Por Ricardo Franca Cruz, Pablo Miyazawa, Rodrigo Barros e Fernando Vieira Publicado em 18/10/2010, às 18h14
Marina silva reclama do frio. É o fim de um dia nublado de maio quando a candidata a presidente pelo Partido Verde enfim se desvencilha da agenda e se coloca disponível para a entrevista com a Rolling Stone Brasil. O local escolhido foi o escritório de seu comitê, no 2o andar de uma ampla casa reformada a partir dos resquícios de uma casa noturna, na Zona Oeste de São Paulo. Com um xale nos ombros e recostada em uma cadeira de escritório, a senadora de 52 anos nascida em Rio Branco (AC) chega a aparentar desconforto e fragilidade. Mas a impressão se dissipa no exato momento em que começa a disparar suas respostas, elaboradas com um misto de serenidade, clareza de discurso e agilizada eloquência - conforme fomos avisados a todo instante, a candidata precisaria estar no aeroporto em menos de duas horas para voar a Salvador. Compromissos obrigatórios de uma campanha que oficialmente ainda nem havia começado.
Caso eleita, o que a senhora vai fazer pelo Brasil?
A minha resposta depende do que queremos fazer. Acho que cada vez mais os desafios que estão postos para a humanidade - é aquilo que eu chamo do exercício da política, do exercício da gestão pública em coautoria - são sempre um dividir de responsabilidades. Quando você passa por um processo como esse, o que você vai fazer depende muito do acordo social que sai das urnas. E o que estou propondo como o termo de referência é a sustentabilidade social, ambiental, cultural, política e ética, para produzirmos uma economia do século 21, baseada nos valores do século 21, orientados pela nova visão que se deve ter do mundo. Até há bem pouco tempo, se achava que os recursos naturais eram infinitos, que o desenvolvimento era linear. Hoje, sabemos tecnicamente e cientificamente que não é assim, e mudando a realidade, muda também o olhar para a realidade. Então, a realidade que nós temos hoje é a que vai exigir cada vez mais de nós. É uma nova forma de relação dos homens uns com os outros, dos homens consigo mesmos e dos homens com a natureza. Esse Brasil que queremos para o século 21 é aquele capaz de integrar as conquistas que já temos, os avanços econômicos, sociais, e transitar para os novos desafios do século 21. O Brasil é hoje o país que reúne as melhores condições de fazer esse trânsito, porque tem uma base de recursos incomparavelmente maior do que qualquer outro, e uma base de conhecimentos, de tecnologia razoável. E é possível iniciar, no século 21, o mesmo processo que os Estados Unidos fizeram no início do século passado. E, junto aos países de cultura milenar, entrar num processo e se tornar mais desenvolvido até do que os países de cultura milenar. O Brasil pode dar esse passo se tiver a visão, o processo certo e se criar as estruturas para viabilizar isso.
Tem de haver uma mudança comportamental nos brasileiros?
Acho que as grandes transformações são sempre precedidas de mudança de mentalidade. Primeiro você tem uma percepção das coisas, uma opinião sobre uma determinada situação, que nem sempre é acompanhada de uma mudança de atitude. Mas, obviamente, as grandes transformações acontecem em função de uma mudança de mentalidade. A gente nem sempre vai ter os contornos dessa mudança por inteiro, aliás nunca vai ter. Mas, hoje, eu diria que as pessoas começam a perceber muito claramente que o padrão de vida que temos é insustentável. Um dia desses, vi um vídeo em que a pessoa dizia que ainda existem aqueles que querem viver o "modelo cinco planetas". É aquele que acha que o mundo inteiro se tornará tão desenvolvido de modo a ficar semelhante à Europa e aos Estados Unidos. Mas, se os 6 bilhões de seres humanos ficarem com os padrões de consumo e produção iguais aos da Europa e dos Estados Unidos, nós precisaremos de cinco planetas. Logo, não temos como almejar esse modelo, pois só temos um planeta. Temos que buscar outro modo de vida. Como fazer para produzir mais utilizando menos recursos naturais? Como fazer para evitar os danos que levam às mudanças dos sistemas climáticos sem os efeitos indesejáveis da mudança de modelo de desenvolvimento?
