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Entrevista RS: Bill Gates

Jeff Goodell | Tradução: Ana Ban Publicado em 12/05/2014, às 12h20 - Atualizado às 12h35

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- - Roberto Parada
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Com uma fortuna que hoje passa dos us$ 76 bilhões, Bill Gates é o homem mais rico do mundo, mas não é só isso: talvez ele também seja o mais otimista. Na visão de Gates, 58 anos, o mundo é um sistema operacional gigantesco que só precisa ser depurado. A ideia que o move – que lhe dá vida e que conduz sua filantropia, que faz com que ele fique até tarde no escritório, nos arredores de Seattle – é a premissa do hacker, de que sempre é possível escrever um código para resolver problemas, que os erros podem ser corrigidos, que sistemas enormes (como o Windows 8, a pobreza global ou as mudanças climáticas) podem ser aprimorados se você tiver as ferramentas e as habilidades certas. A Fundação Bill & Melinda Gates, organização filantrópica com US$ 36 bilhões em fundos, que ele gerencia com a esposa, é como se fosse uma startup gigantesca, cujo público-alvo é a civilização humana.

Levando em conta a escala de riqueza de Gates, as posses dele são modestas: três casas, um avião, nenhum iate. Ele anda de mocassim, calça cáqui e suéter com gola em V. Quase sempre precise cortar o cabelo. Faz 40 anos que os óculos dele não mudam muito. Para se divertir, Gates participa de torneios de jogos de cartas, especificamente bridge. Mas, apesar de as ambições sociais dele serem modestas, sua esfera de interesse intelectual é vastíssima: clima, energia, agricultura, doenças infecciosas e reforma na educação – só para citar alguns temas. Ele faz com que ex-físicos nucleares ajudem a criar biscoitos nutritivos para alimentar o mundo em desenvolvimento. No Paquistão, ajudou a fazer com que US$ 1,5 bilhão fosse gasto na luta contra a poliomielite (e mais US$ 1,8 bilhão está alocado até 2018) para erradicar o vírus. Ele está criando privadas melhores e financiando pesquisa de camisinhas feitas de nanotubos de carvão.

Já se passou muito tempo desde o início da revolução digital, quando Gates era quase uma caricature do monopolista ganancioso com a missão de instalar o Windows em todos os computadores da galáxia. (“O problema de Bill”, Steve Jobs certa vez me disse, “é que ele quer ficar com 5 centavos de cada dólar que passa pelas mãos dele.”) Mas, quando Gates se demitiu do cargo de CEO da Microsoft, em 2000, descobriu uma maneira de transformar seu ímpeto agressivo de conquista de desktops em um ímpeto agressivo de vencer a pobreza e as doenças.

Agora, ele está de volta à Microsoft como “consultor de tecnologia” de Satya Nadella, o novo CEO da empresa. Ele calcula que vai dedicar um terço do tempo à Microsoft e dois terços à fundação e a outros trabalhos. Mas a Microsoft de hoje não tem nada a ver com o monstro que queria dominar o mundo nos anos 1990. A empresa ficou presa ao desktop durante tempo demais, enquanto a concorrência – principalmente a Apple e o Google – passou para telefones e tablets. E, em vez de falar sobre o futuro da empresa em termos visionários, Gates fala de desafios que parecem quase mundanos para um homem com as ambições dele, como reinventar o Windows e o Office para a era da informática na nuvem. Mas, em certos aspectos, isso não é inesperado: diferentemente de, digamos, Jobs, que retornou à Apple com zelo religioso, está bem claro que Gates tem coisas maiores em mente do que descobrir como fazer com que planilhas sejam viáveis na nuvem.

Quando você fundou a Microsoft, tinha uma ideia que parecia maluca de que haveria um computador em cada mesa de trabalho. Agora, ao retornar à empresa, 40 anos depois, os computadores não estão apenas nas mesas, mas também nos bolsos – e em todos os outros lugares. Para você, qual é a maior surpresa na maneira como as coisas se desdobraram?

