Há uma década, Rodolfo Abrantes trocou o papel de líder de uma das maiores bandas de rock do Brasil pelo Evangelho. Hoje, decreta sem olhar para trás: “O vocalista dos Raimundos morreu aos 27 anos”
No último mês de maio, em um pequeno palco sob uma tenda em uma rua residencial da cidade de Araucária, Paraná, Rodolfo Abrantes era o convidado especial do aniversário da Igreja Bola de Neve local. Enquanto o Raimundos, sua ex-banda, se apresentavam para cerca de 45 mil pessoas a 30 quilômetros dali, em Curitiba, Rodolfo se postava diante de aproximadamente 200 pessoas, em uma estrutura semelhante à de uma festa junina, com lona colorida e espetinhos de carne à venda para o público. Rodolfo tocou até quando a chuva permitiu – depois, a água acabou desligando os equipamentos. Antes disso, botou para pular algumas dezenas de adolescentes sem medo da chuva, com “Minha Maior Riqueza”, do álbum Santidade ao Senhor (2006), e “Saudade de Casa”, de Enquanto É Dia (2007).
“O Rodolfo dos Raimundos morreu aos 27 anos”, decreta ele próprio, quando o encontro pela terceira vez em um mês, agora em São Paulo, sete dias após a morte de Amy Winehouse. Relembrando como o vi na outra ocasião, se apresentando em um palco simples no interior paranaense, aquela sentença faz todo sentido. Embora as roupas deste até coubessem naquele dos anos 90 – jaqueta preta de náilon, blusa de flanela xadrez, calça jeans e botas –, ali, sob frio e chuva, cantando sobre o que Deus fez em sua vida, fica evidente que o Rodolfo do Raimundos não existe mais. Então, quem é esse homem com físico de atleta, tatuagem forrando os braços e subindo pelo pescoço, guitarra pendurada quase na altura dos joelhos, que canta versos como “Só Jesus faz meu dia melhor/ Tu és o motivo de me sentir cada vez mais vivo/ Te chamo de pai, tu és tudo o que eu preciso/ Rei eterno e meu Deus vivo”?
Rodolfo Abrantes é hoje um missionário. Aos 39 anos, é membro da Igreja Bola de Neve em Balneário Camboriú (SC), onde mora. Cita trechos da Bíblia com a facilidade de um teólogo veterano. Passa os finais de semana na estrada, acompanhado por sua banda atual e, na maioria das vezes, pela esposa, Alexandra, com quem está casado há dez anos. Desde então, tem o rock como um veículo para falar de Jesus. Durante a semana, pega onda e, sempre que precisa, realiza voluntariamente os cultos das quartas-feiras na igreja local. Para sua fase “zen-cristã-surfista”, a cidade do litoral catarinense é o cenário ideal. Seu sustento vem das vendas de CDs, cachês das apresentações e contribuições voluntárias das igrejas onde toca.
Encontro Rodolfo pela segunda vez em um sábado, 2 de julho, descarregando os próprios equipamentos em uma entrada lateral da Bola de Neve, em Curitiba. Ao seu lado, estão o baixista Victor Pradella, de longos dreadlocks, o baterista Anderson Kuehne “Xexéu” (“meus melhores amigos”, ele diria mais tarde) e um cinegrafista que registrou três dias na vida do ex-Raimundos para um programa de TV. Rodolfo e a banda são os convidados do aniversário de cinco anos do motoclube da igreja, com foco em ação social e na evangelização de seus pares.
Enquanto a igreja enche lá fora, Rodolfo relaxa jogando videogame no backstage. Victor, Xexéu e um amigo de Rodolfo, vindo de Camboriú, se revezam em partidas de Pro Evolution Soccer. Quando Rodolfo assume o joystick, os amigos se preparam para rir. Xexéu alerta: “Ele costuma ficar nervoso quando joga”. Com a seleção brasileira da Copa do Mundo de 2006, o vocalista enfrenta a Argentina. “O Gilberto Silva é uma velha”, solta, enquanto vê o meio-campo argentino botar na roda o brasileiro. A Argentina faz 1 a 0 e Victor e Xexéu gargalham. Mesmo com a derrota, a tensão se vai assim que o jogo acaba – depois do show, Rodolfo retoma o game e, enfim, vence os rivais. Antes de subirem ao palco, os três se juntam para uma última oração.
No show, Rodolfo intercala as músicas com mensagens rápidas à audiência: “Que a altura da nossa alegria seja proporcional à autenticidade da nossa adoração”. Ao sentir o clima favorável, após um tempo cantando o verso “Deus, vem derramar tua vida em mim”, ele olha para Victor e diz, duas vezes: “É agora”. Ali, se desfaz da guitarra e inicia a pregação, na qual repassa a sua história e aponta para os céus.
