Como duas empresas, uma paulista e outra norueguesa, estão explorando de maneira inconsequente o Corredor Ecológico que liga os parques nacionais da Serra da Capivara e da Serra das Confusões
Se combater o desmatamento e o trabalho escravo na imensidão do território brasileiro é uma tarefa hercúlea para os órgãos ambientais e trabalhistas, imagine quando essas irregularidades são financiadas e incentivadas com o poder do capital internacional. É a sede pela cobiçada Caatinga: da Amazônia à última fronteira agrícola no Cerrado, passando pelo mais pobre povoado do sertão nordestino, nossas matas nativas e a vitalidade dos trabalhadores são exploradas, na maioria dos casos, impunemente.
Raras são as exceções, mas elas existem. No sertão do Piauí, durante uma grande operação do Ministério Público do Trabalho (MPT-PI), com apoio do Núcleo de Operações Especiais da Polícia Rodoviária Federal (NOE), 18 trabalhadores em condições análogas às de escravidão foram encontrados na fazenda Bate-Bate, zona rural do município de Anísio de Abreu, distante 575 quilômetros da capital, Teresina. Trabalhavam de forma degradante em uma área selvagem, isolada, aparentemente longe do alcance das leis criadas em Brasília.
A madeira nativa da Caatinga era extraída para alimentar os fornos da mineradora paulista Galvani Indústria Comércio e Serviços S/A, que explora uma mina de fosfato na divisa entre a Bahia e o Piauí, zona rural do município de Campo Alegre de Lourdes, distante mais de 800 quilômetros de Salvador. A empresa tem sociedade com a multinacional norueguesa Yara, que possui 60% de suas ações – juntas, as duas companhias representam cerca de 20% da produção de fertilizantes fosfatados no Brasil. É mais um sinal da ligação entre grandes empresas e a destruição da natureza no sertão do estado, como mostrado na reportagem “A Devastação do Piauí”, publicada na edição 19 da Rolling Stone Brasil, em abril de 2008.
Na fazenda que fornecia madeira para a Galvani, 18 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão. Como no Brasil colonial, os homens eram obrigados a pagar até pelo material que utilizavam no desmate
Em pleno século 21 e diante das mudanças climáticas, utilizar matriz energética extraída de biomassa nativa é uma opção ambientalmente reprovável, que desrespeita a natureza e sua biodiversidade em favor do lucro inconsequente, comprometendo a imagem das duas indústrias. A jazida explorada pela Galvani fica ao lado da cidade de Guaribas, símbolo das desigualdades sociais do Brasil e do combalido programa Fome Zero, que terminou virando escândalo alimentado pela má gestão e desvio de verbas no início do governo Lula.
Do latim, Homo sapiens significa “homem sábio”, na perspectiva da Roma antiga. Na atualidade, no meio de uma floresta do semiárido, esse “sábio” pode ser sinônimo de vantagem, lucro imediato e interesse irracional. Levar adiante um desmatamento em uma propriedade com 11.941 hectares – o equivalente a 12 mil campos de futebol –, dentro do Corredor Ecológico que liga os parques nacionais da Serra da Capivara e da Serra das Confusões, duas das mais importantes reservas naturais brasileiras, não poderia ficar impune.
A fiscalização do ministério Público do Trabalho deixou evidente a participação da Galvani e da Yara nas irregularidades. Apesar de a retirada da mata estar sendo realizada por uma pequena empresa, a Agrosilvipastoril e Construtora Ltda., a madeira extraída do local era exclusivamente usada pela Galvani. O trabalho estava sendo feito com autorização da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semar), e a ideia era explorar, por 12 anos, 8.850 hectares por meio de um Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS). Mas de sustentável o projeto não tinha nada: no local, a força-tarefa do MPT comprovou que o regime trabalhista se assemelhava ao de escravos. Apesar de aprovado pelas autoridades ambientais, o PMFS não tinha sequer um estudo e nem ao menos o relatório de impacto ambiental, conhecido como EIA-Rima, obrigatório em qualquer empreendimento desse porte.
