No ano em que se completam oito décadas da instituição do voto feminino no Brasil, a presença de mulheres em cargos políticos ainda deixa a desejar
“Ô abre-alas/ que eu quero passar!” Até hoje ecoa o inesquecível refrão da primeira marchinha a estrear no Carnaval, composta por Chiquinha Gonzaga (1847-1935) em 1889, o ano da Proclamação da República. De caráter simbólico, o hino realmente abriu alas: feminista, abolicionista e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, Chiquinha morreu empunhando o estandarte da batalha pelos direitos autorais dos músicos. Politicamente, ela pôs na rua a comissão de frente para as gerações de mulheres que a sucederam no tempo e na história.
No rastro do legado de Chiquinha, em 24 de fevereiro de 1932, as mulheres conquistaram o direito, até então somente masculino, de exercer a participação política como eleitoras e candidatas. E, um ano depois, escolheu-se por meio do voto a primeira deputada federal brasileira: Carlota Pereira de Queirós. Antes disso, as mulheres eram consideradas “menores de idade”, como os índios – sem direitos mínimos e elementares, como trabalhar fora de casa.
O cenário mudou radicalmente, em 2010, quando Dilma Rousseff tornou-se a primeira mulher presidente do Brasil. Mas nosso universo político continua a dever para o gênero feminino. É recente, na verdade, a “maioridade” da mulher nos meandros da política nacional. O grande marco é de 24 anos atrás, na Assembleia Constituinte, que determinou a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos da mulher. Em 2012, as diferenças ainda gritam. As mulheres, as quais representam mais da metade do eleitorado brasileiro, possuem representações mínimas na Câmara dos Deputados, no Senado e nas assembleias legislativas. Na Esplanada, devido à onipresença de Dilma, esse número é melhor, porém relativo: apenas 26% dos ministérios são administrados por mulheres em áreas importantes.
A seguir, seis convidadas especiais – três deputadas, uma senadora, uma prefeita e uma ministra – discorrem sobre a atual situação da mulher na política brasileira. Embora as opiniões toquem nas mais variadas feridas, todas elas concordam: é preciso, com sensibilidade, dividir o poder com os homens.
GLEISI HOFFMANN
Ministra da Casa Civil
A mulher só conquistou seu direito ao voto em 1932. Menos de 100 anos depois, temos na presidência da República uma mulher e o governo federal composto por um número signifi cativo de mulheres. Considerando o espaço de tempo, podemos dizer que foi um avanço sem precedentes na história.
Do ponto de vista da representatividade da mulher, ainda estamos muito atrás. Somos mais da metade da população, mais da metade do eleitorado e temos sub-representação política. É por isso que buscamos, na reforma política, cota mínima de participação. Uma tentativa de acelerar a equidade de gênero.
Não podemos deixar de lembrar: é claro que, graças à participação da mulher na política brasileira, temas que dizem respeito às crianças, adolescentes, mulheres e idosos foram inseridos na pauta das ações do governo.
Aquela mulher que antigamente se encerrava na esfera doméstica hoje representa um diferencial na política brasileira. As questões que passam pelas mãos das mulheres acabam beneficiando toda a sociedade. Brigamos pelo direito a uma licença-maternidade e conquistamos, a duras penas, uma lei que nos protegesse da violência doméstica.
Até a mulher entrar na política, projetos de creches e de educação infantil não existiam. Hoje, o país oferece mais oportunidades para a mulher trabalhar fora de casa e poder compartilhar os cuidados com os filhos com as escolas e creches.
A mulher é uma figura do consenso, do diálogo. São valores femininos. Não digo que somos melhores nem piores do que os homens. Mas também não somos iguais. Não somos de entrar em disputas, só para brigar. Estabelecemos consensos, ouvimos, partilhamos.
Temos hoje à frente da nação um grande exemplo de uma mulher que faz a diferença. Uma pessoa forte, determinada e comprometida com o desenvolvimento do Brasil. Sabemos que manter o país na rota de crescimento traz inúmeros desafios. E a cada dia vemos as esferas de oportunidades se ampliarem com as ações conduzidas pela presidente Dilma.
Enfim, nós, mulheres, já conquistamos mais espaço e hoje temos voz na vida política. Nosso olhar feminino faz diferença. Diante das grandes conquistas e avanços proporcionados por nós, continuo defendendo a presença feminina no espaço público. Acredito que aumentando a participação da mulher na política brasileira os ganhos para o país serão maiores.