É possível realmente ter desenvolvimento com a sustentabilidade? Ou a sustentabilidade pode atrasar o desenvolvimento do Brasil?
É perfeitamente possível, e o bom de tudo isso é que ainda temos tempo para fazer essa transição. E os cientistas estão dando uma data: até meados do século, nós temos que reduzir em 80% as emissões de CO2, sob pena de elevarmos a temperatura da Terra acima de dois graus e inviabilizarmos a vida no planeta. Essa é uma questão que está colocada para a humanidade. O como que você me pergunta, ninguém no planeta tem a resposta definitiva, mas a gente já tem vários elementos e uma base material que nos dá todas as condições para o começo - graças àquelas pessoas que tiveram a visão antecipatória de mundo e de realidade. Hoje, sabemos que é possível gerar energia dos ventos, do Sol, da água, da biomassa, enfim, das várias fontes que estão surgindo por aí, como é o caso da energia do hidrogênio. Por quê? Porque existiram pessoas que há muito tempo foram capazes de antecipar esse futuro que estamos começando agora.
O custo disso compensa?
Quando se está diante de um desafio tão grande que compromete a vida e o futuro do planeta, compensa qualquer esforço. Só os Estados Unidos colocaram quase US$ 13 trilhões para socorrer o sistema financeiro. Se o homem é capaz de colocar U S$ 13 trilhões para isso, o que um comportamento ético, uma visão civilizatória, não faria para salvar a vida e o planeta? Esse é o paradoxo, e estamos diante dele. Como a gente consegue mobilizar tantos recursos - e perfeitamente justificáveis, porque não queremos uma crise que inviabilize a economia, a qualidade de vida das pessoas - e não temos a mesma compreensão em relação a socorrer o planeta? Então, obviamente compensa.
Quando ser presidenta se tornou uma ideia fixa na sua cabeça?
Eu tenho uma grande dificuldade em saber quando foi que eu abracei essa ideia e quando essa ideia me abraçou [risos].
A senhora foi envolvida por isso de alguma maneira?
Eu sempre digo que a gente pensa que tem uma causa, mas é a causa que tem a gente. Essa ideia me abraçou, com certeza, desde que essa causa me teve... É porque ninguém vira candidato a presidente da República de repente. Acho que era bom eu ser candidata, isso faz parte de um processo. E ainda que o indivíduo tem esse lugar como o sujeito que se coloca, ele também é colocado nesse lugar. E aí ele vai ter que fazer essa mediação entre aquilo que as pessoas têm como expectativa e o que ele se dispõe a fazer . E aí, nesse caso, chegou o momento que eu me dispus a fazer.
Vale a pena abrir mão de uma vida, digamos normal, p ara ser presidenta?
O que é uma vida normal? [risos] Não acho que já fosse assim tão normal.
De todas as entregas que a senhora já teve na sua vida política, na sua história de luta, seria essa a maior d e todas até o momento? Daí a pergunta: vale a pena?
Vale a pena se a alma não é pequena [ risos]. Dizem que poesia não é de quem faz, é de quem precisa, então já estou tomando emprestado aqui para ajudar nas respostas.
E a decisão de deixar o PT, foi difícil? Por quê?
Foi por que são 30 anos de militância, de construção e isso não é algo que se elabore facilmente, nem politicamente, nem afetivamente. Eu ainda estou fazendo este luto.
Foi como o fim de um casamento longo?
