Direito do Fronte
Piadista e assertivo, o ex-comunista Ricardo Boechat acumula 45 anos de jornalismo mantendo a firmeza do discurso, mas sem jamais perder o carisma
Edgardo Martolio
Publicado em 12/02/2015, às 15h21 - Atualizado em 13/02/2015, às 16h55Ricardo Boechat sempre dormiu pouco. Acumular cinco horas de sono em uma única noite é considerado, para ele, um excesso. “Fico animado, vendo filme oriental, de samurai, coisas assim”, conta o jornalista, um dos mais ácidos e confiáveis da televisão brasileira, sobre as madrugadas insones. Ele também se diz viciado em trabalho: lê quatro jornais por dia – “que eu manuseio para formar um panorama das coisas” –, exceto aos fins de semana, quando fica com apenas um.
À frente do Jornal da Band, no canal de TV Bandeirantes, e também apresentador da rádio BandNews FM, Boechat mostra com frequência o lado crítico ao comentar o noticiário diário em ambas as mídias. Mas não é apenas a seriedade que faz dele um âncora difícil de ignorar: o carisma do argentino, nascido em Buenos Aires e criado em Niterói (Rio de Janeiro), também ajudou a transformá-lo em uma personalidade para além dos programas que apresenta. Das histórias sobre o antigo carro modelo Twingo que costumava conduzir por São Paulo às memórias a respeito de quando ainda não ostentava a lustrosa careca (“Você tem que ver aquele cabelo, era uma coisa horrorosa”, ele brinca), Boechat é um locutor eloquente e instigante.
Filho de Dalton, diplomata tão brasileiro quanto esquerdista, e dona Mercedes, uma aguerrida portenha, ele herdou os dons de ambos: do pai, a dialética professoral, e da mãe o tom firme do discurso. O pai, que na época do golpe militar de 1964 trabalhava na Petrobras e também como professor, foi preso diversas vezes durante o regime. Depois de um período de reclusão do progenitor, em 1966, Boechat, aos 14 anos, acabou compelido a se juntar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), enquanto dona Mercedes cuidava dele e de mais seis filhos, incluindo gêmeos recém-nascidos. “Vivíamos até então em uma democracia, meu pai tinha a militância dele. A consciência política passou a fazer parte de mim”, ele relembra. “Você tinha a opção do quê? Foi um choque de informação compulsória.”
Esse cenário fez de Boechat um menino diferente da maioria de seus vizinhos, com mais livros bolcheviques do que vinis de Elvis Presley nas estantes do quarto, menos festas do que encontros políticos. Karl Marx era um nome mais familiar para ele do que Jimi Hendrix e, diferente do que acontecia com seus colegas da mesma faixa etária, Che Guevara era um personagem mais notório do que Janis Joplin. Nesses anos de chumbo, a morte de Carlos Marighella o comoveria muito
mais do que o decesso de Jim Morrison; na geografia de seu mapa-múndi revolucionário, “la Sierra Maestra” cubana tinha mais representatividade do que Woodstock. O comportamento peculiar e um tanto rebelde do garoto – responsável por encorajá-lo a abandonar a escola antes de completar o antigo 2o grau, por exemplo – forjou uma personalidade idealista que, com o tempo, o levaria à posição de âncora televisivo.
Boechat faz questão de lembrar que, à época da prisão mais longa do pai, por pouco não perdeu os estudos, algo que não aconteceu graças à diretora do Centro Educacional de Niterói, chamada Mirtes. Foi ela quem se negou a tirar de suas salas de aula os filhos de presos políticos. “Você vai relendo as passagens da sua vida, reambientando os personagens – e essa mulher é emblemática”, conta Boechat. “Alguns alunos da escola eram filhos de pessoas de esquerda e, quando veio o golpe, a elite sobrevivente, que era de direita e que também tinha os filhos na escola, passou a exigir que os alunos que não tinham recurso para pagar a mensalidade fossem excluídos. Dona Mirtes não só se recusou, como deu bolsa para todo mundo: éramos três irmãos nesse mesmo colégio. Naquele tempo, isso exigia muita coragem.” O quase sempre bem-humorado jornalista parece, agora, emocionado.
Durante a adolescência, nos anos 1960, Ricardo Boechat viu nascer entre os amigos as experimentações com as drogas (“Basicamente te maconha, cocaína era uma raridade; também tinha anfetaminas e alguns líquidos inaláveis, essas besteiras”). Ele conta que não via apelo nas substâncias – a droga de Boechat era o comunismo. “Eu adorava falar, sempre fui muito verborrágico, então enveredei na direção da militância política dentro do ‘partidão’”, conta sobre a entrada para o PCB. Ele não tem pudor, no entanto, de afirmar que nem tudo era política. “Sim, a gente ia às manifestações também porque se comentava que as únicas garotas que davam eram as comunistas. Só que na verdade o Partido Comunista sempre foi muito careta”, relembra.
