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Do Céu ao Inferno

Na única Copa do Mundo de que participou, o Haiti foi noticía: o exame antidoping de um dos jogadores do time deu positivo. Como forma de punição, o cruel ditador Baby Doc prendeu e torturou o atleta. Tudo por causa de um remédio contra asma

Edgardo Martolio Publicado em 07/04/2014, às 04h07 - Atualizado às 04h09

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Ernst Jean-Joseph nasceu em 1948, em Cap Haitien, segunda maior cidade do Haiti, onde os meninos que não vão ao mar para pescar barracudas e moreias ficam na rua, mendigando ou jogando bola com meias recheadas de trapos e papéis. Jean-Joseph era um desses últimos que, durante o dia todo, brincava de craque na Praça da Catedral. Negro na pele e ruivo no cabelo, já criança tinha o suficiente para se destacar entre os colegas, também negros como 95% da população local. Começou a carreira na Associação Desportiva Capoise antes de se transferir para um dos grandes times da capital do Haiti, Porto Príncipe, o AC Violette, em 1969.

Com seu 1,85 metro, Jean-Joseph destacou-se como defensor, especialmente nas bolas aéreas. Convocado para a seleção nacional, disputou as eliminatórias da Concacaf em busca de uma vaga na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha Federal. O Haiti eliminou Porto Rico na primeira fase e, no hexagonal decisivo, foi campeão com apenas uma derrota, deixando para trás México, Trinidad & Tobago, Honduras, Guatemala e as Antilhas Holandesas. J-J participou de quase todos os jogos e garantiu a vaga no time titular e no Mundial.

Em 1974, o Haiti viveu seu maior momento de glória esportiva, realizando um sonho pouco provável para um dos países mais necessitados do planeta – hoje está no topo da lista dos mais pobres, segundo o ranking do Banco Mundial. Mas, mesmo com dificuldades, o time treinado por Antoine Tassy tinha boas qualidades. Houve um escândalo prévio que não se podia ignorar e que demonstra quanto a ditadura governamental desejava que a seleção viajasse para a Copa. Foi no jogo em Porto Príncipe diante do principal adversário daquelas eliminatórias, Trinidad & Tobago. O Haiti venceu por 2 a 1, mas o adversário foi visivelmente roubado pelo juiz salvadorenho José Roberto Henríquez, que invalidou cinco gols dos visitantes. Conta a lenda que Henríquez não foi comprado, mas “apenas” ameaçado de morte pelo ditador do Haiti, Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier. Tanto o juiz quanto o assistente canadense James Higuet foram suspensos pela Fifa, que não modificou nem o placar, nem a classificação haitiana.

De qualquer maneira, aquele era o momento do Haiti, e o país estava em festa. Jean-Joseph ficou mais feliz do que muitos, porque após o sorteio dos grupos da Copa percebeu que iria enfrentar a temida seleção da Itália meros três dias após seu aniversário de 26 anos. Em seguida, o Haiti enfrentaria a Polônia mais empolgante de todos os tempos, do artilheiro Lato, e, por último, a promissora Argentina, do centroavante estreante Mario Kempes.

Antes de partirem, os jogadores do Haiti foram recebidos na residência presidencial oficial, o Palais National, por Baby Doc, o ditador que dois anos antes havia sucedido seu falecido pai, Papa Doc, também tirano, mas que havia sido eleito democraticamente. O presidente encorajou a delegação, ressaltando a oportunidade única que eles tinham de colocar o Haiti, pelo menos uma vez na vida, no mapa das coisas boas: “Desejo que o mundo saiba que meu país também é vencedor”, declarou na ocasião, colocando pressão nos jogadores e buscando sua glória pessoal.

