Confira trechos inéditos da entrevista com o cultuado arranjador, publicada na seção “RápidasCom...” da edição 57, junho/2011
Quando você lançou Prelude, em 1972 [primeiro disco de Eumir, ganhador do Grammy], parecia que você tinha se rendido à música eletrônica. Desse disco, "Also Sprach Zarathustra" virou sucesso mundial e hoje, 40 anos depois, dá para perceber a modernidade que já tinha naquele trabalho.
Aquele som de piano na época já estava acoplado à realidade da eletrônica como a guitarra... quando digo eletrônica, não penso necessariamente em um sintetizador, que eu nem usei, porque naquela época ainda nem existia sintetizador confiável. O primeiro que saiu, muito tempo depois, foi o ARD que era espetacular, com toque sensível à pressão do dedo. Eu fiquei encantado, mas também não sabia o que fazer com isso.
Você concorda que esse momento inaugurou um gênero?
Sem dúvida, apesar de já existir um jazz fusion. O meu eu não chamaria de jazz fusion, era uma salada de frutas. Eu fiz um pouquinho de cada coisa. O jazz fusion é sério. Eu estou falando de John McLaughlin e da Mahavishnu Orchestra. Eu estava mais próximo de Chick Corea, na verdade.
Aqui no Brasil você aproveita o tempo que tem para fazer arranjos para alguém que eventualmente esteja gravando. Você agora fez arranjos para a cantora Laura Rizzotto. Como foi trabalhar com ela?
Ela é espetacular. E é gente boa e de muito valor. Já fizemos uma mixagem e ficou muito bonito. Laura canta muito bem, tem 16 anos e é muito simpática, gentil, escuta o que a gente fala e acredita nas sugestões. Eu botei umas cordas, porque eu queria que ficasse bem pop, não com muito embelezamento para não atrapalhar. E também botei o meu piano. O importante é que fosse com o conjunto dela, porque se ela vai trabalhar, ela vai ter que viajar com o grupo. Então não adiantaria eu ficar fazendo aquelas "bobagens" que eu faço e que depois não desse para reproduzir. Mas todo pessoal envolvido, todo o trabalho, foi tudo feito com muito respeito, muita admiração. Eles me ouviam, mas eles têm uma visão mais moderna do que a minha, são jovens.
Em The Crossing, Al Jarreau, conhecido no Brasil por sua forma peculiar de vocalização, participa na faixa "Double Face". Conte sobre esse projeto.
Esse disco eu consigo escutar várias vezes, e eu não costumo escutar as minhas coisas. Foi lançado na Europa e foi muito bem, especialmente na Inglaterra e na Holanda. Tem a participação do Al Jarreau e da banda Novecento, que é uma família em que moram todos juntos, em conglomerados de casas, uma perto da outra. Eles tinham o próprio estúdio em Milão, mas com a crise financeira tiveram que vender. Hoje eles têm tudo lá nas casas, e foi onde eu gravei. Esse foi um negócio que surgiu assim por acaso. Eles tinham umas bases já prontas e me convidaram. São exímios editores de música. Na verdade, esse é um disco de convidados, não é um disco solo meu. Há coisas que eu fiz só instrumental, e eu não poderia convidar alguém porque ficaria esquisito. Eu tinha também pouco tempo, pois havia compromissos com shows em diversos lugares, fazer gravações e arranjos para uma cantora alemã e arranjos para um cantor de Palermo que já havia me pedido há bastante tempo. Um dos convidados que eles queriam era uma cantora chamada Beth Ladel. Eu não sou muito ligado no material dela, mas sei que ela é muito famosa e é uma pessoa conhecida por ser muito pomposa, convencida. Queriam que ela gravasse uma música. Ela levou três meses para responder e pediu US$ 40 mil. Eu disse: "Me dê US$ 4 mil que eu canto" [risos].
The Crossing será lançado no Brasil?
Estamos em negociação com a Universal brasileira, mas até agora... no Japão eles não querem lançar. O disco saiu pela companhia inglesa Expansion Records, só que eles não têm distribuidor mundial e ficam vendendo na Europa e pela internet. Por uma coincidência estranha, uma companhia nos Estados Unidos vai lançar lá e a distribuição será da Universal.
Depois que você saiu do Brasil poucos foram os convites para trabalhos com cantores brasileiros. O último grande arranjo foi para "Tristesse", do disco Pietá, de Milton Nascimento, que ganhou o Grammy Latino em 2003. Porque isso acontece?
