O atual Ministro das Relações Exteriores faz um balanço do governo Lula
Imagine ser convocado para um trabalho em que você terá de viajar semana sim, semana não para discutir questões que podem mudar o curso do planeta. E ainda defender o interesse de mais de 190 milhões de brasileiros. Essa tem sido a rotina de Celso Amorim, 68, nos últimos oito anos. O Ministro das Relações Exteriores embarcou 167 vezes, perfazendo 259 visitas oficiais a 117 países diferentes. Não é à toa que, em novembro de 2010, o diplomata vai ultrapassar o Barão de Rio Branco, como o homem que por mais tempo exerceu a função de chanceler brasileiro. Nascido em Santos (SP) e formado pelo Instituto Rio Branco, Amorim ajudou a construir a nova política externa do país. Alvo de críticas e de elogios em iguais proporções, ele se mantém na pasta desde o primeiro dia de mandato do presidente. Somente o general Jorge Armando Félix, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, repete o feito de Amorim, ocupando o cargo de ministro desde o começo do governo. Em meio a uma semana considerada surreal por seus assessores, incluindo 36 reuniões com líderes de todo o planeta e o discurso de abertura da Assembleia-Geral da ONU, onde representou Lula, o ministro das Relações Exteriores falou de Nova York com exclusividade à Rolling Stone Brasil sobre a sua gestão no Itamaraty. E confessa: é hora de dar mais atenção à família.
O senhor acredita que há uma "partidarização" das críticas a respeito das posições adotadas pelo Itamaraty?
Os objetivos da política externa brasileira baseiam-se na Constituição. Há, no entanto, entre os vários governos, diferenças de visão sobre a capacidade do Brasil de influir em questões internacionais. Muita gente ainda subestima a capacidade do país de contribuir positivamente para a agenda internacional. O Brasil tem posições coerentes em todas as áreas, tanto que se tornou uma força nas grandes discussões mundiais, das finanças à mudança do clima, passando por comércio e questões de segurança. Entendemos que a política externa deve ter um certo grau de ousadia. Curiosamente, a imprensa estrangeira valoriza a política externa brasileira, mesmo quando discorda de algum aspecto específico, o que é normal. As críticas mais contundentes vêm da imprensa brasileira, que parece não gostar do novo papel do Brasil.
Qual foi o momento mais tenso para o senhor durante estes oito anos?
Eu só senti tensão mesmo em situações que envolveram outras vidas humanas de uma forma muito concreta, quando tivemos que organizar a retirada urgente de brasileiros que viviam no Líbano durante a ofensiva israelense; ou quando o engenheiro brasileiro João José Vasconcellos Júnior foi sequestrado e morto no Iraque; ou com a perda de militares e civis no terrível terremoto no Haiti. Evidentemente, eu gostaria de ter testemunhado a conclusão da chamada "Rodada do Desenvolvimento" da OMC e a tão necessária reforma das Nações Unidas. Mas essas são construções complexas e coletivas, que virão com o tempo. Orgulho-me de ter feito o que fiz. Muitas vezes os frutos só são colhidos mais tarde.
Quanto as posições do presidente Lula o influenciaram na tomada de decisões e quanto o senhor o influenciou nos momentos de crise externa?
No nosso sistema, o presidente é quem define as linhas da política externa e o Itamaraty executa. O presidente não "influencia", ele decide. Mas é evidente que cabe ao ministro apresentar os detalhes das questões e dar a sua opinião, que pode ou não ser acatada. Eu diria que sempre houve muita convergência.
Sem Lula, será possível para o próximo governo manter o país como um "player" de destaque nas negociações globais, dando continuidade, inclusive, às posições divergentes dos interesses de grandes potências?
Além do carisma pessoal do presidente Lula, a política externa se beneficia das realizações no campo econômico, político e social. Embora impulsionadas inicialmente pelo presidente, tais realizações são conquistas da sociedade brasileira que continuarão a dar sentido a nossa política externa. Divergências com grandes potências ocorrerão e devem ser encaradas com naturalidade. Só países subservientes não discordam de ninguém.
O senhor se arrepende de algum movimento adotado neste governo?
Foi justamente por não temer ações ousadas que colhemos inúmeros resultados: integração sul-americana, consolidação do Mercosul, criação do G-20 comercial na OMC - que mudou a maneira de se negociar naquela Organização -, maior presença na África, missão de paz no Haiti e um crescimento expressivo da presença diplomática brasileira no mundo. O Brasil não pleiteia sozinho a reforma da ONU - Japão, Alemanha, Índia, África do Sul, Nigéria e vários outros países trabalham pela reforma. Mas esse processo envolve a concordância de muitos países, e é natural que leve tempo. Ninguém em sã consciência pode acreditar que um órgão que reflete a distribuição de poder militar de 1945 faça sentido hoje. Quanto à questão nuclear iraniana, Brasil e Turquia buscaram criar um ambiente de confiança e de promoção da paz, com base nas propostas feitas por países que, depois, por motivos internos ou outros, apoiaram as sanções contra o Irã. Estou confiante de que a Declaração de Teerã, assinada pelo Brasil, pela Turquia e pelo Irã, continuará a ser, ainda que com outro nome, uma referência nas negociações sobre o tema.
Ainda existem acertos a serem feitos para que o Brasil acompanhe o desenvolvimento visto em países do BRIC. De que forma a falta das reformas política e tributária atrapalhou o desenvolvimento da nação no plano internacional?
Não me parece que o Brasil esteja em ritmo de desenvolvimento inferior ao dos demais países do BRIC. Em uma série de aspectos, por sinal, temos indicadores mais consistentes. Quanto às reformas política e tributária, são temas que dizem respeito à dinâmica institucional doméstica do país. O maior espaço que o Brasil tem ocupado no cenário internacional decorre da percepção objetiva de uma série de fatores: a pujança e o potencial de crescimento da nossa economia, nosso comprometimento firme com o multilateralismo, nossas posições construtivas nas negociações sobre mudança do clima e em outros temas, nossas inovações na área de biocombustíveis, o vigor da nossa democracia e o caráter plural de nossa sociedade.
Após oito anos intensos, quais são os planos do senhor a partir do dia 1º de janeiro de 2011?
Tenho um convite para dar aulas na UFRJ. E espero ter um convite dos meus filhos para dar palpites nos roteiros dos seus filmes, e de meus netos, para passar mais tempo com eles.