Mas, o ditador também se referiu a Joe Gaetjens, o haitiano mais famoso no mundo do futebol até então: foi ele que, em Belo Horizonte, anotou o gol com o qual os Estados Unidos derrotaram a Inglaterra no Mundial de 1950, naquela que ficou conhecida como a maior zebra da história das Copas. Mas a menção não foi feita apenas para exaltar as virtudes do celebrado atleta haitiano. Gaetjens, nascido em uma família influente – era neto do emissário haitiano de Federico Guillermo III, rei da Prússia – e utilizando-se de sua fama, sempre se manifestou contra o poder vitalício de Papa Doc. Acabou pagando por isso: um dia, desapareceu misteriosamente em uma investigação policial de rotina. Sabe-se que foi morto pelos Tonton Macoutes (a força parapolicial do presidente), mas seu corpo jamais foi encontrado.

Baby Doc, então mais jovem presidente de qualquer país no mundo moderno (tinha 23 anos), queria se firmar no poder com todas as ferramentas possíveis. Sabia que não era um governante querido nem acumulava méritos para estar onde estava, então o futebol poderia servir a seus fins. Jean-Joseph estava confiante, sabia que estava bem preparado e, como bom católico (assim como 80% da população haitiana), tinha fé que a insistente asma que o acompanhava não atrapalharia seu desempenho (de qualquer maneira, levou medicação própria na bagagem). Na partida de estreia contra a Itália, em 15 de junho de 1974, em Munique, o esforçado zagueiro foi escalado para o time titular.

Já no início da partida, o time caribenho percebeu que a Itália não estava em seu melhor dia. Era o jogo de abertura do grupo 4 da Copa 74, e as 53 mil pessoas presentes no Olympiastadion, em Munique, aplaudiam cada manobra dos haitianos. Logo no início do segundo período, o artilheiro Emmanuel Sanon surpreendeu a zaga italiana, marcando um gol inesperado, que quebrou a invencibilidade de 1.143 minutos de Dino Zoff, mais famoso goleiro da Europa naquele tempo. Como a maioria do público era italiana, os aplausos cessaram e a Itália reagiu. Seis minutos mais tarde, Rivera empatou; em seguida, Benetti virou o jogo, e a 11 minutos do final, Anastassi fechou o placar: 3 a 1 para a Itália. Debaixo de aplausos, o time do Haiti deixou o campo, derrotado, mas de maneira digna. Após a partida, Jean-Joseph não foi para os vestiários – ele foi o jogador sorteado entre os colegas de time para o exame antidoping. Aquela era a primeira Copa em que tais exames seriam realizados.

Naquele momento, o zagueiro haitiano não se preocupou com a medicação para asma que havia tomado na noite anterior. Para Jean-Joseph, não existia qualquer relação entre drogas “ruins” e drogas medicinais. Após entregar às autoridades da Fifa um recipiente cheio de urina, retornou rápido ao vestiário para se trocar e jantar com os companheiros: aquela não seria uma ceia qualquer para os jogadores, pois haviam estreado com elogios em uma Copa do Mundo contra a sempre poderosa Itália. Mal sabiam que também não haveria outro jantar feliz naquele mesmo Mundial e, por muito tempo, para Ernest Jean-Joseph.

O resultado da análise da urina de Jean-Joseph deu positivo para efedrina. Era o primeiro caso de doping em uma Copa (até porque não existia tal controle anteriormente). Jornalistas dos cinco continentes cercaram o hotel onde se concentrava a delegação haitiana, e a informação percorreu o mundo. Mas ninguém se sentiu mais afetado pela notícia do que o presidente Baby Doc. Sem tomar uma atitude em relação à seleção haitiana, a Fifa se limitou a expulsar Jean-Joseph do torneio. Muitos pensaram que a benevolência da entidade aliviaria a situação do jogador – mal sabiam que ele fora retirado do hotel por dois seguranças enviados por Baby Doc, que no próprio carro, a caminho do Aeroporto de München-Riem, o espancaram de maneira selvagem. “Quero que chegue ao Haiti vivo, mas desfigurado, irreconhecível”, teria dito o covarde ditador.