Bom, é fantástico passar de um mundo onde computadores eram desconhecidos e muito complexos para um mundo em que eles são uma ferramenta do dia a dia. Esse era o sonho que eu queria transformer em realidade e, em grande parte, o desdobramento foi o que eu esperava que fosse. Existem menos robôs hoje do que eu imaginava. Visão e fala chegaram [às máquinas] um pouco mais tarde do que eu previa. Mas essas são coisas que provavelmente virão à tona nos próximos cinco anos, e certamente nos próximos dez anos.

Se há uma negociação que simboliza a posição do Vale do Silício hoje, é a compra do WhatsApp pelo Facebook, por US$ 19 bilhões. O que isso representa para a economia do Vale do Silício neste momento?

Significa que Mark Zuckerberg quer que o Facebook seja o próximo Facebook. Mark tem credibilidade para dizer: “Vou gastar US$ 19 bilhões para comprar algo que, essencialmente, não tem modelo de receita”. Acho que a agressividade dele é sábia, apesar de o preço ser mais alto do que a minha expectativa. Mostra que as bases de usuários têm valor extremo. Trata-se de software, que pode ser transformado em uma ampla gama de coisas – uma vez que você tem condições de se comunicar com alguém, não vai só ficar mandando mensagem de texto. Vai querer enviar fotos, compartilhar documentos, jogar com os seus amigos.

Parece que o Google estava considerando a compra.

É, é. A Microsoft também estava disposta a comprar... Não sei se era por US$ 19 bilhões, mas a empresa é extremamente valiosa.

Quando você olha para o que Zuckerberg fez, vê um pouco de si mesmo nele?

Ah, claro que sim. Nós dois largamos Harvard, nós dois tínhamos visões fortes e teimosas a respeito do que softwares são capazes de fazer. Eu dou a ele mais crédito por ter formatado a interface para o usuário do produto dele. Ele é mais gerente de produto do que eu fui. Eu sou mais um codificador, no fundo das entranhas e da arquitetura. Mas, sabe, essa não é uma diferença das mais importantes. Eu começo com arquitetura, e Mark começa com produtos, e Steve Jobs começou com estética.

Na sua fundação, como você toma a decisão moral entre, digamos, dedicar seu tempo e energia à erradicação da pólio em vez das mudanças climáticas?

Quero me concentrar em coisas em que acho que a minha experiência de trabalhar com inovação me dê oportunidade de fazer algo único. A maior parte do dinheiro da fundação vai para um número finito de coisas que se concentra em desigualdade de saúde – por que uma pessoa em um país pobre está em situação muito pior do que uma pessoa de um país que é rico. Na maior parte, são doenças infecciosas. Estamos nos concentrando em cerca de 15 delas – pólio é aquela com a qual eu mais trabalho. E depois, devido à importância da nutrição e porque a maior parte das pessoas pobres é do campo, também trabalhamos com agricultura.

A agricultura tem importância tremenda, principalmente em um mundo que está se aquecendo com rapidez, e ainda mais com as projeções de que a população da Terra vai atingir 9,6 bilhões de habitantes até 2050. Como vamos alimentar a todos?

Na década de 1960, tinha uma coisa chamada Revolução Verde, em que sementes novas e outras melhorias fizeram aumentar a produtividade agrícola na Ásia e na América Latina. Isso salvou milhões de vidas e tirou muita gente da pobreza. Mas basicamente passou em branco na África subsaariana. Hoje, o agricultor médio lá só tem um terço da produtividade de um agricultor norte-americano. Se pudermos elevar esse número, e acho que podemos, vai ajudar muito. Também há o problema de que à medida que as pessoas ficam mais ricas e passam a fazer parte da classe média global, elas querem comer mais proteínas. Este é um bom problema de se ter, o fato de que as pessoas estão ficando mais ricas. Mas comer carne tem forte impacto sobre o ambiente – exige muita terra e água. E, no entanto, não dá para sair por aí dizendo a todo mundo para ser vegetariano. Assim, criar proteínas com base vegetal e preço acessível – basicamente, substitutos de carne que tenham realmente gosto de carne – é outra área que pode fazer grande diferença. Eu já experimentei alguns, e realmente não fui capaz de perceber a diferença entre eles e a carne de verdade.