Nascido em 20 de setembro de 1972, no Distrito Federal, Rodolfo Gonçalves Leite de Abrantes cresceu em uma cidade cuja identidade ainda estava em formação. Filho de médicos paraibanos que migraram para a capital do país a fim de concluírem os estudos, ele estava fora do padrão: não tinha pais políticos ou diplomatas. O orgulho de ser brasiliense veio com a geração roqueira local, que ele viu nascer a algumas quadras da sua casa (em frente à do amigo guitarrista Digão), em um bar chamado Gilbertinho. Dali até o Raimundos, foi um pulo.
“Tudo o que sabiam de mim era ‘Rodolfo dos Raimundos’. E aquela coisa louca... parecia que eu era aquilo. Só que eu não era aquilo, eu tinha me tornado aquilo”, ele diz. “Fiquei muito diferente do que eu estava, não do que eu era. Porque aquele dos Raimundos não era o que eu era, mas o que eu estava.” Sentado no confortável sofá do backstage, ele se esforça para se explicar. “Deus foi me transformando; ele transforma a gente de dentro para fora. Então, hoje sou diferente do que eu estava, mas não estou diferente do que eu era.” A saída de Rodolfo do posto de frontman do Raimundos se deu uns cinco meses após sua entrada para a igreja, em 2001. E a tempestade de críticas deixou-o de guarda armada em um primeiro momento. “[À época] eu não dava entrevista, eu fazia a minha defesa. Eu estava num tribunal sendo acusado de ter traído o rock”, ele lembra, emendando uma pergunta com uma resposta. “Meu, eu não posso fazer o que eu quiser da minha vida? Não, pelo jeito não."
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Articulado, Rodolfo fala sempre com aspecto pensativo, buscando uma linha de raciocínio que explique sua decisão, sustentado por suas próprias experiências – a restauração de um relacionamento em frangalhos, o abandono das drogas, a cura repentina de uma doença misteriosa e o desejo de agradecer eternamente a quem o curou. Sem rancor por quem o chamou de “louco” quando deixou uma das mais bem-sucedidas bandas de rock do país para se dedicar ao estudo da Bíblia, ele diz entender cada paulada recebida pela mudança. “Foi uma opção minha”, Rodolfo afirma, fazendo uma pausa dramática. “E tudo tem seu preço. Ouvi bastante e ainda ouço até hoje. Mas independentemente do que dizem pra você, a maneira como você reage é o que determina o quanto isso te afeta.” Incomodado com as críticas que recebeu, Rodolfo só sentia a necessidade de se explicar. “Ficava muito ofendido, queria me defender, me justificar. E quanto mais eu explicava, menos as pessoas entendiam.” Um dia, decidiu desencanar. “Parece que Deus eleva o meu pensamento: ‘Filho, olha mais de cima, tem um porquê esse barulho todo’. Parece que ele me permitiu chegar ao ponto mais alto da minha carreira pra, quando todo mundo pudesse me ver, me sacudir, começar a trabalhar em mim. Esse ato de Deus na minha vida despertou a atenção das pessoas pra Ele. De uma forma ou de outra, as pessoas pelo menos pararam para pensar a respeito. E isso já é positivo.” Uma busca pelo assunto na internet dá a temperatura da confusão que o ato causou nas cabeças dos fãs do Raimundos. “A internet é um lugar excelente para covarde se manifestar”, diz Rodolfo, ressaltando que nunca houve abordagem agressiva, cara a cara. Hoje, após dez anos sem se desviar do caminho que escolheu, ele tem certeza de que seu encontro com Deus não foi mera piração de uma cabeça fritada pelas drogas. “Permanecer [na fé] faz com que as pessoas tenham até mais respeito quando vêm falar algo, porque pensam: ‘Não é fogo de palha. Não é mais um artista que se converteu e saiu pelado em revista’.” Lá se vão dez anos de um outro Rodolfo. Nem falsas notícias sobre a possível volta ao Raimundos o incomodam. O boato mais recente surgiu na mesma semana em que ele se apresentou em Araucária, na mesma noite em que a ex-banda tocou em Curitiba. “Pelo menos duas vezes por ano me voltam pros Raimundos”, ele afirma, se referindo aos rumores como um desrespeito aos ex-colegas de grupo. “Se o cara é fã dos Raimundos, fã mesmo, respeita a banda como ela está.” Mas não foi sempre assim, calmo, que Rodolfo lidou com o tema. Se hoje ri das histórias, há cerca de dois anos quis dizer o que pensa. Ele afirma que havia até empresários envolvidos “falando de valores muito altos e... cara, eu não voltaria por valor algum. Não porque eu tenha algum problema com a banda. Amo os caras, não tenho problema com isso. É simplesmente uma postura da minha vida. Meu caminho é este, minha vida é falar de Jesus”.