“A meninada que estava mais liberada em todo esse aspecto era de alguns outros partidos, como o Liberdade e Luta, o Convergência Socialista. Todas elas eram muito intelectualizadas, liberadas sexualmente, mas viam os comunistas como uns atrasados.”
Também naqueles tempos, Boechat foi seduzido pela efervescência musical dos Beatles e da Invasão Britânica, mas, como outros jovens de esquerda, se viu impulsionado a acreditar que embarcar na onda do sucesso estrangeiro era caminhar de mãos dadas com um “complô” de alienação cultural, de “imperialismo ianque”. Ainda que sem querer, começou a apreciar o Fab Four; apaixonou- se pela Jovem Guarda e “não perdia Roberto Carlos”. Curioso: o atraía justamente o cantor mais romântico do movimento, o menos politizado.
Depois, vieram outros gostos. Jethro Tull e o disco Thick as a Brick (1972), por exemplo, dividido em duas faixas homônimas, com partes I e II. “Eu faço ginástica, e é engraçado. Essas músicas do ‘Zé Tutu’ [ele brinca com o nome da banda] têm, juntas, 43 minutos, então a minha esteira dura 43 minutos. Todos os dias eu ouço as mesmas duas músicas. Todos os dias”, frisa. Esse é um dos exemplos que caracterizam o lado fiel de Boechat, que ele mesmo ressalta. Nesse momento da trajetória dele, sai um pouco do comunismo; Boechat começa a atender a outros prazeres corriqueiros e naturais. Mas ele explica que “da vida, eu acho que o comunismo não sai”. “Sai como regra, sai o dogma – o comunismo tem quase tantos dogmas quanto a Igreja Católica –, mas não sai como fonte de algumas referências de vida”, afirma.
O que mudou de fato os caminhos de Boechat foi o trabalho. A carreira começou no extinto jornal Diário de Notícias, aos 17 anos, seguindo a dica do pai de um ex-colega de colégio. À época, Boechat já tinha parado de estudar e havia batido à porta da família para vender livros, ofício que era, então, exercido pelos pais (“Meu pai se tornou o maior vendedor da Enciclopédia Barsa no Brasil”, conta). Depois de um ano e meio no Diário, Boechat se viu trabalhando ao lado do inventor do colunismo social carioca, Ibrahim Sued. “Ele era um jornalista selvagem, um animal selvagem. Ibrahim era um mau patrão e, ao modo dele, um
magnífico professor: utilizava como instrumento pedagógico o porrete, no tempo em que chefes davam esporro em jovens na redação e isso não era visto como bullying, assédio nem nada parecido.” Foram 14 anos ao lado de Sued; durante os nove primeiros, Boechat não tirou férias por medo de ser demitido. Ainda assim, ele conta que há duas pessoas por quem tem “uma gratidão filha da puta na vida, a dona Mirtes e o Ibrahim”. Quando tinha 33 anos, Boechat deixou o mentor e partiu para o jornal O Globo.
Ricardo Boechat zomba de si mesmo mostrando as orelhas, dizendo que são grandes porque, no começo da carreira, trabalhava ao mesmo tempo com quatro telefones na mesa – chegava a atender três deles simultaneamente. “Eu sempre digo que a minha orelha é assim porque eu lutei jiu-jitsu, mas é mentira: é do telefone, não lutei bosta nenhuma, se entro numa briga eu apanho pra caramba”, ele ri. Eram mais de 50 ligações diárias, que resultavam em longas jornadas de trabalho. “O jornalismo é isso, trabalha-se muito; dez horas é banal.”
Em meio às – literalmente – centenas de processos judiciais que já enfrentou e uma ou outra ameaça comprometendo sua integridade física (“Confesso que eu nem penso sobre isso”, afirma), Boechat prefere focar no lado bom da profissão que escolheu – as horas diárias no ar no rádio e na TV. A aproximação do público é, segundo ele, o “grande presente” que recebeu da vida. “Me dá um enorme prazer, um enorme orgulho, uma pessoa me abordar e dizer que ouviu algo que eu falei”, afirma. “Significa que estão me escutando, não estão apenas me vendo.”
