Quais são as principais heranças dos movimentos que levaram os brasileiros às ruas e tiraram o país da letargia
O tempo sofre uma dobra quando uma bomba de gás lacrimogêneo é lançada. Por longos segundos, você contempla a fumaça, temendo a explosão iminente. Demora a entender que a explosão já aconteceu e, agora, encontra-se envolvido em uma nuvem. É durante essa estupefação que o corpo se rebela contra si mesmo. Ali, é fácil compreender o que significa o “efeito moral”: nada mais desmoralizante do que sentir o próprio controle sendo delegado aos caprichos do gás. O ritmo dos engasgos, engulhos e da apneia se assemelham ao metrônomo de uma marcha para o fim da existência. É inexplicável de onde vem a consciência de levar o pano embebido em vinagre ao rosto, assim como é a sensação de onipotência que invade quando se percebe o corpo retomando as rédeas. No primeiro fôlego, a sensação é a de que qualquer artifício de repressão do sistema não passa de cortina de fumaça. O maior inimigo, nesse instante, é a próxima respiração. Com ela, vem uma calma definitiva. E, assim que a guarda é baixada, a simples satisfação de estar vivo pode se converter em tédio. E o tédio em comodismo.
A alegoria da bomba de gás ilustra perfeitamente os acontecimentos que assolaram o mês de junho brasileiro. Envoltos em uma fumaça de bonança, nossos profundos problemas sociais não pareciam suficientes para despertar do torpor o cidadão médio. Na linha de frente – e longe da atenção da grande mídia –, os movimentos sociais organizados nunca deixaram de contestar o modelo desenvolvimentista. Mas eles estão longe de contar com a adesão da maioria. Esses militantes nunca precisaram “acordar”, porque eram mantidos insones por megaeventos esportivos, a especulação imobiliária, a negligência a direitos fundamentais, e assim sucessivamente.
Foram necessários os R$ 0,20 paulistanos para que os cidadãos comuns se contorcessem em um engasgo, que trouxe à tona mais do que o inconformismo com o preço do transporte público e só encontrou alívio nas ruas. Depois do mal-estar causado pela repressão e da reação atônita de imprensa e governantes, a primeira inspiração dos manifestantes celebrou uma vitória inédita no Brasil: a revogação do aumento nas tarifas do transporte em várias cidades do país.
Reunidos no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, torcedores que acabavam de comemorar a vitória do Brasil sobre o México pela Copa das Confederações, no dia 19 de junho, permaneceram vidrados nos telões para assistir ao pronunciamento do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad. E vibraram como nos gols da seleção quando foi anunciada a queda do reajuste. Os protestos e comemorações, aliás, não foram exclusividade de São Paulo. A maioria das capitais e inúmeras cidades do interior registraram manifestações. Segundo pesquisa do Ibope, 6% de todos os brasileiros saíram às ruas.
Veio, então, o momento de tomar novo fôlego. E, com ele, uma torrente de dilemas. Qual legado essa primavera em pleno outono deixaria para a história brasileira? Quanto valiam, afinal, esses R$ 0,20? Qual é o significado dessa ocupação maciça das ruas? Por quanto tempo – e por quais motivos – ela duraria?
O dia seguinte à vitória, 20 de junho, só veio trazer mais indagações. Reanimado pela conquista, o Movimento Passe Livre (MPL) pôde recomeçar a jornada por um objetivo maior, a tarifa zero, poeticamente traduzida no slogan “por uma vida sem catracas”. No entanto, enquanto saltavam na Avenida Paulista, aos gritos de “Quem não pula quer tarifa”, os militantes do MPL se viram lado a lado com todo o tipo de bandeira. Partidos políticos tradicionais, movimentos sociais históricos, nacionalistas, pessoas antipartido, antipetistas, antipolítica... Demandas mais específicas, como contra a PEC 37 (esta bem mais complexa do que a opinião pública compreendeu e já derrubada pelo Congresso) e a “cura gay”, conviviam com causas mais vagas – contra a corrupção, contra a impunidade, pela paz.
Os ânimos se acirraram quando um grupo de manifestantes de caras pintadas de verde e amarelo, carregando bandeiras do Brasil, enfurecidos contra o partido da presidente Dilma Rousseff, passaram a provocar outro grupo. Havia bandeiras do PT, mas a maioria ali fazia parte de movimentos sociais históricos, como os de luta pela moradia. Não fez muita diferença para aqueles novos “caras-pintadas” – muitos deles usando as ruas como palco de protestos pela primeira vez –, que acabaram por expulsar os militantes, velhos de guerra das manifestações públicas, sob brados de “sem partido, sem partido” e “ô-por-tunistas, ô-por-tunistas”. Perplexa, uma jovem universitária observava a cena, tentando se fazer ouvir: “Gente, sem partido não há democracia!”