Para o pesquisador José Alves de Siqueira Filho, autor de A Flora das Caatingas do Rio São Francisco, ganhador do prêmio Jabuti de literatura e diretor do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas (Crad), a proliferação de planos de manejo sem entendimento científico na Caatinga, em que o único interesse é a retirada da madeira, não tem justificativa. “Todo o conhecimento que temos hoje sobre a Caatinga ainda é pífio para autorizar esse tipo de uso dos recursos naturais. Manejo florestal pressupõe conhecimento sobre a biodiversidade da região, fiscalização e restauração ecológica, principalmente em áreas do semiárido. Caso contrário, depois da retirada da mata tudo vira um deserto”, explica.
Segundo a coordenadora da Rede Ambiental do Piauí (Reapi), Tânia Martins, o prejuízo para o Brasil é imenso, pois além da perda de vegetação nativa e das condições degradantes de trabalho, as estradas da região estavam sendo danificadas pelo incessante trânsito de caminhões. “Fora os crimes ambientais, tínhamos recebido inúmeras denúncias de que, diariamente, dezenas de veículos transportavam madeira e minérios acima do peso permitido, comprometendo também a saúde dos moradores dos povoados locais, que convivem com a poeira e com os rejeitos minerais oriundos da produção industrial”, alerta.
A Reapi esclarece que, no Piauí, a empresa Galvani já tinha sido multada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por despejar esse tipo de resíduo nas estradas da região, causando doenças respiratórias na população do povoado Lagoinha, zona rural do município de Caracol. Ainda segundo a Reapi, dois outros projetos de desmatamento que se destinavam a fornecer madeira para a indústria paulista também já tinham sido embargados pelo órgão ambiental.
Na operação do ministério Público do Trabalho realizada na fazenda Bate-Bate, as irregularidades que cercavam a extração da madeira que alimenta os fornos da Galvani eram inúmeras. “Todos os 18 trabalhadores que encontramos no local estavam sem receber salários desde o início dos serviços, em abril, e a empresa não disponibilizava equipamentos de proteção individual, conhecidos como EPIs – obrigatórios pela legislação trabalhista”, dispara o procurador Carlos Henrique Pereira Leite, que coordenou a operação. “Além disso, não existia alojamento adequado e muitos dos recrutados dormiam na mata, ao relento, sem qualquer estrutura ou abrigo.”
Os funcionários da fazenda precisavam utilizar motos próprias em péssimo estado de conservação para se deslocar até as áreas de desmate e não tinham registro na carteira de trabalho. Recebiam alimentação e água com baixa qualidade e higiene, coletada de forma improvisada em um poço aberto no local. “Eles vestiam roupas desgastadas pelo uso contínuo, estavam claramente abatidos e desprotegidos de direitos e garantias”, declara Carlos Leite.
Para piorar, tinham descontadas da folha de pagamento as despesas de deslocamento, alimentação e até de materiais utilizados nos serviços, como combustível, óleo do motor e correntes de corte necessárias para operar motosserras. Isso foi comprovado com a apreensão de cadernetas que lembram métodos da colonial Casa-Grande, em que, ao final do mês, em vez de receber salários, os trabalhadores ficavam devendo ao dono da fazenda. A operação na Caatinga piauiense teve a colaboração operacional de agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a participação de fiscais da Procuradoria do Trabalho, entre eles o analista pericial em Engenharia de Segurança do Trabalho, Fernando Castro Garcia, e o técnico em Segurança Institucional de Transportes, Francisco Alexandre Borges.
Apesar de a jazida de fosfato operada pela Galvani estar localizada na Bahia, a empresa será multada pelo MPT-PI, pois era a única consumidora da madeira extraída do desmatamento na fazenda Bate-Bate. “A Galvani tem contrato com essas pequenas empresas instaladas no Piauí e total conhecimento de que ali as condições eram análogas às de trabalho escravo”, garante Leite. “Os fiscais da Galvani já tinham comprovado isso, algo que foi reconhecido pelos advogados da própria empresa durante audiência pública no último mês de julho.”