Como quando você pertence a um partido, tem o nome de filiado, é como se fosse uma espécie de desfiliação, no sentido de deixar de fazer parte daquele grupo, ainda mais com o nível de construção que a gente tinha, de iniciar aquilo nas condições mais adversas, quase que botando a ideia em cima da mesa e dizendo: "Como a gente faz agora para tornar isso realidade, como transformar esse desejo de ter um par tido democrático, popular, que tenha os valores do socialismo, mas que não seja um partido verticalizado, com centralismo democrático, que tenha um comitê central, uma participação dos diferentes segmentos da sociedade, que seja capaz de juntar os intelectuais, enfim, os movimentos sociais, dos excluídos". Isso foi uma construção, uma grande contribuição para a democracia brasileira de que tenho orgulho de ter feito parte. Para mim, essa é uma herança que nunca será maldita.
Foi uma decisão sábia?
Eu diria que, espero que se a decisão foi sábia, ela se revelará no futuro. O que posso dizer agora é que foi uma decisão necessária.
A senhora acha que se desfiliou dos ideais do PT ou o PT se desfiliou desses mesmos ideais?
Eu diria que os ideais que o PT colocou como os seus grandes ideais, em parte, vêm se realizando. Obviamente que houve um descolamento da parte de alguns em relação a várias questões, mas, em parte, vêm se realizando. Uma pessoa como eu, por exemplo, analfabeta até os 16 anos, filha de seringueiro, que eram os excluídos dentre os excluídos, pertencente a um segmento que não tinha voz, não tinha audiência nenhuma, ex-empregada doméstica, vivendo na periferia de Rio Branco - eu acho que participar de um processo de organização e virar senadora da República e hoje estar nesse lugar é uma grande contribuição que o Partido dos Trabalhadores deu. Olhando para a realidade política e partidária do meu estado, em que campeava a jagunçagem, em que pessoas como eu eram consideradas atrasadas, contra o progresso e preguiçosas, eu vejo como uma contribuição, sim. E eu quero participar destas eleições sem ir par a o caminho mais fácil, que é o de desconstruir, de negar, de usar dois pesos e duas medidas. Eu acho que o descolamento é exatamente em relação a vários aspectos. O que me fez sair do PT foram as mesmas razões pelas quais fiquei durante 30 anos. Eu saí par a manter a minha conectividade com os ideais que eu acredito. E o PT não foi capaz de se conectar com as utopias do século 21. A grande utopia do século 21 é fazer uma inflexão civilizatória no modelo de desenvolvimento, e essa é uma contribuição não só do Brasil, é do plane ta inteiro. É de re visitar paradigmas. Não dá mais para pensar num mundo com os velhos conceitos "esquerda" e "direita". O que temos como desafio é algo muito maior do que isso. V ai exigir um esforço de todas as pessoas, de todos os segmentos para que a gente possa dar conta do recado, e infelizmente essa percepção o PT não foi capaz de ter, ainda que tivesse inúmeras pessoas que pensam como eu, mas que não conseguiram fazer com que isso se colocasse como eixo estratégico da sua atuação. Quando digo que realizou em par te: se nós olharmos para o propósito da inclusão social, eu diria que progressivamente há uma contribuição nessa direção. Tirar 25 milhões de pessoas da linha da pobreza em oito anos - isso é altamente relevante e significativo.
O que a sua experiência lhe ensinou sobre o Brasil e o s brasileiros?
A primeira coisa que aprendi é que a sociedade brasileira, graças a Deus, está sempre à frente dos seus líderes...
Ela enxerga mais longe?
Enxerga mais longe e antecipa primeiro. Isso eu aprendi com a sociedade brasileira. Por exemplo: o Chico Mendes, analfabeto, praticamente isolado com um grupo de seringueiros e índios, começar a dizer que a saída para a Amazônia não era transformar a sua biodiversidade e sua floresta apenas em pasto, e sim, preservar as comunidades locais e buscar uma nova formula de desenvolvimento, ainda que ele não tivesse palavras para dizer isso. Ele estava ali, antecipando em visão e atitude algo que só muito depois é que foi percebido. Então, aprendi primeiro isto: que a sociedade está muito além das suas lideranças.