Mais tarde, com a avenida já esvaziada, um rapaz e uma garota, também universitários, estavam deitados em pleno asfalto. Entre risadas descompromissadas, dizendo estar lá após ter feito uma prova difícil na faculdade, ele afirmava: “Eu vou ficar aqui porque meus pais também pagaram por essa avenida”. Ao ouvir a declaração, três meninas, mais jovens, se postaram de pé atrás da dupla, empunhando cartazes de cartolina com inscrições em vermelho: “Protestar contra tudo é o mesmo que protestar contra nada”.
A desocupação da Paulista, naquele dia de comemoração da vitória, já seguia em clima de féretro. Aos poucos, grupos mais organizados apareciam para se reencontrar com a rua. O movimento negro vinha encabeçado por um carrinho de supermercado, de onde uma caixa de som reverberava versos do rapper Sabotage: “Respeito é pra quem tem”. Mais adiante, as bandeiras rubro-negras e os rostos mascarados à moda dos zapatistas anunciavam a chegada dos manifestantes anarquistas. Empertigados, gritavam: “Vocês entenderam mal! Isso aqui não é Carnaval”. Quando passaram a atacar o hino e a bandeira nacionais, foram interpelados por outro grupo mais exaltado de caras-pintadas. Depois de repetirem, a plenos pulmões, o tradicional canto das arquibancadas de estádios – “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” –, conseguiram afugentar os anarquistas. Satisfeitos, comemoraram, proferindo um bordão adaptado: “O povo, unido, não precisa de partido!”
No encontro da Paulista com a Avenida Consolação, próximo aos vendedores de milho cozido e maçãs do amor, um senhor bastante idoso caminhava, convicto e sozinho, segurando uma placa de madeira com os dizeres: “Contra tudo”. “Mas, senhor... Contra tudo?”
[Silêncio].
“Contra depoimento também?”
“Contra depoimento também.”
Em um encontro de avaliação das manifestações, na USP (SP), o jornalista Renato Rovai definiu: “As ruas deixaram de ser propriedade da esquerda”. De fato, o caleidoscópio de bandeiras que ocupou o país no dia seguinte à vitória do MPL comprovava que o espaço público passou a ser reivindicado por todas as filiações ideológicas.
Muitos chamaram esse fenômeno de “sequestro da pauta”. Outros o celebraram pela oportunidade de politização de grupos até então desconectados da política. Essa diversidade de correntes tomando as ruas – e de visões sobre aquelas que as tomaram – já é, em si, uma conquista do movimento. É a partir da conflagração de debates que surgirão os próximos caminhos dos protestos. Consequentemente, quanto mais forças estiverem em jogo, mais sólidos serão esses caminhos. Mesmo assim, o discurso que o filósofo Slavoj Zizek fez aos militantes do movimento Occupy Wall Street em 2011 parece se adequar à situação no Brasil: “Assim como bebemos café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura, eles tentarão fazer deste um protesto moralista inofensivo”.
É correto afirmar que a grande quantidade de energia potencial acumulada para essa nova etapa da militância e da democracia no Brasil se deve à iniciativa do Movimento Passe Livre. Esse é o primeiro e mais importante legado dessas nossas jornadas de junho. Desqualificado no início dos protestos pela alegada irrealidade da tarifa zero, o MPL soube se manter coerente durante os altos e baixos do processo. E agora, com justiça, passou a ser reconhecido como o grande pivô da mobilização nacional.
Assim como o “gigante” não acordou agora, o MPL não é algo novo. Há mais de dez anos o grupo milita na causa do aumento dos subsídios aos transportes e redução das tarifas, tratando o transporte público como direito fundamental. Se os movimentos que surgiram agora ainda precisam encontrar uma personalidade – se é que perdurarão –, o do Passe Livre já encontrou a dele há tempos.
Da mesma forma, os métodos de ação do MPL não são inéditos. Os integrantes são egressos dos movimentos antiglobalização dos fins da década de 1990 e início de 2000, quando ativistas voltaram palavras de ordem contra os grandes símbolos do capitalismo: o FMI, a OMC, o G8 e os blocos de livre-comércio. Na época, durante as cúpulas desses órgãos, eram realizados os chamados dias de ação global, em que os militantes altermundistas, como também eram chamados, ocupavam as ruas em protestos. Na Ação Global dos Povos, como ficou batizada a coalizão de organizações antiglobalização espalhadas pelo mundo, estavam as sementes do que vimos nas ruas brasileiras: o caráter horizontal e apartidário dos atos, com a internet aparecendo como forma de mobilização e troca de informações alternativas à mídia tradicional.