Carlos Leite decidiu que outras companhias que possam estar praticando desmatamentos na área e fornecendo madeira para a Galvani serão fiscalizadas, pois é possível que estejam mantendo os funcionários nas mesmas condições. O caso já foi comunicado à Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), que vai montar agora uma força-tarefa para investigar a mineradora em todo o território nacional. A empresa já responde a uma ação civil pública em trâmite na Vara do Trabalho em Barreiras, oeste da Bahia, mas que, segundo seus advogados, não guarda nenhuma relação com o caso do Piauí.
O processo atual está correndo na Procuradoria do Trabalho no município piauiense de Picos. Na primeira audiência, os proprietários da fazenda Bate-Bate foram ouvidos e multados em R$ 50 mil, além de se comprometerem a indenizar os trabalhadores e paralisar imediatamente a extração. O procurador afirma que a Galvani será responsabilizada pela conivência com as irregularidades trabalhistas e terá que pagar uma multa que, pelos cálculos iniciais do MPT, pode chegar a R$ 2 milhões. “Mesmo que o trabalho degradante aconteça na ponta da cadeia produtiva, quem está no topo deve responder compulsoriamente pelas irregularidades”, sentencia Carlos Leite. A ideia é propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que a empresa paulista se comprometa a investir esse valor como uma espécie de compensação referente aos danos morais, trabalhistas e ambientais e por todos os prejuízos coletivos causados na região, fazendo inclusive a restauração de áreas degradadas.
A área explorada fica a apenas 10 quilômetros dos limites do Parque Nacional da Serra das Confusões, que tem espécies da flora e fauna ameaçadas de extinção, entre elas a onça-pintada, o tatu-bola e o tamanduá-bandeira
Segundo registra a ata da audiência na Procuradoria do Trabalho, a gerente jurídica da Galvani, Maria Carolina de Lima Esteves, e a advogada Fábia Diogo Valente Pinto informaram que a empresa já rescindiu o contrato com a Agrosilvipastoril e suspendeu o contrato que mantinha com outro fornecedor da região (segundo a empresa, o contrato com a Agrosilvipastoril data de 1 de junho e foi rescindido no dia 30 de junho). No mesmo documento o gerente da unidade de mineração da empresa, Ricardo Guimarães Auzier, não soube informar a lista dos seus fornecedores de biomassa, mesmo confessando que compra madeira do Piauí há cerca de quatro anos, desde que assumiu o cargo na unidade baiana localizada no povoado Angico dos Dias.
Também ficou registrado que a Galvani tinha conhecimento e verificado in loco as irregularidades na fazenda Bate-Bate no momento da inspeção pré-contratual. Os próprios trabalhadores admitiram ao fiscal enviado pela empresa que não possuíam carteira de trabalho assinada, alojamento, transporte nem faziam alimentação no local. Auzier, no entanto, disse que a Galvani tinha dado um prazo para saneamento dessas irregularidades e “que possui um sistema de gestão baseado na qualificação, avaliação e desenvolvimento dos fornecedores, incluindo auditorias que costumam verificar o cumprimento dos quesitos referentes à saúde e à segurança do trabalho, além da observância das normas trabalhistas”. Por que, então, os homens que retiravam a madeira da Caatinga para os fornos da Galvani não foram tratados segundo essas premissas?