Mas isso significa que os líderes não estejam sendo bem escolhidos pela própria sociedade, já que ela está tão à frente?
É que a sociedade faz um processo que não é assim... dicotômico. O Chico Mendes era uma liderança, certo? Só que uma nova liderança. Porque senão as lideranças ficariam e ternas, sempre as mesmas lideranças. Aqueles que estão constituídos como lideranças não são exclusivos, e a sociedade v ai criando essa dinâmica. Ela vai antecipando não só nas ideias e nos procedimentos: ela vai antecipando as lideranças. Há 20 anos, quando começamos este movimento, ninguém jamais poderia imaginar que vocês a esta hora da noite estariam aqui me entrevistando. A sociedade antecipa na história, antecipa no saber , no fazer , no entre ter, e, se não antecipasse, morreria. Isso eu aprendi com a sociedade. Eu até tenho uma metáfora futebolística para isso: a gente está aqui, mas tem que estar de olho onde a bola vai estar. E essa é uma construção coletiva. Só que tem alguns indivíduos que são capazes de perceber isso. Quando todos estão quicando a bola aqui, eles já estão antecipando lá. As pessoas que foram capazes de pesquisar energia solar, eólica e de biomassa, elas estavam olhando par a onde a bola deveria estar. E ainda bem que existem essas pessoas. Os empresários que começaram há 30 anos, como o Guilherme [Leal, candidato a vice-presidente na chapa de Marina], a apostar que era possível ter um empreendimento que respeitasse o meio ambiente e os direitos trabalhistas, estavam antecipando o que seria e o que deve ser o empresariado deste século. É um processo de retroalimentação. Não existe uma coisa que seja estática.
O que a campanha lhe ensinou sobre si mesma?
Uma coisa que não quero é deixar de ser eu só por que estou em campanha. Quero encarar essa campanha para presidente sendo eu mesma. E que significa isso? É preciso um esforço. O investimento para ser esse "si mesmo" não está apartado desse "nós" que se presentifica em minha pessoa, mas esse si mesmo tem a ver com aqueles valores que me são caros, profundos, que, se eu abrir mão deles são desconstrutivos da minha essência e trajetória. Esses eu não posso transgredir. Tenho dito para a minha equipe que temos que fazer esta campanha com profundo respeito pelos nossos concorrentes. A crítica será incisiva? Incisiva, mas não quero jamais, e peço a Deus todo dia, sabedoria para que eu não faça nada que não seja eticamente justo com a Dilma, com o Serra e com o Plínio. Não vale tudo para ganhar uma eleição. Eu jamais seria capaz de fazer uma armação, pinçar uma coisa par a prejudicar uma pessoa, sendo aquilo uma coisa deliberadamente para prejudicar. É isso que eu quero.
É possível manter a sanidade?
Depende do ângulo que se olha. A música do Caetano diz que de per to ninguém é normal [risos]. Então, a gente vai buscando isso de se colocar também como pessoa. Eu participei de um programa de tele visão, o Gazeta Meio-Dia, em que eu fui apresentada par a o Brasil como uma seringueira que virou senadora, e durante a entrevista a plateia ia fazendo perguntas. E teve uma questão que não foi ao ar. A apresentadora, Maria Lídia, comentou: "Olha, teve uma pergunta que fiquei receosa que pudesse ser ofensiva à senhora". Eu disse: "O que foi?" Ela disse: "U ma pessoa telefonou dizendo que gostou da senhora porque parecia uma pessoa. E eu imaginei que ela estaria dizendo que, como a senhora veio da floresta, isso pudesse ser uma coisa desrespeitosa". Eu disse: " Tem o telefone dela?" Quando cheguei em Brasília, liguei e disse: "Quem
está falando é a senadora Marina Silva, a senhora fez uma pergunta, mas a g ente não entendeu direito e não foi par a o ar". E ela: "Minha filha, ainda bem que você ligou. Sou professora, tenho 75 anos, aposentada, estava vendo a sua entre vista e adorei por que a senhor a fala como uma pessoa. Não tem aquele jeito empolado dos politicos que sabem de tudo". E achei isso uma coisa maravilhosa. Daí, contei essa história para um amigo meu, o jornalista Tonho Alves. Você sabe que, dentro da psicanálise junguiana, existe essa história da "pessoa" e da "persona". Geralmente os políticos, as pessoas famosas, acabam criando uma persona, porque a exposição é tão grande que eles protegem a pessoa com a persona. E ele me disse: "O seu problema é que você não tem uma persona, você escorrega direto para a pessoa. F oi isso que ela viu em você" . E eu pensei: "Essa mulher é um anjo". E eu quero manter a pessoa. A minha sanidade tem a ver com manejar essa situação, senão você vir a uma repetição neurótica de algo que não está em você. Se não está em você, não tem força, não tem vida.
