Na Amazônia brasileira, as áreas mais devastadas também são aquelas onde mais inocentes são assassinados
Em 24 de maio, um paradoxo amazônico chocou a opinião pública. Enquanto a Câmara dos Deputados preparava-se para votar uma nova legislação para a agricultura no Brasil - o Código Florestal, bastante criticado por incitar a devastação na Amazônia e conceder anistia aos desmatadores -, um casal de ambientalistas, que vivia da extração de castanhas, era assassinado dentro do assentamento onde vivia, no Pará. Quando a notícia foi lida na Plenária da Câmara, pelo deputado Sarney Filho (PV), a bancada ruralista - que pleiteava a votação imediata do novo código - viu o anúncio da morte como uma afronta. José Cláudio Ribeiro da Silva e a esposa, Maria do Espírito Santo, foram mortos por pistoleiros que chegaram a cortar um pedaço da orelha direita de José Cláudio para provar o serviço, pago, segundo suspeitas, por um fazendeiro e, talvez, em consórcio de madeireiros. Indignados com a denúncia, que consideraram inoportuna, alguns deputados vaiaram Sarney Filho. José Cláudio, por sinal, dizia que era ameaçado de morte por madeireiros. Ele também era contrário ao Código Florestal.
Dias depois, o trabalhador rural Erivelton Pereira dos Santos, que vivia no mesmo assentamento - Praia Alta Piranheira, em Nova Ipixuna - também foi assassinado. No dia seguinte, em Rondônia, no outro extremo da Amazônia, Adelino Ramos, líder camponês que havia sobrevivido ao massacre de Corumbiara, de 1995, foi morto diante da família. Mais dois assassinatos ocorreriam no Pará nas semanas seguintes.
Sequências de mortes no campo não são novidade na Amazônia. Em 2005, logo após a morte da irmã Dorothy Stang, o trabalhador Daniel Soares da Costa Filho também foi morto em Parauapebas - a polícia descartou ligação entre os crimes. Atualmente, a mídia comprova que, nas últimas décadas, os crimes foram marcados por impunidade: dados recentes apontam que houve um condenado para cada 17 indiciados, em um total de 98% de impunidade nas mortes. Junto da constatação, o governo e a Comissão Pastoral da Terra começaram a discutir uma "lista da morte": os nomes dos principais líderes camponeses que estariam marcados para morrer. "Sou o número 25", me revelou Odair Borari, que vive na aldeia Novo Lugar (PA), e cujo drama foi retratado na matéria "Medo e Tensão no Oeste" (out. 2010), publicada na Rolling Stone.
Os lugares mais violentos da Amazônia são os que estão localizados no "arco do desmatamento": a fronteira de expansão econômica, que traz migrantes, extração de riquezas florestais e falta de organização das instituições do Estado. Onde ocorre mais desmatamento é, também, onde mais pessoas são assassinadas.
"O Código protege quem desmata. E as áreas onde a floresta está sendo desmatada são as mais violentas", diz Márcio Astrini, do Greenpeace. Apesar de ser cauteloso ao não fazer ligação direta entre o Código e os assassinatos, ele é objetivo em conectar as formas de pressão na floresta com a violência: "José Cláudio e Maria denunciavam a extração ilegal de madeiras e carvoeiros, e haviam denunciado fazendeiros pecuaristas. Os fazendeiros possuíam fazendas desmatadas ilegalmente, e que podem ser anistiadas pelo novo Código. Com a aprovação, as denúncias deles podem se tornar inócuas".
Em maio, o desmatamento aumentou em 72% na Amazônia, segundo levantamento por satélite realizado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). "A expectativa de aprovação do Código Florestal, e da anistia que ele irá trazer, fez com que muitos produtores rurais passassem a desmatar", analisa Adalberto Veríssimo, pesquisador sênior do Imazon.
"Esses indivíduos, que acreditam serem representantes de um 'setor produtivo', único responsável pelo 'desenvolvimento' da região, possuem uma crença arraigada na própria legitimidade", acredita o antropólogo Roberto Araújo, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). "O Código, as novas leis ambientais, bem como a adoção de mosaicos de áreas protegidas como forma de gestão territorial pelo Estado brasileiro, têm sido percebidos por esses grupos como uma interferência inadmissível em searas que até então eles eram os únicos a cultivar: um ataque à hegemonia política e econômica de que desfrutavam incontestes."
"O que está em jogo é a autonomia política dos grandes detentores de terras", Araújo finaliza. "Os principais parlamentares envolvidos na modificação do Código são proprietários de terras que incorreram em pesadas multas dos órgãos ambientais."
Independentemente da aprovação ou rejeição do Código Florestal pelo Senado, o dia 24 de maio ficará marcado como aquele em que o Congresso optou por ignorar a violência a que estão submetidos trabalhadores rurais e pessoas ameaçadas de morte para agir de acordo com a vontade dos grandes detentores de terra que enxergam, na mesma floresta e nas pessoas que estão diante dela, um empecilho ao desenvolvimento.