O MPL surgiu em Florianópolis (SC) a partir desses princípios – muito próximos daqueles que norteavam os zapatistas (bem antes), e os Occupy norte-americanos, os Indignados da Espanha e os árabes da Primavera Árabe (mais tarde). Mas o que diferencia o MPL dessas experiências internacionais foi o caráter das demandas. “Occupy e Indignados pecaram, pois apontaram indignação, sem oferecer reivindicação concreta. Criaram uma cultura ativista, mas não obtiveram muito resultado”, avalia Pablo Ortellado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, acrescentando que o caso do MPL é oposto. “Apesar de ligado a uma demanda difícil, a tarifa zero, o movimento tinha um objetivo exequível, o da revogação do aumento de R$ 0,20”, diz. “Essa experiência resolveu um dilema que estava posto desde maio de 1968, sem solução. É claro que os fenômenos têm causas e contextos diferentes, mas, se cada um tivesse seus ‘20 centavos’, poderia ter tido mais resultados. É quase um modelo de como resolver uma demanda popular.”
Desde a vitória contra o reajuste em várias cidades brasileiras, os legados dessa fórmula virtuosa vão se multiplicando. Além do passo atrás quanto aos R$ 0,20, os governantes paulistas já desistiram de reajustar pedágios, aumentaram o bolsa-aluguel para aqueles que esperam a construção de casas populares e cancelaram as novas licitações para contratação de empresas de ônibus na capital. Além disso, houve impulso para a instauração de uma CPI dos Transportes, que irá apurar possíveis abusos das concessionárias de ônibus na cidade.
Outra herança inequívoca da “Primavera Brasileira” é o cansaço generalizado com os partidos políticos. Da violência despropositada dos manifestantes mais à direita à crítica sistemática dos grupos à esquerda, os partidos tiveram dias turbulentos ao longo de junho.
“Isso é fruto da crise da democracia representativa. A direita e a esquerda estão perdidas. Ou esse pessoal aprende a fazer política 2.0, participativa, ou vai definhar e se tornar irrelevante”, aponta o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto. Em seu blog, ele situou o dilema partidário no contexto dos protestos: “As manifestações contra as tarifas cresceram porque são legítimas. E aglutinaram gente. Que também protestou pelo direito de protestar. E, com isso, trouxe suas pautas paralelas que atendem a demandas legítimas ou a interesses bizarros. (...) Quanto mais os políticos demorarem para dar uma resposta a essas reivindicações que originaram essas manifestações, mais estarão alimentando algo que ninguém sabe ainda onde pode parar”.
A mídia convencional também atravessou calvário semelhante ao dos partidos. E é da sistemática desconfiança das organizações e indivíduos em relação aos veículos tradicionais que surge outro legado desse inesquecível mês de junho. Enquanto carros da Record eram incendiados e repórteres da Globo achacados (a ponto de terem de esconder o logotipo da emissora dos microfones), blogueiros, tuiteiros e comunicadores independentes navegavam pelos protestos, difundindo notícias em tempo real. A mobilização, que ganhara impulso pelos meios digitais, retornava a eles para conseguir informação de forma mais ágil e sem o ranço dos grandes meios contra movimentos populares. Um dos protagonistas desse fenômeno foi o coletivo Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), formado por repórteres munidos de laptops e smartphones que cobriram os protestos em um formato colaborativo e descentralizado. “O que vai acontecer, não consigo prever”, diz o jornalista Bruno Torturra, coordenador do grupo. “Mas, se tem um saldo positivo nisso, é o estímulo à mídia independente.”
Após ter dado o estopim para a maior mobilização civil da era democrática no Brasil, e de ter saído vitorioso, o MPL retorna à militância original. Volta às periferias que nunca dormiram, à ação junto aos setores institucionalizados da política e aos atos menores, para propagar a busca por uma “vida sem catracas”. O movimento deixa de herança a questão dos R$ 0,20, além de todas as ruas do país para que uma nova geração as ocupe com as causas pelas quais vale a pena lutar. E assim como na obra O Homem Revoltado, de Albert Camus, fica a certeza de que a revolta é bem diferente do ressentimento: “O movimento de revolta é mais que um ato de reivindicação. Já o ressentimento (...) é uma autointoxicação, a secreção nefasta de uma impotência prolongada. A revolta, ao contrário, fratura o ser e o ajuda a transbordar, libera fluxos que, antes estagnados, agora se tornam furiosos. (...) A vontade colora fortemente o ressentimento. Mas neste caso se deseja algo que não se tem, enquanto que o revoltado defende aquilo que ele é. (...) O revoltado não procura conquistar, mas se impor”.