Aos 44 anos, o mais velho do grupo de rap é também o mais radical e ranzinza dos quatro
“Já fui humilde demais, omisso demais, tinha medo da minha fala, do meu poder. E você não pode chegar assim no palco. Tem de ser igual ao Michael Jackson. Quando eu subo no palco, me transformo”, diz KL Jay, pai de sete filhos, dois deles, Will e Kalfani (da banda de rap Pollo), também DJs. “Eu falo: ‘É agora’. Digo ‘oi’ pros meus toca-discos e é como se fosse uma coisa só. Toca-disco, mixer, fone, agulhas, músicas, discos, computador... Vira uma coisa só. Crio uma coisa que fecha aqui [em volta]. Acontece alguma coisa comigo.”
O Racionais MC's estampa a capa da edição de aniversário da Rolling Stone Brasil. Leia aqui.
Mais velho dos Racionais MC’s, aos 44 anos, KL Jay, ou Kleber Geraldo Lelis Simões, é unanimidade no grupo: é o mais radical e “ranzinza” dos quatro. E ficar à frente de Mano Brown (assumido como vaidoso e extremamente chato) nesse quesito é para poucos. Quem acompanha o quarteto no palco já cansou de flagrar as trocas de olhares fulminantes entre Brown e KL Jay.
“Eu falo pra ele [Brown] ‘porra, caralho’, é errinho besta, soltar a música um segundo antes ou depois, soltar a música mais baixa ou errar na passagem. O ouvido dele é foda, ele ouve tudo, sabe tudo o que acontece no palco. É um jogo, é só ali. Depois passa. Seria deselegante se falasse tudo o que o Brown é”, diz, sorrindo KL Jay. “Como acredito muito nas coisas espirituais, sinto que nós quatro já estivemos juntos há 500 anos e voltamos a nos encontrar agora, nessa vida. Somos quatro diferentes, que vieram de realidades diferentes e se encontraram tendo em comum uma causa, a música. Eu acredito nisso.”
Dono hoje de uma coleção de seis mil discos de vinil, KL Jay decidiu virar DJ quando, nos anos 1980, viu o norte-americano Easy Lee, DJ do rapper Kool Moe Dee, fazer scratches com “Você Mentiu”, de Tim Maia, durante show no Club House.
“Fiquei deslumbrado. Achava que só podia fazer scratch em disco importado e ele me mostrou que não. Ali, eu decidi o que iria ser a vida toda. Meu eu superior decidiu: serei isso, ganhando dinheiro ou não, subirei no palco para ver as pessoas ficarem assim ‘ohhhhhh’”, relembra KL Jay, à época office-boy e responsável por arrumar uma vaga na mesma empresa para Brown como forma de firmar vínculo com a face sul do Racionais – antes de serem um quarteto, eles eram duas duplas: Brown e Ice Blue, KL Jay e Edi Rock.
KL Jay é um apaixonado. Cada vez que pensa numa música ou artista entra em êxtase. Pergunto sobre seus discos essenciais, aqueles que levaria para uma ilha deserta. Na lista entram Off the Wall (Michael Jackson),What You’re Gonna Do for Me (Chaka Khan) e Tábua de Esmeralda (Jorge Ben), além de obras de Djavan e Notorious B.I.G.
Entre os DJs, além de seu ídolo, Easy Lee, ele recomenda escutar Jazzy Jeff, Cash Money, Kool Herk (conhecido como pai do hip-hop), Grandmaster Flash, Craze, Baboo, Eric Jay, RM, DJ Hum, Grandmaster Ney, Marky, Patife e King. “E ter a mente aberta para a música. A evolução de um DJ está nos detalhes”, diz Kleber, que desde 1997 promove o campeonato de DJs Quartz Riscos e Batidas, antes chamado Hip Hop DJ. Ele dá a letra: é importante surpreender quando se assume as pick-ups, chegar antes para sentir o público, levar suas próprias agulhas, feltro e fone e não beber antes de discotecar.
Quando dá som nas baladas, porém, ele não esquece quem é ou de onde veio. Em julho deste ano, quando tocava em uma festa de bacanas no Rio de Janeiro, disse ao microfone algumas palavras sobre o aniversariante Nelson Mandela. “Ouvi um cara falar ‘Cala a boca aí e toca!’. Eu olhei para ele e disse: ‘Cala a boca, não. Aqui em cima quem manda sou eu. Entendeu?’. Ele abaixou a cabeça. Eu não sou um palhaço. Sou um artista”, conta. “Humildade não tem nada a ver com abaixar a cabeça e deixar as pessoas falarem o que quiserem com você.”
Na virada do milênio, ele era a principal voz do hip-hop na TV, com o programa Yo! MTV Raps. “Eu escolhia 90% dos clipes e ia para as festas no Brasil inteiro, divulgava tudo. Foi importante para fortalecer o rap.” Saiu por não aceitar a redução de tempo do programa imposta pela direção da MTV.
E também para o movimento negro. Ficou na mente de muitos manos a edição especial do programa para o Dia da Consciência Negra. “Hip-hop é como Palmares. É um movimento contracultural de libertação da mente, contra a cultura europeia racista que ainda impera no Brasil”, discursou um jovem KL Jay nas imagens que ainda hoje podem ser encontradas no YouTube.
Mais de uma década depois, o pensamento é o mesmo. “O jovem branco da periferia também é vítima, mas, se embaçar de verdade, embaça para o preto.”
Na sequência do Yo! veio o lançamento da mixtape Na Batida Vol. III (2001), com 21 faixas de rap nacional remixadas. Em 2008, foi a vez do CD e DVD Rotação 33 Fita Mixada, com 26 raps “mexidos”.
De KL Jay pode-se dizer também que é muito família – inclusive quando o assunto é o Racionais. Do time de 16 artistas e produtores que formam a “Família Racionais”, três são Lelis Simões: KL Jay e seus irmãos Ajamu, também DJ e seu braço direito nas picapes durante os shows, e Jeferson Jomo, linha de frente da produção dos shows e um engajado na questão dos negros no Brasil. “O Racionais ajudou a formar muitas pessoas ideologicamente, principalmente os jovens das periferias do Brasil inteiro. Há mais de 20 anos eles são os porta-vozes de uma nação de excluídos”, acredita Jomo.
Com mais de duas décadas e meia de caminhada na música, o DJ, que é vegetariano e bastante espiritualizado, diz sentir-se mais motivado do que nunca – com a disposição de um jovem e o aprendizado de um velho. “Aprendi a perdoar, a me desculpar, a ser menos arrogante e menos pretensioso. Pessoas pisaram em mim e me ensinaram que não posso falar de qualquer jeito com qualquer um. O Racionais me ensinou isso. Desde que comecei no Racionais, eu sou mais bonito, jovem, educado, inteligente, leve e espiritualizado. Agora é que está começando para mim. Agora é que está bom. Me sinto forte.”
Leia perfis dos outros integrantes do Racionais MC's nos textos relacionados abaixo.