A senhora mencionou o Caetano Veloso. É impossível não notar que a classe artística está um pouco distante do processo político no Brasil. Por que ocorreu esse afastamento?
Com a conquista da democracia, vivemos aquele momento de nos colarmos a um projeto que configurasse a materialização da democracia. E todo mundo entrou de cabeça nisso. Como se, de alguma forma, aquilo ali já fosse suprir toda a nossa falta. E, de repente, nós continuamos nos percebendo faltosos. Então, as pessoas estão amadurecendo, pensando: "Eu não vou me colar mais a nenhum projeto como se isso fosse a pedra filosofal". A democracia é isso, ter a oportunidade de pegar esse caleidoscópio e olhar de vários ângulos, e acho que os artistas estão fazendo isso. Mas eles também são pessoas que antecipam realidade, e talvez os que mais vocalizam essas antecipações. E eu fico muito feliz porque o próprio Caetano deu uma declaração de que me apoia, a [Maria] Bethânia disse que eu a arrebato, e tantos outros já falaram isso. É muito bom saber que essas pessoas, ainda que com um pouco mais de cuidado, percebem isso como algo que deve ser olhado e veem como algo que precisa ser vocalizado. Mas estão ficando como todos nós, mais cuidadosos.
Além de Caetano, o que a senhora escuta?
Gilberto Gil, Chico Buarque. Música popular brasileira. Gosto de ouvir a música de Luiz Gonzaga que meu pai e minha mãe cantavam tanto.
E livros, poderia citar três que a inspiram?
Gosto muito das Confissões de Santo Agostinho. Gosto muito dos Mistérios da Trindade, de Dany-Robert Dufour, que é um fi lósofo francês. E gosto muito de ler a minha Bíblia.
Atualmente, percebe-se um processo de alienação dos jovens rasileiros. Como trazêlos de volta à política?
Primeiro, os jovens não são trazidos. Os jovens é que se trazem. Eles é que se conectam com aquilo que acham que é uma visão antecipa tória do mundo. Porque os jovens não se envolvem em projeto de poder pelo poder. Eles se envolvem com projetos antecipatórios. Quando a minha geração foi à luta pela democracia, eles estavam buscando por aquilo que confiavam. Como pode a juventude pensar em não ter liberdade ? Isso passou a ser um valor essencial, e, por mais que seus pais os quisessem trazer par a outras causas, eles se trouxeram para essa. Eu sinto que isso começa a acontecer no Brasil, do jovem querendo progressivamente se reconectar à política aqui e agora. Agora, os jovens foram também estimulados a se tornar pragmáticos. É incrível que a nossa geração sonhadora começou agora a achar que todo mundo deve virar pragmático. E isso começou a desqualificar o sonho. Se você quer desqualificar alguma pessoa, é só chamá-lo de sonhador, de utópico. Na minha geração, ser chamada de sonhadora era um elogio. "Fulano é portador de uma utopia." Nossa, era um elogio enorme. Hoje em dia, se desqualificam essas coisas. "Seja pragmático, se conforme com o que nós temos aqui. " Realmente, temos que fazer esse movimento. Então, os jovens estão no seu movimento. Eu fico muito feliz de ter um grupo de jovens envolvidos, aliás eles começaram esse "movimento Marina Silva". Eu nem pensava em sair do PT e eles fizeram um movimento pra me convencer a ser candidata, porque achavam que seria alguém que iria dialogar com as necessidades do futuro que eles querem para o Brasil.