A popularidade está refletida em uma situação curiosa: o velho carro Twingo que Boechat dirigia, e que mencionou muitas vezes no ar na última década, acabou se transformando em celebridade automobilística. “Você tem que ver no que resultou”, diverte-se. “Mas um belo dia o Twingo falou ‘chega’, começou a ficar cansado. É uma relação, confesso aqui, amorosa, mas como muitas relações amorosas, chegou ao final. E aproveito para esclarecer que eu nunca fiz propaganda. Eu o citava porque era meu carro e tinha uma história de dez anos.” O filósofo e ensaísta Luiz Felipe Pondé foi um dos colegas de Boechat que presenciaram o sofrimento do carrinho: depois de aceitar uma carona, acabou sendo “largado” no meio de uma rua paulistana, quando o veículo parou de funcionar e o âncora resolveu recorrer a um motoboy para chegar a tempo a um compromisso na Band.
Andar na garupa de motos é, aliás, hábito para Boechat. A primeira vez foi quando, saindo do Aeroporto de Congonhas, pegou um engarrafamento que o impediria de chegar no horário à Band. O jornalista parou o carro em uma rua próxima ao aeroporto. “Fiquei fazendo sinal para os motoboys, até que finalmente parou um. Eu disse: ‘Meu irmão, tem 100 pratas aqui pra me levar pro Morumbi’. O cara falou que só tinha um capacete, ao que eu respondi: ‘Bom, se tivesse dois, eu te daria só 50’ [risos]. A partir daí, passei a usar moto com frequência, só que agora são dois ou três motociclistas conhecidos que me levam.”
A conversa segue com Boechat contando que a mãe, dona Mercedes, de 83 anos, continua morando em Niterói, orgulhosa do filho que aparece na TV (o pai, Dalton, morreu em 1979). Ele emenda a lembrança da admiração pelo Flamengo, agora um tanto apagada, porque começou “a ficar enjoado a partir da gestão da Patrícia Amorim”. Boechat nunca foi de ir ao estádio, mas gosta de acompanhar as transmissões. “Até reprise eu vejo. Se a Veruska [atual esposa dele] não mandar mudar de canal, eu fico vendo jogo antigo, gosto do esporte.” Garante que, vivendo em São Paulo, virou Portuguesa.
Veruska também é jornalista. “Eu confesso que não sei por que ela se casou comigo, pois eu já tinha quatro filhos e 20 anos a mais do que ela”, diz. A primogênita entre os seis filhos do âncora está com 36 anos, enquanto a mais nova tem 6. Nenhum dos rebentos herdou, até o momento, o caminho profissional do pai, embora tenham existido tentativas. “A Paula [terceira filha dele] fez jornalismo na PUC do Rio, mas quando chegou ao último semestre me disse: ‘Pai, é o seguinte, eu não vou seguir essa profissão. Isso aí não leva a lugar nenhum, é um sacrifício doido e não se ganha nada’. Eu disse que concordava com tudo, mas que ela poderia ter dito isso no primeiro semestre. Porra, três anos de mensalidade!”, exclama. A filha acabou se tornando advogada. Apesar de não lidar muito bem com crianças e ainda não ter netos, Boechat afirma que gosta de ter a filharada por perto ainda que seja difícil juntar todo mundo por causa da rotina. O jornalista também quer explicar por que sublinha tanto o fato de ser ateu quando está no ar na BandNews. “Não gosto que as pessoas discutam religião, bater na opção religiosa é uma bobagem, você tem a sua, eu tenho a minha e segue a vida”, declara. “Como as pessoas aqui [no Brasil] fazem questão de colocar a discussão religiosa em primeiro plano para debater aborto, divórcio, casamento gay, pum no elevador, eu fico dizendo que sou ateu. Porque é um perigo. Os evangélicos ficam chateados achando que há um preconceito meu nisso. E não é uma questão de ter preconceito: a questão é que os evangélicos se organizam como grupos políticos a partir de sua identidade religiosa comum e querem constituir forças político- eleitorais para a ocupação do Estado. Por isso eu enfatizo essa questão do ateísmo, que para mim é irrelevante.”
Seria por ter essa visão que Boechat recusou uma proposta da TV Record no ano passado, uma semana antes do início da Copa do Mundo, segundo o colunista paulista Flávio Ricco? “Não, eu não recusei trabalhar na Record por razão religiosa, eu não sou um cruzado nem um anticruzado. Simplesmente estou muito bem no Grupo Bandeirantes”, afirma, sem deixar de lado a veia piadista. “Naqueles dias, atacando outro boato, eu não deixei de trabalhar porque estava negociando com eles: não trabalhei na Band porque fiz uma cirurgia de hemorroidas. Se você tem um infarto, todo mundo se solidariza: se tiver que fazer um transplante, as pessoas acompanham, perguntam se foi tudo bem. Agora, se a operação for de hemorroidas, você tem que cair na clandestinidade, como se o cu não fizesse parte da anatomia humana. Nesse mesmo período eu tinha feito uma crítica a alguém e acharam que eu tinha sido afastado por causa dessa crítica; não, eu fui afastado por causa da minha bunda.” Se a saúde – ou a bunda – não interferir, Boechat segue firme com contrato na Band até 2018.