Vamos falar sobre mudanças climáticas. Muitos cientistas e políticos veem isso como o maior desafio que a humanidade já enfrentou.

É um grande desafio, mas não tenho certeza se colocaria acima de tudo o mais. Uma das razões por que é difícil é que, quando percebermos que as mudanças climáticas realmente são graves, nossa habilidade de saná-las será extremamente limitada. Assim como com os vírus, o problema é a latência. O carbono está lá, mas o efeito de aquecimento é retardado. E então o efeito desse calor sobre as espécies e o ecossistema é retardado. Isso significa que, mesmo quando você se torna eficiente [para consertar os problemas] , as coisas na verdade ainda vão piorar por um bom tempo.

Certo... ainda não somos muito eficientes nesse caso, não é mesmo?

Não estamos nem perto disso – emitimos mais CO2 a cada ano. Para atingir redução de 90% do carbono, que é o que precisamos, a primeira coisa necessária de se obter é um ano de redução global, e isso não aconteceu. As emissões dos Estados Unidos estão menores neste momento, em parte porque compramos mais produtos do exterior. Mas, mesmo que alguma fonte de energia com emissão zero de carbono fosse inventada hoje, iria demorar muito tempo até que essa engenhoca mágica passasse a ser usada. A atmosfera é o máximo do espaço comum. Todos nós nos beneficiamos dela, e todos nós a poluímos. É surpreendente como há poucos problemas em termos da atmosfera... Só tem essa coisa maluca de que se o CO2 ficar por lá durante muito, muito tempo, os oceanos o absorvem, e isso faz com que a água fique ácida, e isso é um problema enorme em si e deveríamos fazer algo a respeito.

Isso leva ao seu interesse por energia nuclear, certo?

Se a energia nuclear pudesse ser segura de verdade, e houvesse uma maneira de lidar com os custos, de lidar com o lixo [radioativo], então iria se transformar no nirvana que desejamos: uma solução mais barata com emissão de CO2 muito baixa. Se não conseguirmos isso, temos um problema. Porque você não vai reduzir a quantidade de energia usada. Para cada ano entre agora e 2100, o mundo vai usar mais energia. Então, isso significa mais emissões de CO2 a cada ano.

A TerraPower, que é a empresa de energia nuclear que eu apoio, precisou de muito tempo para reunir as pessoas certas, precisou criar modelos de computador para montar a tecnologia certa, e agora vai precisar que o governo dos Estados Unidos trabalhe com o país que concordar em construir um projeto-piloto – a China, talvez. Em um tipo normal de mercado privado, esse projeto provavelmente não teria surgido. Foi necessário fascínio pela ciência, preocupação com as mudanças climáticas e visão a longo prazo. Agora, não estou dizendo que há garantias de que será bem-sucedido, apesar de estar indo muito, muito bem, mas é um exemplo de inovação que pode não acontecer sem o apoio adequado.

Tendo em vista a escala dos problemas como mudança climática, recuperação econômica lenta, impasse político e aumento dos custos da saúde, é fácil para as pessoas se sentirem pessimistas em relação à maneira como o mundo está andando.

É mesmo? Que pena. Acho que isso se deve à concentração excessiva no que é negativo. Eu, pessoalmente, acho que o quadro é bem positivo. Mas isso não significa que eu pense que seja uma questão de “Não se preocupe, relaxe, alguém vai se incomodar com isso”. Não vejo as coisas assim.

Quando você olha para o horizonte, para os próximos 50 anos, qual é o seu maior medo?