Como fazer para acreditar nessas utopias e continuar acreditando nelas?
É que as utopias são apenas começo, como diz Edgard Morin [antropólogo francês]. Elas são apenas começo, e nós vamos ter sempre começo. E, se vamos ter sempre começo, vamos ter sempre utopia. E que bom que vamos ter sempre jovens começando o novo, de novo.
O que muda para esses jovens em um eventual governo seu?
Mudar o modelo de desenvolvimento do predatório para o sustentável é algo que muda para eles e para todos, assim como a nossa luta em defesa da democracia mudava para nós, mas também mudava para todos. A juventude é maravilhosa por isso, porque ela tem uma coisa generosa - o que ela faz é par a ela, mas é também para todos. Somos um país que precisa apostar fortemente em educação. Somos um país que ainda tem 18% de seus jovens analfabetos, em que mais de 40% das crianças que entram no ensino fundamental não conseguem sequer completar a 8 a série. Então, a mudança é no sentido de como ter uma economia que gere as oportunidades para que as pessoas desenvolvam suas potencialidades. A melhor oportunidade que se pode dar é a educação, além das várias questões que são demandas dos nossos jovens, que estão sendo degradados pelas drogas, sem perspectiva de vida. Quando você vê uma pessoa que, sabendo que pode se transformar num viciado, mesmo assim usa o crack, tem algo que não pode ser atribuído apenas a uma crítica moral a essa pessoa. Tem um lado social que está acontecendo, e que a gente precisa olhar para isso. Isso é você ir para aquilo que Freud chama de escorregar direto para o princípio do prazer e perder a noção do princípio de realidade. E isso não se trata apenas com repressão. Isso se trata com várias ferramentas, porque é um problema multidimensional, e a resposta para isso é "todos nós ao mesmo tempo agora".
E qual é a posição da senhora em relação à maconha e sua possível legalização?
Uma coisa é a pesquisa, isso é ponto pacífico. Eu tenho uma posição contrária à legalização das drogas e acho que as pessoas sérias que fazem esse debate propondo o contrário do que eu penso não é por que são pessoas degradadas. É porque elas têm uma concepção de que isso v ai ajudar a combater o tráfico de drogas. Na base, o que elas querem é combater o tráfico de drogas e dar uma contribuição para o processo. Eu tenho uma percepção de que não v amos resolver o problema do tráfico de drogas com a legalização. Essa é a minha percepção, mas essa não é uma decisão que é tomada pelo Executivo, e sim pelo Legislativo, e acho que ela é muito complexa e ainda falta muito debate e informação sobre isso. Há uma convergência dos que são contrários, com eu, e os que são favoráveis, como é o caso do [senador Fernando] Gabeira e do [ex-presidente] Fernando Henrique e outros. A convergência qual é? É que é preciso debate e que falta informação. Eu defendo que se faça um plebiscito para que a sociedade possa debater o assunto.
É possível governar sem ter que se sentar a o lado de um político corrupto, por exemplo?
A melhor forma de governar é com democracia e transparência. A democracia, e não uma ditadura, ou regime autoritário, é a única forma de governar. E democracia no século 21 pressupõe o quê? Não é só o direito de eleger, de votar e ser votado. Não. É também o direito de uma sociedade - que cada vez mais é uma sociedade em rede - de controlar a g estão pública e os governantes. E aí a democracia pressupõe controle e participação da sociedade sobre as políticas públicas. P ara que a sociedade possa exercer esse controle, é preciso transparência e acesso à informação. A melhor forma de governar é essa. E, acho que, em relação à governabilidade,é fazer cada vez mais o esforço par a que os alinhamentos políticos se deem em cima de propostas, ideias e projetos. E essa construção é fácil? Claro que não é, mas é isso que a gente tem que perseguir e buscar. E acho que depois do sociólogo e do operário, seria perfeitamente possível - inspirados na figura do [Nelson] Mandela - o Lula e o Fernando Henrique darem uma contribuição para o Brasil. A gente não pode mais continuar refém do fisiologismo, do aparelhismo do Estado. Enfim, uma nova cultura política.