MARA GABRILLI
Deputada Federal (PSDB/SP)
Há 80 anos, ao ser instituído o voto feminino no Código Eleitoral Brasileiro, mulheres do nosso país sentiam, pela primeira vez, o gosto de fazer parte de um regime democrático. Décadas depois, a população feminina brasileira vive um importante momento de nossa história, não só pelo fato de a maior instância do poder do país estar nas mãos de uma gestora, mas por realmente podermos acessar espaços físicos antes não alcançados.
O Plenário da Câmara Federal é um exemplo desta ruptura de conceitos. Foi a partir da eleição de três parlamentares cadeirantes, das quais duas deputadas, que o local tornou-se acessível a qualquer pessoa. Desde o ano passado, todos podem discursar no mesmo espaço, bem como votar – independentemente de suas condições físicas. Como a primeira tetraplégica a usar o sistema de voto que funciona por meio do movimento facial, passei, enfim, a assistir que o meio está se adaptando não só à igualdade de gêneros, mas à diversidade humana.
Essa mudança, esperada há tantas décadas, dá seu passo fundamental na mesma Casa que aprovou a Lei de acessibilidade – legislação que em sua essência busca a igualdade de oportunidades. Hoje, a Frente Parlamentar em Defesa da Pessoa com Deficiência (da qual faço parte e é presidida por uma mulher) briga fervorosamente para incluir a população com deficiência às políticas públicas do governo. E, assim como as mulheres, que por muitos anos tiveram sua capacidade de trabalho subestimada, a Frente está mostrando que veio para somar. O pacote nacional “Viver Sem Limite”, lançado no ano passado pela presidente Dilma para a população com deficiência, é uma prova de que estamos aos poucos transformando o olhar para o que era tratado como minoria.
Hoje, muitas mulheres podem desenvolver seu potencial de gestão pública. Sua capacidade vai muito além de cuidar da casa e da educação dos filhos, extrapola as paredes do lar. Em São Paulo, por exemplo, a maioria das lideranças de bairro é formada por mulheres. Elas não só brigam pela melhoria da vida de sua família, mas de toda a comunidade. Cobram por vagas em escolas, como também estão atentas à verba que o município dispõe à educação. Enquanto era vereadora, recebia muitas mulheres em meu gabinete que reivindicavam acessos, tratamento adequado para o filho, transporte adaptado, medicamentos, igualdade... Elas carregavam consigo virtudes que todo político deveria ter: sensibilidade e forte envolvimento com questões sociais, características que, para muitos homens, exigem um esforço maior para aflorar.
Não quero dizer que não tenhamos homens sensíveis, mas a mulher está um passo à frente quando tem de fazer avaliações com o coração e buscar a força da alma para resolver problemas que podem parecer insolúveis em uma gestão pública. Esse misto de habilidades e emoções mostra que a mulher realmente transpõe barreiras para fazer parte da vida pública. Mas a mulher com deficiência vai além. E por um detalhe que faz toda a diferença: ela carrega duas vezes o fardo e, ao mesmo tempo, o sublime prazer de superar-se, diariamente.
MARTA SUPLICY
Senadora (PT/SP)
O grau de civilização de um povo se mede pelo espaço que a mulher ocupa nessa sociedade. Em 24 de fevereiro, completamos 80 anos de um marco na história da mulher brasileira: a conquista do direito ao voto. É um período de tempo muito pequeno em se tratando de história, principalmente se observarmos que até 1962 éramos equiparadas aos silvícolas e débeis mentais (terminologia da época) no Direito Civil. Esse descalabro está na “esquina”, mas hoje temos uma mulher na presidência.
As conquistas foram muitas, mas as diferenças ainda são enormes. O último Censo do IBGE mostrou o quanto mais do que educação é necessário para a desejada igualdade de gênero acontecer. Temos dois anos de escolaridade a mais que os homens, mas ganhamos 30% a menos. No entanto, somos provedoras em quase 40% dos lares (e em outros 30% somos coprovedoras).
Na política, as diferenças são ainda maiores. As mulheres são 52% do eleitorado, mas as deputadas federais apenas 9% da Câmara, as senadoras 10% e as deputadas estaduais em média têm presença de 12% nas Assembleias Legislativas. A visão desses 50% do eleitorado precisa estar presente. Temos uma lei eleitoral recente que determina a obrigatoriedade de os partidos políticos destinarem 5% do fundo partidário à formação política de mulheres, prevendo punição para o descumprimento da regra. Além de uma lei, da qual tive a honra de ser autora como deputada federal, que determina o preenchimento de 30% das vagas em eleições com candidaturas femininas. Essa última não tem tido grandes efeitos: os partidos, sem punição, não preenchem as vagas. A cultura ainda não mudou suficientemente para os serviços domésticos e a criação de filhos serem divididos. A violência contra mulheres também traz dados alarmantes. A cada 15 segundos, uma mulher é espancada por um homem no Brasil. Há poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal deu um grande avanço para a correta e mais ampla aplicação da Lei Maria da Penha.