Essa não é a primeira vez que a Galvani é suspeita de incentivar, patrocinar ou ser conivente com irregularidades socioambientais praticadas na região Sudeste do Piauí. Nos últimos anos, a empresa vem sendo apontada por movimentos sociais como financiadora de um verdadeiro extermínio florestal nas matas nativas e em fazendas da região, em especial nas grandes plantações de caju e nas matas de algaroba (Prosopis juliflora). Aproveitando uma brecha da lei, a empresa consumiu uma enorme quantidade de madeira dessa espécie (a algaroba, cultivada amplamente no Nordeste, não é protegida pela legislação brasileira por ser uma árvore exótica, oriunda do deserto de Piúra, no Peru). Há relatos de que o transporte da madeira nativa pode ficar encoberto pela algaroba, o que facilita a passagem pela fiscalização . Em resposta à reportagem, a empresa diz que o uso de biomassa é permitido por lei, e que, na unidade baiana, “a biomassa se mostrou a opção adequada neste momento por ter o balanço da emissão de CO2 nulo e ser menos poluente que os combustíveis fósseis”. A Galvani também garante que seus fornecedores têm em dia todas as licenças necessárias para atuação no Piauí. O que leva a outro questionamento: por que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Piauí permite que Projetos sem EIA-RIMA sejam realizados?
Anos atrás, lideranças sindicais, trabalhadores rurais, líderes comunitários e vereadores contrários aos desmatamentos fizeram manifestações públicas nas cidades da região, denunciando que grande parte das áreas desmatadas nos municípios de Fartura do Piauí, Várzea Branca, Caracol, São Braz, Anísio de Abreu, Jurema, Bonfim e Guaribas, além de outras no território baiano, parecem ter as digitais da indústria paulista, que se tornou uma voraz consumidora de madeira nativa extraída das matas da Caatinga.
Um dos momentos dessa resistência às novas atividades econômicas que querem se implantar no semiárido do Piauí foi o protesto Grito do Semiárido, que no final de 2014 reuniu mais de 2 mil pessoas na cidade de São Raimundo Nonato (525 quilômetros de Teresina). O movimento foi coordenado por entidades ligadas à Igreja Católica, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Cáritas, Sindicato de Trabalhadores Rurais, Associações de Pequenos Produtores Rurais, Movimento de Mulheres e estudantes. “A reação foi porque a mineração é uma alternativa que está sendo pensada e discutida para o semiárido do Piauí e isso traz consequências para as políticas públicas que estão sendo desenvolvidas nesse mesmo território”, diz o coordenador da CPT no Piauí, Antônio Euzébio de Sousa. “Projetos de mineração irão obrigar as famílias a saírem de suas áreas e, em consequência, as políticas públicas não virão.” Ele reitera que a mineração, a derrubada da mata e a produção de carvão geram fortes impactos ambientais, fazendo com que as famílias precisem sair de suas comunidades e se estabelecer na periferia das cidades.
O promotor regional ambiental Vando da Silva Marques afirma que após o Grito do Semiárido foi elaborado um relatório sobre as atividades de mineração e desmatamentos na região e que a Promotoria Ambiental está analisando os casos. “Estamos instaurando inquéritos para investigar as supostas irregularidades até para conseguir intermediar essas ações com os interesses das comunidades locais e tomar as medidas cabíveis”, declara.
Para a Galvani, a suspeita de financiar o desmatamento na fazenda Bate-Bate é ainda mais grave em função de a região fazer parte do Corredor Ecológico Capivara-Confusões, uma importante reserva que liga os parques nacionais Serra da Capivara e Serra das Confusões, guardiãs do que restou da Caatinga selvagem no país (inclusive, a Serra da Capivara, que detém o maior número de sítios arqueológicos das Américas, foi lembrada na cerimônia de encerramento das Olimpíadas no Rio de Janeiro). A área do desmate flagrada na operação do Ministério Público do Trabalho fica a menos de 10 quilômetros dos limites do Parque Nacional da Serra das Confusões, que tem espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção, entre elas a onça-pintada, o tatu-bola e o tamanduá- -bandeira. São animais que praticamente só restaram em áreas protegidas e que são muito perseguidos pelos caçadores.