A última vez em que Rodolfo esteve com os antigos parceiros de Raimundos foi em 2007, no velório do pai, em Brasília. O guitarrista, Digão, o baterista, Fred, e o baixista, Canisso, apareceram para oferecer os ombros ao amigo. Desde então não se falaram mais. “O Canisso tocou comigo no Rodox um tempo. A gente sempre se deu muito bem. Não que não me desse bem com os outros, mas parece que o Digão e o Fred ficaram muito magoados”, Rodolfo lembra. O tempo, ele acredita, trará cura a eventuais resquícios de problemas, deixando claro que, de sua parte, nunca houve mágoas. “Saí por minha causa, não por causa deles. Quando falo que não gosto do meu passado, não gosto de quem eu era.”
E aquele Rodolfo quem era? Segundo o próprio, um insatisfeito. Não havia quantidade de drogas ou sexo suficientes para torná-lo pleno. A maconha, diz, dava as coordenadas. “Acordava, fumava um. Antes de comer, fumava um. Depois de comer, fumava um. Se eu não tivesse nada pra fazer, fumava um. Se eu tivesse algo pra fazer, fumava um antes e um depois e, se pudesse, fumava um durante também.” Além da erva, usou também ácido, ecstasy e cocaína. “Mas meu negócio mesmo era o bagulho. E uma cervejinha.”
Rodolfo não credita o fato de ter deixado a banda à conversão à igreja, embora assuma que uma coisa esteja ligada a outra. “O que melhor explica a minha saída da banda é o fato de eu ter me tornado uma pessoa muito diferente da que estava naquela banda. Eu não cabia mais ali.” A fala moderada, calculada, desarma quem esperava um religioso pronto para o revide.
Esparramado no sofá, boné do Flamengo na cabeça, falando pacientemente enquanto o volume da passagem de som invade a sala, Rodolfo faz questão de afirmar que pautou suas escolhas pela coerência. “Se tem uma coisa que eu não mudei até hoje é o fato de que eu canto o que vivo. A doideira que eu cantava nos Raimundos era a doideira que eu vivia. Então, não tinha mais a cara de pau de cantar um negócio em que eu não acreditava, que eu não vivia [mais]. E aí, sim, entra o mérito de... por eu ter me entregado a Cristo. Porque eu comecei a viver uma vida nova, e ele começou a me transformar em quem eu deveria ser desde o princípio.”
Quem ele deveria ser desde o princípio, segundo o próprio Rodolfo, começou a ser forjado quando encontrou Alexandra, sua esposa. Em 1994, o Raimundos abriu a turnê Acid Chaos, que colocou Ramones e Sepultura para rodar o país. Ali, ele conheceu uma menina de 15 anos, professora de inglês em Balneário Camboriú, contratada pela produção para ser intérprete dos pais do punk. Realizando o sonho da adolescência, Rodolfo, então com 22, investiu em Alexandra por três dias e tudo o que conseguiu, além de um beijo, foi um número de telefone. “Com essa eu caso”, disse na época. “Era a mulher da minha vida”, ele afirma hoje. A promessa virou realidade. No início da década de 2000, já namorados, ela deixou Camboriú para morarem juntos em São Paulo. Mas as coisas saíram do prumo e as brigas eram diárias. Com a situação insuportável, Alexandra, que é filha de evangélicos, procurou uma pastora de quem, anos antes, havia ganhado uma Bíblia. A corrente de contatos a levou a uma igreja pentecostal na periferia da cidade e a um grupo de senhoras da igreja, daquelas de coques na cabeça e saias bem abaixo dos joelhos, que foram convidadas a orar na casa dos Abrantes.
Rodolfo conseguiu escapar das primeiras duas reuniões, mas não da terceira: em uma segunda-feira, deu de cara com as mulheres na porta do apartamento. As coisas começaram a mudar ali. A cura de uma doença estomacal e um chute nas drogas alguns meses depois deram início à nova fase.
Em pregação recente em uma igreja de Curitiba, Rodolfo relembrou um fato especial da época: após uma oração feita por uma das senhoras, caroços que cresciam em partes diferentes de seu corpo desapareceram. Foi a mesma pastora que havia dado a Bíblia a Alexandra quem lhe disse, enquanto orava com as mãos sobre ele: “Jesus está te livrando de um câncer”.