Relatos da ONU, do Banco Mundial e do Unicef já mostraram o papel fundamental da mulher para a diminuição dos problemas sociais e da corrupção, sem contar a relação da escolaridade materna com a diminuição do número de filhos e o fato de que filhos de mães analfabetas têm 23 vezes mais chances de serem analfabetos do que os que têm mães com alta escolaridade.
Apesar do ritmo vagaroso e das expectativas ainda frustradas, estamos construindo uma palavra feminina. Estamos inf luenciando o jeito masculino de funcionar. Fico pensando que o novo – no caso, o aumento do poder das mulheres – nunca é compreendido ou assimilado nos primeiros momentos em que aparece. Mas esses novos olhares são muito importantes para a transformação da nossa visão convencional do mundo. São eles que fazem caminhar a nossa espécie.
LUIZA ERUNDINA
Deputada Federal (PSB/SP)
Somente depois de oito décadas, com a instituição do voto feminino no Código Eleitoral Brasileiro, conseguimos eleger a primeira mulher presidente da República. Apesar disso, ainda temos grande déficit da presença feminina nos espaços de poder. Ficamos atrás de muitos países, inclusive do Cone Sul, como Argentina, Uruguai e Paraguai. O Chile, por exemplo, é muito mais representado por mulheres no Parlamento e em cargos públicos de poder, muito superior ao que conquistamos no Brasil.
Mas a desproporcionalidade também é de políticas públicas, no que diz respeito à forma com a qual a mulher é tratada pela sociedade brasileira. No mundo do trabalho, tendo as mesmas funções, ela ainda ganha 30% a menos do que os homens em termos salariais. As mulheres igualmente se ressentem da presença muito pequena no Judiciário e no Executivo – a não ser agora no mandato da Dilma, que realmente ampliou o quorum feminino em seu Ministério.
Se pensarmos, porém, nas assembleias legislativas, governos estaduais e câmaras municipais, a defasagem é enorme. É indicativo de que as mulheres enfrentam restrições também em outros espaços de poder, como nos sindicatos: não temos mulheres nas direções dos sindicatos, mesmo naquelas categorias onde há, pode-se dizer, uma predominância feminina. Nas direções partidárias, então, são pouquíssimas as que ocupam as direções dos partidos políticos.
Toda essa “falta” reflete-se exatamente em uma ausência de resposta aos direitos individuais, aos direitos humanos, aos direitos sociais das mulheres. Direito se conquista com poder. Se a mulher exerce uma participação pequena, ela não decide questões estratégicas do país, a não ser em uma escala muito reduzida. Ainda temos muito a construir para dizer que, de fato, temos uma democracia plena em uma sociedade cuja maioria dos seus habitantes é constituída de mulheres. Uma presença tão pequena que põe em questão a própria democracia do Brasil.
MANUELA D'ÁVILA
Deputada Federal (PCdoB/RS)
A década de 80 é lembrada como a década do rock nacional. Bandas surgiram, efervescendo o cenário artístico brasileiro. Uma delas, o Ultraje a Rigor, cantava algo que, hoje, quase 25 anos depois, faz todo sentido. Quando Roger Moreira dizia “mulher dona de casa, mulher pra presidente”, nem ele, nem quase ninguém no Brasil conseguiria imaginar que teríamos prefeitas, deputadas e senadoras eleitas e influentes. Muito menos que teríamos uma presidente.
Mas, se as mudanças na política não acontecem como na década de 80 (quando o rock nacional tomou de assalto o país), gradualmente vamos conquistando espaços. Há 80 anos as mulheres não podiam votar. E veja que o direito não foi concedido a qualquer mulher. Elas tinham de ser casadas (e ter autorização do marido, claro), viúvas ou solteiras com renda própria! Ainda bem que esse tempo passou e, hoje, já ocupamos cargos importantes do país. Muito para quem, há poucas décadas, sequer pensava em trabalhar fora de casa. Pouco para um país com 52% de eleitoras.
