Há um ano, o maestro Laércio de Freitas ancora à casa de João Donato - vista para a Baía da Guanabara, costas para o Morro da Urca, quase colada à cobertura de Roberto Carlos - e se acomoda na poltrona da sala de ensaios.
O móvel não é ordinário, nota-se pelo nome: Shiatsu Massaging Cushing. Donato, compositor de "A Paz", o trouxe de Denver (Colorado), em 2001, em seu colo, ao fim da temporada de shows no Vartan's Jazz Club. Acionado por controle remoto e ligado à tomada, funciona por estímulo de vibrações eletromagnéticas.
Produto fino e, pelo preço, uma bagatela. Por US$ 199 (por volta de R$ 350), as oscilações reproduzem técnicas da massagem japonesa surgida nos estertores da era Meijim, em 1800. Sem o saber, os fabricantes da HoMedics Inc. não apenas adequaram medicina oriental à traquitana: a tecnologia passou ao estado de arte pela maestria de João Donato de Oliveira Neto - um dos maiores da música popular brasileira -, que fez samba brotar do aparelho e, por tanto, nem cobrou royalties.
Só para relaxar, Laércio senta-se na poltrona que - fora a musicalidade reinante - virou atração residencial à parte. Como gueixa eletrônica, massageia braços, pernas, cabeça, tronco, o corpo inteiro, até os dedos dos pés e mãos. Pode-se escolher a velocidade: low, high ou speed.
Quem tem o privilégio de visitar Donato e passar um fim de semana conhecendo de perto sua vida e trabalho, sempre ensaia um relax na shiatsu machine, o carinhoso apelido doméstico do aparelho.
Das incontáveis combinações de vibrações disponíveis, o maestro Laércio - respeitado arranjador e pai da atriz e cantora Thalma de Freitas - cismou com uma "vibração melódica" em especial. Freitas escuta música nas minúcias, "ouvido de tuberculoso", e selecionou sua opção de massagem: primeiramente, pelo som; a seguir, pela terapia. O timbre da shiatsu machine é vagamente próximo ao das baterias eletrônicas setentistas - datado e bacana como as texturas de Giorgio Moroder, o mago italiano dos sintetizadores. Para Donato, o "som da poltrona" é o de menos - "O que importa é a sugestão rítmica", parodia.
A massoterapia de Laércio foi breve. Alarmado com o compasso musical da sessão que escolhera, ergue-se sobressaltado e anuncia: "Esta poltrona tem música!". E, entusiasmado com a descoberta auditiva, passa a reproduzir, no meio da sala de estar, a "batida". Ao piano Goldmann, Donato e Laércio a repetiram e testaram. O resultado foi uma base instrumental primitiva.
A cantora Vini Kjaergaard Iuel, dinamarquesa arrebatada pelo universo musical de Donato, estava no Rio e foi visitá-lo. Exausta de um longo vôo, sentou no musical assento, enquanto o via ensaiar com o guitarrista Ricardo Silveira.
Medita, afundada em tranqüilidade: "Massagem ao som de Donato? Isso é perto do paraíso..." Nesse dia, ela também foi agraciada com um insight shiás-tico: escolheu sua modalidade e saiu espontaneamente a cantarolar o ritmo da massagem. Ao piano, Donato - mais um "ouvido de tuberculoso" - pede que repita as notas. A vocalização se encaixa na base instrumental criada meses antes por Laércio e Donato. Enquanto tornava a cantar, ela lembra, ele harmonizava a melodia ao piano: "Não adianta, se derem uma máquina de escrever para o Donato, alguma melodia vai sair dali".
A rapsódia donatiana tem raízes na Selva Amazônica. Em Rio Branco, no Acre, veio ao mundo em 17 de agosto de 1934, perto do meio-dia. Seu pai, João Donato, era major da Aeronáutica e foi o primeiro piloto de aviação acreano. Chegou a sofrer nove acidentes aéreos em sua carreira militar, mas teve morte natural em casa, ao lado da família.
Sem nunca ter freqüentado a escola, Donato desde 7 anos compunha. Nos anos 40, em Rio Branco, a irmã mais velha, Eneyda, acordava o menino ao som dos estudos do método de piano Hannon. Rapazote, passou a praticar o Hannon sem encarar a regularidade e a disciplina cobrados pelo virtuoso método. Em estações esparsas da vida, a irmã vasculha na lembrança, Donato estudou com professores no Rio de Janeiro: "Absolutamente dispensável. Ele era indisciplinado. Dezenas de cadernos mostram um autodidata no sentido exato - na sanfona ou no piano, no trombone e noutros instrumentos. O que mais se vê nas suas anotações são estudos de Debussy e Ravel", revela.
Você lê esta matéria na íntegra na edição 21 da Rolling Stone Brasil, junho/2008