Mais que notícia
Há dez anos a opinião se tornou o cerne do trabalho de Boechat
Ricardo Boechat é conhecido hoje como formador e emissor de opiniões, mas durante boa parte da carreira foi impedido de colocar seu próprio olhar nos veículos em que trabalhou. “Eu acho ótimo que o ‘Turco’ [como Ibrahim Sued era conhecido] não tenha me permitido dar opinião ou que tenha me chamado atenção para o fato de que o que eu tinha que fazer ali era arrumar notícia”, diz Boechat. “Isso me deu uma ferramenta muito mais útil ao longo de 45 anos de profissão, mais útil do que a opinião: a opinião está levando comida para a minha casa há cerca de dez anos; a notícia levou durante os outros 35.” Boechat só começou a centralizar seu trabalho na divulgação de suas próprias considerações quando foi contratado pela BandNews FM
Passado Platinado
Antes de sair do jornal O Globo, em 2001, Boechat já tinha tido rusgas com Roberto Marinho
É conhecida nos bastidores do jornalismo a história de que Roberto Marinho chegou a querer a demissão de Ricardo Boechat do jornal O Globo, no início dos anos 1990, e que a saída só não se concretizou naquele momento por insistência de um dos filhos de Marinho, João Roberto, e do diretor do veículo, Evandro de Andrade. “Sim, houve duas ou três ocasiões em que as coisas ficaram esquisitas; uma delas foi quando eu publiquei uma foto de um costureiro argentino que morava no Rio, o Frank Mackey, daquela dupla Frank e Amaury, dando um abraço meio gravata na Rosane Collor”, revela o jornalista. “Ela saiu com uma saia daquelas que costumava usar, meio ‘Barbiezinha’, deitada num abraço. Era o início do governo Collor, e o presidente chiou por causa da foto, algum idiota da assessoria de imprensa dele reclamou que não ficava bem a primeira-dama em uma situação dessas. Sobrou pra mim.” João Roberto e Andrade precisaram negociar com Roberto Marinho por sete horas, das 11h às 18h, para conseguir dissuadi-lo da ideia de demitir Boechat. Como o próprio âncora conta, essa não foi a única situação de rusga entre ele e o chefão das corporações Globo. “Um dia eu publiquei um negócio de fraude no Exército, e desde o golpe de 1964 ninguém tinha tido a ousadia de denunciar o Exército por corrupção”, ele conta. “Essa matéria denunciou e provou.
O Roberto Marinho ficou puto, porque achou que não era justo fazer isso com as Forças Armadas, embora o processo do regime já estivesse mais aberto. Ele ficou puto porque tinha uns documentos da Marinha que mostravam que a informação estava correta. Quase que deu merda, mas como o peso da reportagem era muito bom, muito grande, o Evandro e o João, que sempre atuaram em defesa do jornalismo mesmo, acalmaram o velho.” A saída da empresa só ocorreu anos mais tarde, em 2001, em uma situação não menos polêmica. Durante as disputas pelo controle de companhias telefônicas no Brasil, o telefone do jornalista foi grampeado; a revista Veja revelou uma conversa de Boechat com o colega de profissão Paulo Marinho,que trabalhava para o Jornal do Brasil – veículo que tinha como principal acionista o empresário Nelson Tanure, aliado da TIM, que estava na briga pelo controle da Telemig Celular e da Tele Norte Celular. O caso se tornou um escândalo; Boechat foi demitido e pouco depois acabou sendo contratado pelo Jornal do Brasil. “O Nelson Tanure já tinha me convidado, quando eu ainda estava no Globo, para ser editorchefe do JB”, garante Boechat. “Na época, eu recusei, mas contei o que estava acontecendo ao Globo, tanto que o João Roberto me chamou e disse que eu não deveria sair, que eu era cria do jornal. Assim, quando eu fui demitido, imediatamente o Nelson me ligou e me ofereceu o cargo de colunista.” Boechat não nega que muitas vezes leu para pessoas de fora dos jornais onde trabalhava textos ainda não veiculados – segundo ele, por diversos motivos, como checar dados ou gerar maior repercussão, por exemplo. Também não oculta que suas principais fontes nunca foram os mocinhos. “Bicheiros, por exemplo, eram grandes fontes minhas”, afirma. “Eu falava o tempo todo com alguns deles e sempre tinha nota boa. Mocinho não tem nada para entregar que dê nota atrativa.”