Mesmo com mudanças e voto feminino, o universo político é majoritariamente masculino. Tanto que apenas 9% das vagas do parlamento são ocupadas por mulheres. Nesse quesito, o Brasil tem um dos mais baixos índices do mundo: somos o 110º no ranking de 192 países e, na América Latina, só ganhamos do Haiti e da Colômbia. Aí dizem: temos uma lei de cotas. Mas nunca tivemos uma mulher presidente da Câmara. Aliás, quantas CPIs foram presididas por mulheres? E quantas líderes partidárias são mulheres? Não bastasse ser masculino, esse mundo é, também, machista: quando uma mulher cobra resultados e fala alto, é “histérica”; o homem é “firme”. Dilma é tida como “dura”; homens, “obstinados”. Quando cheguei ao Congresso, fui tratada como “musa”; homens da minha idade eram “jovens promissores”.
Se mulher faz bem para a vista, faz mais ainda para a política. Então, como aceitar uma presidente e apenas 9% de legisladoras? O brasileiro provou não ser um povo machista ao eleger Dilma Rousseff. Não seriam as instituições da sociedade também, ao terem cada vez mais mulheres em cargos de chefias e à frente de negócios?
Você pode achar que é exagero, mas é preciso mudar o sistema. Em países como França, Espanha e Noruega, existe o gabinete paritário. Se não é a solução, pode servir de inspiração para uma boa paráfrase brasileira.
Mulher-mãe, mulher-artista, mulher-empresária, mulher-chefe, mulher-política. Nem tudo é questão de gênero, mas tudo é parte de uma mudança cultural que a sociedade já vive, mas que quem protagoniza a política insiste em manter distante desse universo.
Mulher que se atrasa, mulher que vai na frente; mulher dona de casa, mulher pra presidente.
LUIZIANNE LINS
Prefeita de Fortaleza (PT/CE)
Na última eleição presidencial, o povo brasileiro decidiu algo inédito na história do país: elegeu a primeira mulher presidente do Brasil. As mulheres representam mais da metade da população brasileira e têm maior escolaridade que os homens. No entanto, mesmo tendo uma presidente, a presença da mulher nos espaços de representação política ainda é pequena. Em 2010, foram eleitas 137 deputadas estaduais/distritais e 45 deputadas federais. Ao mesmo tempo, o número de homens eleitos foi de 468 (deputados federais) e 922 (deputados estaduais/distritais).
Dos 5.556 municípios brasileiros, apenas 505 são administrados por mulheres. Nas capitais, só Fortaleza e Natal. Nos 27 estados, incluindo o Distrito Federal, só duas mulheres foram eleitas governadoras. No Senado, mulheres ocupam somente oito das 54 cadeiras. Mas isso é apenas parte de uma problemática complexa.
A exclusão das mulheres dos espaços de decisão e poder na sociedade é histórica. A primeira onda do movimento feminista trouxe, no final do século 19, a luta das mulheres pelos seus direitos políticos. Trouxe o questionamento até hoje presente nas lutas feministas sobre o modelo de divisão da sociedade, que separa e hierarquiza o que é papel de homem e de mulher. Destina os homens à esfera pública, da política, das ciências e economia, e as mulheres à esfera privada, do cuidado, do lar. Infelizmente, essa ideia ainda permeia o imaginário social e a própria realidade.
Daí a importância do movimento feminista, como prática político-pedagógica questionadora, que se contrapõe ao preconceito. Por isso, é pauta do movimento a luta por uma ampla reforma política e eleitoral do sistema brasileiro, que altere a forma como são eleitos(as) os(as) representantes para a lista partidária fechada e com alternância de gênero; além do financiamento público de campanha. O feminismo é também espaço de formação política, de despertar corações e mentes. Que o digam as petistas que, dez anos depois de aprovar a quota de 30% de mulheres nas direções partidárias, conseguiram, em 2011, aprovar a equiparação do número de mulheres e homens em todas as instâncias do partido.
O aumento da presença feminina nos espaços de poder e decisão é essencial para que a mulher acumule forças para alterar as estruturas que impedem ou dificultam sua participação nesses espaços. Possibilita, ainda, a elaboração e implementação de mais políticas para as mulheres, seja de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, ou de trabalho, autonomia econômica, direitos sociais. Há que se instituir uma nova ordem social em que as mulheres sejam consideradas sujeitas de direito e cidadãs políticas e, assim, possam ocupar os lugares efetivos nos quais se constroem e se legitimam as políticas sociais, rompendo com o estigma e com a prática sexista e excludente que ainda imperam na nossa sociedade.