Para Baby Doc, pouco importou a atuação em campo do zagueiro, nem as desculpas que ele deu ao próprio comitê organizador da Copa, de que aquela substância proibida estava no remédio para a asma que havia ingerido na noite anterior, como sempre costumava fazer. Com o resultado positivo, o presidente se sentiu traído: para ele, o Haiti seria visto como um país de drogados, e não como uma nação de atletas bem formados. Baby Doc tomou o desagradável momento como questão pessoal e enxergou Jean-Joseph como o destruidor da imagem internacional do Haiti.

Os jornalistas esportivos enviados à Copa investigaram a história e publicaram que o jogador havia sido sequestrado da concentração. Algumas reportagens anteciparam o que aconteceria com Jean-Joseph ao voltar ao país. Setenta e duas horas após o jogo, o zagueiro estava em Porto Príncipe, pronto para ser julgado – melhor dizendo, não foi um julgamento, mas uma execração. Tratado como um criminoso de guerra, ele foi acusado de “ter desonrado o país e, principalmente, seu líder”. Torturado antes, durante e depois do processo, foi condenado a dois anos de prisão em um campo de concentração, nas piores condições imagináveis. As felicitações que o atleta recebeu de Baby Doc após boas performances anteriores ao Mundial foram esquecidas por todos, inclusive pelos carcereiros, que não deixaram de maltratá-lo um único dia.

Para muitos observadores da política haitiana, a pena imposta a Jean-Joseph por Baby Doc foi branda se comparada ao que faria Papa Doc: quase todos concordam que o mítico tirano teria mandado matar o jogador. François “Papa Doc” Duvalier, médico de profissão, foi eleito democraticamente em 1957 e governou o Haiti por 14 anos, até morrer em 1971. Uma parada cardíaca quase o matou em 1959; ao voltar ao governo, deu início a uma política de corrupção e violência paranoica poucas vezes vista na história recente. Em 1964, já como líder de um regime absolutista, formou um culto que o considerava uma “divindade haitiana” e se autodeclarou “presidente por toda a vida”. Após a saída de Baby Doc do poder, em 1986, o corpo de Papa Doc foi desenterrado e espancado. Ainda hoje, a figura dele desperta ódio entre os haitianos.

Após dois anos de cárcere e sofrimento, Ernest Jean-Joseph recuperou a liberdade pela boa conduta exibida no campo de concentração. Ele jamais deixou de pensar que, ainda que inocente em pensamento, havia cometido um erro e prejudicado Baby Doc. Sempre quis se redimir e, para isso, retornou ao futebol. Reincorporou-se ao Violette, recuperou o nível atlético e voltou a ser convocado para a seleção nas eliminatórias para a Copa de 1978. Em Porto Príncipe, dizia-se que fora liberado somente para defender o Haiti, uma vez que o país não tinha outro zagueiro tão habilidoso. Participou de sete jogos eliminatórios e ajudou o time a chegar muito perto da classificação, ficando de fora apenas da derrota ante o México – justamente a partida que marcou a eliminação do Haiti. Se tivesse vencido, o país iria disputar seu segundo Mundial, e Ernest Jean-Joseph teria sua revanche.

Anos mais tarde, Jean Joseph experimentou certa redenção. Foi contratado por um clube da Liga Norte-Americana de Futebol, o Sting, de Chicago, o qual defendeu em nove partidas. Retornou para o Haiti e voltou a jogar no Violette, onde encerrou a carreira como técnico. Mas antes, teve a chance de disputar mais um jogo pela seleção do país, pelas eliminatórias da Copa de 1982: em 12 de setembro de 1980, ele se despediu com uma vitória de 1 a 0 sobre as Antilhas Holandesas. Hoje, aos 65 anos, está aposentado e sem muita vontade de recordar aquele episódio sombrio. Em 1999, em visita ao Haiti, tentei encontrá-lo pessoalmente, mas ninguém soube me informar de seu paradeiro. Só fui informado de que a asma dele havia piorado.