Em São Paulo, dias depois, reencontro Rodolfo no intervalo de um congresso realizado em uma igreja instalada onde antes havia a casa de shows Olympia – lugar no qual, muitos anos atrás, Rodolfo se apresentara frente ao Raimundos. Ele sugere uma lanchonete em uma loja de um supermercado, a duas quadras da sede da Bola de Neve, para retomar a conversa iniciada em Curitiba. Um casal o reconhece, mas não o aborda. Com um gorro enterrado na cabeça e a barba por fazer, como um coiote mexicano da fronteira com os Estados Unidos, Rodolfo já havia tomado lugar em uma das mesas.
Ele conta que, no dia 4 de fevereiro de 2001, fumou maconha pela última vez. Enquanto tragava, dizia para o cigarro: “Você é o último”. Tinha 27 anos. Depois daquele, jura nunca mais ter usado nada. O Rodolfo dos Raimundos morreu ali. “Quando eu parei de fumar maconha, aos 27... olha, que nem a Amy Winehouse!”, ele surpreende-se, comentando sobre a cantora recém-falecida: “É como se eu a conhecesse, porque eu vivi aquilo”.
Os primeiros a serem avisados da decisão de Rodolfo foram os pais, por telefone. O pai atendeu, a mãe correu para a extensão, como sempre fazia. Primeiro, avisou que estava noivo. Mas havia mais a ser dito: “Não uso mais droga”, conta, com os olhos marejados. E ele lembra do silêncio no telefone, antes do grito do pai: “‘E você usava, rapaz?’ Na hora, pensei: ‘Pô, eu só canto sobre isso, você já me buscou na delegacia duas vezes’”. Da mãe, ouviu os soluços pela extensão.
O rockstar deu lugar ao adulto família. E hoje se mostra um entusiasta convicto do casamento: “O Rodolfo casado é muito mais feliz do que o solteiro”, diz. A presença de um cinegrafista de televisão, a entrevista para a Rolling Stone e o convite para participar do programa Altas Horas, tudo em um prazo de três dias, são para Rodolfo um sinal de que é hora de dar um passo além. “A gente tem orado para Deus abrir cada vez mais portas para o ambiente fora da igreja, brother”, crê. Um álbum com inéditas, produzido por Ricardo Vidal, deve ser lançado em 2012. Sobre o novo desafio musical, ele diz querer encarar sem fazer concessões. “É um negócio de levar o que a gente está vivendo dentro da igreja para fora, sacou? Sem maquiagem.”
Para Rodolfo, o objetivo é mostrar o que Deus fez na vida dele e o que ele entende ser factível na vida de muitos. Nem que isso signifique enfrentar dificuldades, como a que encarou em uma cidade no interior da Bahia, em 2009. Convidado para realizar uma espécie de culto ao ar livre, ele estava com o pé imobilizado por uma contusão e se posicionou em uma praça vazia, no clima banquinho e violão. Naquela hora, o país assistia à final da Copa das Confederações entre Brasil e Estados Unidos. À distância, punks xingavam Rodolfo – “Só ouvia os palavrões de longe” – e cerca de dez evangélicos, fiéis ao pastor da igreja, acompanhavam o evento. “Apareceu um rasta com um baseado deste tamanho e começou a soprar a fumaça na minha cara. O palco era baixinho, e eu estava sentado”, ele conta. “Há algum propósito nisso?”, foi a pergunta que fez a si mesmo. Naquela hora, pregou e, segundo lembra, “um cara entregou a vida dele para Jesus”. Quando decidiu orar para encerrar a programação, fogos espocaram no céu: o Brasil acabara de virar a partida. “A galera ficou louca nos apartamentos em volta, uma gritaria.” Rodolfo entende o ocorrido como parte dos planos de Deus. “Jesus queria estar ali, mas então estava eu, e era daquele jeito que tinha de ser”, resume. “Experimentei grandes palcos, grandes festivais, e nada me fez tão feliz quanto o momento em que estava ali, de olhos fechados, adorando Ele.”
Rodolfo não escuta os antigos trabalhos de sua ex-banda, tampouco procura vídeos na internet para refletir sobre o passado. Quando esbarra com a sua imagem de dez, 15 anos atrás, macaqueando pendurado em um microfone, enxertando sotaque nordestino cheio de más intenções na emulação de punk e hardcore feita pelo Raimundos, não se reconhece. É como se, em seu lugar, sempre tivesse havido outro. São as mesmas características, mas outras pulsações.
“Cara, é algo muito estranho”, ele pensa, sorrindo. “É o mesmo nariz, algumas tattoos são as mesmas, mas eu não consigo me lembrar do que eu pensava. Tento imaginar o que me levou a falar aquilo.” É como se de fato aquele Rodolfo fosse outro, tal qual previsto na passagem bíblica registrada no segundo livro de Coríntios, capítulo 5, versículo 17: “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas velhas já passaram e tudo se fez novo”. “É outra vida, brother”, ele decreta, calmamente. “Eu não consigo entender aquele cara.”