sempre trabalha com roteiros escritos por ingleses. Há algum autor americano que você gostaria de filmar?
O problema é que não fico seguro em dirigir filmes nos Estados Unidos. Confesso que é difícil para eu entender o que se passa por lá. Quando estou dirigindo, quero saber as respostas para as perguntas. Nos Estados Unidos, não sei como as pessoas crescem, quais carros preferem, qual marca de chocolate comem, para quais times torcem. Fica complicado.
Há algum filme ou história que você gostaria de dirigir?
Durante as viagens para promover Extermínio, comecei a ler um livro incrível do escritor português José Saramago, o Ensaio sobre a Cegueira. Não consegui acreditar o quanto a história é parecida com a de Extermínio! Que livro maravilhoso! Adoraria fazer um filme baseado nele, mas ouvi falar que já estão trabalhando na adaptação [o brasileiro Fernando Meirelles foi escalado para a direção]. Saramago é genial, genial mesmo. Agora, estou lendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo e adorando.