Quintal da Al-Qaeda com praias paradisíacas e tesouros arquitetônicos. Esses são os contrastes do Iêmen, país que também é produtor do mel mais caro do mundo.
"Journalist, journalist?", repetia o barbudo armado com uma AK-47 ao me ver com uma câmera fotográfica nas mãos.
- "Leh, Habib" (não, amigo). "Tourist, tourist."
Ser reconhecido como jornalista naquele suspeito restaurante de estrada do vale de Wadi Doan, no leste do Iêmen, era a última coisa que podia acontecer...
Pichado com o símbolo do sol que caracteriza a presença do partido político fundamentalista mais radical do Iêmen, o muquifo estava lotado de homens famintos e armados. Nas paredes, retratos de líderes religiosos e calendários com imagens de Meca davam o tom da conversa. Do lado de fora, crianças brincavam descalças, acompanhadas de um cão esquelético. A paisagem desértica era pontuada com tanques de guerra oxidados, inertes resquícios da guerra civil que resultou na precária unificação do Iêmen com o Iêmen do Sul, em 1990, para formar um só país com 99%de muçulmanos (de diferentes facções), bastante pobre e repleto de conflitos tribais não resolvidos.
Observando meu comportamento com a câmera, aquele objeto munido de gatilho, o sorridente barbudo apontava seus colegas, acusando-os de pertencer à organização terrorista Al Qaeda! "Sura, sura [foto, em árabe]", ele dizia. O sujeito quer que eu fotografe um par de mal-encarados, sentados no chão com rifles kalashnikovs no colo, que comem calmamente o único item do menu: um pão com salta, molho ralo de vegetais cozidos com cardamomo.Insisto em deixá-los em paz, guardando a máquina e proclamando o famoso "As Salam Aleikum!", cumprimento padrão do mundo islâmico. Não funcionou.Puxando-me pelo braço, ele subia a voz: "Sura, sura, no problem! [foto, foto, sem problemas]". A essa altura, os dois se incomodavam com a situação. E vários outros me olhavam com curiosidade, esperando uma reação.
Numa saia-justa, apontei a câmera com o dedo e perguntei:"Ok, ok...Sura?", como quem diz: "Olha, são vocês que insistem. Querem mesmo?" Exibindo simultâneo sorriso desdentado, ambos concordaram e até me convidaram para participar daquela refeição informal.Relaxei imediatamente. A foto dos chapas da Al Qaeda estava feita. Mais uma cena chocante para a coleção de imagens surreais flagradas naquela viagem.
O Iêmen tem cânions profundos, praias virgens, desertos cinematográficos, sítios arqueológicos bíblicos e pérolas da arquitetura árabe, mas não é exatamente um destino de férias, seria mais como uma visita a outro planeta. Cenas humanas surreais - aos olhos ocidentais - são vistas diariamente,já no primeiro passeio a pé pela capital, Sanaa.Mulheres vestidas com o "pretinho básico", apenas os olhos de fora, misturam-se nas ruas com crianças carregando armas, dirigindo motos ou trabalhando no comércio.Nos jornais locais, notícias sobre refugiados somalis que cruzam clandestinamente o golfo de Aden em barcos precários e desembarcam semimortos no litoral iemenita dividem a página com o follow up do caso de Nojoud Nasser,a menina de 8 anos que pede na corte civil o divórcio do marido, 22 anos mais velho.
Para me aventurar por esses confins, deixei crescera barba, memorizei frases do Alcorão e rituais básicos do islamismo. Contratei um motorista que falava inglês,um guarda-costas armado com AK-47 (obrigatório para um estrangeiro transitar por certas estradas) e atravessei burocracias em árabe para conseguir permissões por escrito, e passar - distribuindo fotocópias do documento - pelos inúmeros postos militares ao longo do caminho até Wadi Doan, meu destino final.O objetivo era travar contato com aquele universo de vilões sem cura aos olhos da mídia internacional, mas cuja hospitalidade é famosa e descrita por Marco Polo e inúmeros outros autores, entre eles o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-91), que viveu por alguns anos traficando armas em Aden, cidade portuária e ex-capital do antigo Iêmen do Sul.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 31, abril/2009