Acho que vamos fazer frente às mudanças climáticas. Isso é muito importante. Espero que possamos fazer frente ao terrorismo em larga escala para impedir que isso seja um tremendo atraso para o mundo. Na questão da saúde, podemos reduzir o número de crianças pobres que morrem de mais de 6 milhões para 2 milhões e, depois, 1 milhão. Será que o sistema político dos Estados Unidos vai se endireitar em termos de como trata problemas complexos? Será que os custos medicos vão se sobrepor à noção do que as pessoas esperam que o governo faça? Eu de fato me preocupo com coisas como a guerra na Síria e o que isso significa. Não dava para ter feito a previsão de que aquele país específico fosse entrar em uma guerra civil pavorosa, em que o sofrimento é simplesmente inacreditável, e não é óbvio para ninguém o que poderia ser feito para detê-lo. Suscita questões para alguém que pensa que pode consertar a África da noite para o dia. Eu compreendo como uma criança saudável, como uma boa estrada, coloca um país em um caminho melhor, mas a instabilidade e a guerra vão surgir de vez em quando, e eu não sou especialista para saber como se escapa dessas coisas. Gostaria que existisse uma invenção ou avanço para consertar isso. Então, vai haver algumas coisas muito ruins que vão acontecer nos próximos 50 ou 100 anos, mas espero que nenhuma delas seja na escala de, digamos, 1 milhão de pessoas morrerem inesperadamente por causa de uma pandemia, ou desastre nuclear, ou bioterrorismo.

Você se lembra qual foi a última vez que falou com Steve Jobs?

Foi dois ou três meses antes de ele morrer. E depois escrevi uma longa carta para ele, que ele deixou ao lado de sua cama. Steve e eu na verdade mantínhamos um bom contato, e tivemos algumas boas e longas conversas no último ano, sobre as nossas mulheres, sobre a vida, sobre o que a tecnologia tinha alcançado ou não. Steve e eu éramos muito diferentes. Mas ambos éramos bons para escolher pessoas. Ambos éramos hiperenérgicos e trabalhávamos com muito afinco. Fomos parceiros próximos na elaboração do software original do Mac, e aquilo foi algo fantástico, porque tínhamos mais pessoas trabalhando naquilo do que a Apple. Mas éramos muito ingênuos. Steve nos prometeu que aquela seria uma máquina de US$ 499, e quando vimos custava US$ 1.999. Mas, bom, o projeto Mac foi uma experiência incrível. A equipe que trabalhou do lado do Mac se exauriu total e completamente. Em dois anos, nenhum dos integrantes estava mais lá. Mas foi uma coisa mítica que fizemos juntos. Steve era um gênio.

Você é tecnólogo, mas muito do seu trabalho na fundação tem dimensão moral. Seu pensamento a respeito do valor da religião mudou ao longo dos anos?

Os sistemas morais de religião, penso, são muito importantes. Criamos os nossos filhos de um modo religioso; eles frequentaram a Igreja Católica que Melinda frequenta e da qual eu participo. Eu tive muita sorte, e por isso é meu dever tentar reduzir a desigualdade no mundo. E isso é meio que uma crença religiosa. Quero dizer, pelo menos é uma crença moral.

Você acredita em Deus?

Concordo com pessoas como Richard Dawkins, que diz que a humanidade sentiu a necessidade de criar mitos. Antes de realmente começarmos a entender as doenças e o clima e coisas assim, buscávamos explicações falsas para elas. Agora a ciência entrou no lugar de uma parte do domínio – não todo – que a religião costumava preencher. Mas o mistério e a beleza do mundo são fantásticos e de tirar o fôlego, e não existe explicação científica para explicar como isso aconteceu. Dizer que foi gerado por números aleatórios parece, sabe, uma visão sem caridade nenhuma [risos]. Acho que faz sentido acreditar em Deus, mas exatamente que decisões da sua vida você vai tomar de um jeito diferente por causa disso eu não sei.