A senhora se apresentaria como essa ponte entre PT e PSDB, como esse elo d e ligação entre os partidos?
Olha, isso não é uma coisa que você possa dizer de si mesmo. Uma ponte com essas envergadura e estatura só se revela quando a sociedade constrói. E isso não é uma pessoa.
A senhora já teve alguns problemas sérios de saúde. Tem medo da morte?
Tenho medo da morte antes do tempo, porque, quando chega o tempo, a g ente v ai em paz. Sempre tive medo da morte antes do tempo. Lutei contra ela desde que nasci. Quase fui aos 1 4 anos. Com certeza não era tempo de morrer de hepatite aos 14, porque tomei remédio para a malária quando estava com hepatite. Depois, aos 19 anos, peguei hepatite de novo. Lutei contra a morte antes do tempo em 1986 quando, aos 27, peguei hepatite pela terceira vez. E lutei contra a morte antes do tempo quando as consequências de uma contaminação por metais pesados começaram a prejudicar sistemicamente a minha saúde. Então, isso é algo que todo mundo deve temer. Eu, graças a Deus, ainda continuo com medo [risos].
A senhora era católica e agora é evangélica. Por que a mudança?
Eu vou te fazer uma pergunta par a responder . Suponhamos que você se apaixone por uma moça e de repente, sem saber, sem querer, você se apaixona por outra. Por que mudou?
É o amor?
[risos] A conversão não é algo que a gente possa dizer assim: "Eu mudei porque..." A conversão não é política.
Para terminar, que tipo d e compromisso a senhora assume no combate à corrupção?
Para mim, a ética na política é uma condição que deveria ser a condição sine qua non de todas as pessoas. Você é jornalista, outro é médico, e eu sou político e ninguém diz: "Olha como eu sou ético!" Quando a gente começa a usar a ética como promoção política, é porque esse valor está ficando tão de teriorado que ele parece que já virou algo que eu posso escolher - entre ser ético e não ser ético. Eu sempre dig o que o bonito pode se gabar de ser bonito, o rico por ser rico, mas o ético e o jus to não podem se gabar por serem éticos e jus tos. Porque ele não tem alternativa. No momento em que ele admite que poderia não ser jus to, ele já desconstruiu a inteireza da justiça que há nele. Existem duas coisas que possibilitam isso: pessoas virtuosas e instituições virtuosas. As pessoas virtuosas criam as instituições virtuosas. E por que elas criam instituições? Porque ninguém pode depender da virtude das pessoas. Porque individualmente somos falhos. Socialmente também somos falhos. Mas o que nos aperfeiçoa é essa retroalimentação entre indivíduos e instituições. Quando o indivíduo "Marina" falha, tem que ter uma instituição para barrar e interditar as falhas da "Marina" que prejudicam a sociedade. N a corrupção é o Ministério Público, o Tribunal de Contas, a fiscalização que deveria ser feita pelo Congresso, pelos órgãos de controle. Quais são os elementos fundamentais? Transparência, controle social, acesso à informação. Contas públicas têm que ser públicas. Para mim, esta é a melhor ferramenta: instituições e pessoas. Mas as pessoas falham. Todos estão sujeitos a falhas. E, se a "Marina" falhar, tem que ter uma instituição pra corrigir. E, se as instituições falharem, têm que ter as pessoas corretas para corrigir, reelaborar, transformar e reformar as instituições.