Eu tenho teorias. Quando os produtores chegam ao ponto de me chamar é porque eles têm interesse naquele artista e naquela música. Se é uma coisa séria, chamam o Eumir, porque eu me dedico mesmo ao trabalho. Não é aquele arranjo que se faz nas coxas, desculpe a expressão. Eu não faço assim, e nem sei fazer. Eu entro dentro da música, eu gosto de sentir a música mesmo que elas tenham problemas, e geralmente elas têm problemas... Eu imagino um cara ouvindo rádio e daí começa a tocar a música que eu arranjei. O que eu quero que aconteça? Eu quero que o cara não mude e escute até o fim e curta, porque aquilo foi feito para ele.
Fale sobre um trabalho mais recente.
Eu fiz um projeto muito difícil para o Charles Aznavour. Eu tentei deixar o estilo à vontade e a ideia era fazer uns arranjos ao redor do chansonnier dele. Mas alguns detalhes mudaram a filosofia do projeto, e eles já tinham me dado um adiantamento... Eles me mandaram uns temas totalmente impossíveis. O Charles Aznavour já está bem velhinho e estavam fazendo um disco de despedida. O negócio era importante, então, como sempre, chamam o Eumir Deodato. O Aznavour é da EMI e o cara da companhia não ajudou muito, não. Eu trabalhei nesse projeto um tempão, desde as 8 da manhã todo dia, procurando uma forma diferente. E as bases de piano que me mandaram estavam péssimas... ele deve usar um piano desses de criança, programado. Eu esperava receber uma demo de banda, mas recebi um piano errado, fora de tempo, porque o Aznavour não está escutando mais. Ele começa a perder o tempo e a primeira batida fica sendo a terceira. E aí eu fiz o que pude em 15 músicas. Fomos para o estúdio e lá ele armava aquele piano maluco... E eu tirei milimetricamente o tempo que ele me mandou, e no estúdio ele começou a mudar todos os andamentos, exageradamente para mais rápido. De 110 bpm ele quis 133, sem lógica nenhuma. Daí pra frente eu desisti e fiquei sentando só ouvindo as burrices. E eu estava lá pra gravar os meus arranjos, no fim saiu e eu não gostei. Ficou horrível.
E outros convites?
Sim, na França vou escrever os arranjos para uma banda chamada Berry e uma cantora chamada Elise, que canta aquela música francesa sussurrada, sexy. Pra ela eu vou fazer as cordas. Mas eles estão meio aborrecidos comigo, porque em projetos como esses eu só começo a trabalhar com a certeza de que o dinheiro está na conta. Porque esse negócio de falar que vai fazer... e não mandando o dinheiro fica muito esquisito. E ainda ficam mandando e-mail perguntando do projeto. Mas e o dinheiro? Tenho que pagar músicos que eu vou contratar, aliás, [trabalho com] um quarteto de cordas excepcional, chamado Sirius.
O seu último disco lançado no Brasil, de 2007, Eumir Deodato Trio ao Vivo, está esgotado. Você sabia disso?
Não sabia, você deve estar brincando! Não entendo o por quê. Hoje é tão fácil relançar disco! Eu não sei... talvez queiram tirar de catálogo. Mas esse continua sendo um bom disco.
Você tem projeto de voltar a gravar no Brasil?
Eu tive uma reunião sobre isso. Nos bons tempos, a gente fez uma série de discos como Os Catedráticos e estou pensando em revisar aquele repertório e fazer Os Catedráticos mais modernos. Esses discos tinham elementos de samba tradicional, de música mais atirada, mais moderna e até de jazz. Aquilo ainda é moderno e é um estilo que pode ser tocado agora.
Alguma ideia de lançar um songbook com as suas músicas?
Eu fiz um com as músicas do Tom Jobim.
E com as suas músicas e os seus arranjos?
Aí é outra história. Eu teria que escutar tudo novamente e, quando eu escuto, não tenho a menor ideia do que fiz. Se você quiser saber a verdade, eu nem sei se tenho um nome suficiente para isso, mas eu quero mesmo é escrever um livro com as histórias que eu tenho pra contar. Tenho muitas histórias, mas infelizmente essas histórias vão revelar algo da personalidade dos artistas com quem eu trabalhei, e, às vezes, pode não ser legal. Tem coisas cabeludas que eu não posso revelar porque envolvem outros artistas. Trabalhei 15 anos com o Tom Jobim, por exemplo, conheci ele muito bem. O Tom sempre me respeitou como arranjador, mas teve uma hora em que ele parou de gostar e isso aconteceu quando eu fiz sucesso. Mas tudo isso em comparação com o espetacular trabalho dele passa a não ter importância.