Segundo os agentes federais que participaram da ação na fazenda Bate-Bate, alguns trabalhadores admitiram que comiam animais silvestres capturados eventualmente durante a derrubada da mata, como tatus, cutias, zabelês e jacus. “Configurar um flagrante nesses casos é bem complicado, pois os trabalhadores são orientados a manter muita discrição e nunca permitir que um animal silvestre morto seja encontrado pela fiscalização. Esse tipo de atividade poderia embargar o projeto, então é um crime dissimulado, escondido”, diz o assessor do Núcleo de Comunicação Social da PRF-PI (NUCOM), Fabricio Loiola. “Como a fazenda se encontra em uma grande chapada, com terras a perder de vista, é complicado saber onde estão os limites da propriedade e, com isso, desenvolver ações preventivas.” Na última semana de agosto, por meio de uma denúncia anônima, guardas-parque da Serra da Capivara flagraram no restaurante Recanto dos Pássaros, na cidade de São Raimundo Nonato, dois empresários e um médico se preparando para consumir um tatu que pode ter sido capturado no Corredor Ecológico, já que um dos acusados é o proprietário de máquinas e caminhões que trabalhavam na fazenda Bate-Bate. No entanto, quem assinou o Auto de Infração Ambiental foi uma quarta pessoa, eximindo o representante da Bate-Bate de envolvimento com o episódio. “Nunca arriscaríamos nosso Projeto por uma ou outra caça”, declarou Álvaro Galvão, responsável pela fazenda.
"Todo o conhecimento que temos hoje sobre a Caatinga ainda é pífio. Manejo florestal pressupõe conhecimento, caso contrário depois da retirada da mata tudo vira um deserto", explica o pesquisador José Alves de Siqueira Filho
A própria questão fundiária é controversa na região. A Agrosilvipastoril, responsável pela fazenda Bate-Bate, tentou apoio do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) para implantar o projeto de extração de madeira, mas a instituição bancária aparentemente suspendeu o processo de um financiamento exatamente pela não comprovação dos títulos de propriedade das terras. Como faz parte do corredor ecológico, existe grande possibilidade de estar localizada em terras devolutas do estado do Piauí. O jornal Diário do Povo, de Teresina, publicou que “a fazenda faz parte de uma gleba que está em processo de litígio familiar, herança de família ainda não definida ou reconhecida pela Justiça”.
Em nota de esclarecimento enviada para a imprensa, a Agrosilvipastoril rebate o flagrante do Ministério Público do Trabalho e todas as acusações de maneira insípida e protocolar. “Nossa empresa se pauta pelo respeito ao meio ambiente, às questões sociais, tendo junto aos órgãos responsáveis todos os procedimentos legalizados e averbados.” Em outro documento anexado ao processo, os responsáveis pela Bate-Bate contestam a ação trabalhista afirmando que no momento da fiscalização grande parte dos trabalhadores encontrados no local não eram funcionários da empresa, e que coincidentemente estavam ali em busca de emprego. No fechamento desta reportagem, os representantes disseram que qualquer irregularidade constatada será revista e que em breve irão colocar em prática um plano de integração social que prevê melhorias para as comunidades no entorno da área de onde a madeira é retirada, qualificação de mão de obra e até a construção de um viveiro de mudas para recuperação de regiões degradadas.
A Procuradoria do Trabalho determinou a suspensão imediata das atividades na fazenda até que os trabalhadores sejam regularizados com a comprovação do pagamento de todas as verbas devidas, indenizações e multas. Com isso, a Rede Ambiental do Piauí acionou o Ministério Público Federal (MPF), solicitando uma investigação sobre as supostas irregularidades na atuação da empresa e das indústrias no Piauí. Segundo o procurador imda República Tranvanvan Feitosa, toda a documentação referente ao empreendimento foi solicitada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente para análise. Além disso, o procurador determinou uma fiscalização federal e estadual na fazenda. Feitosa é conhecido por analisar as questões que envolvem o meio ambiente com rigor e já foi protagonista de importantes decisões que penalizaram projetos que descumpriam a legislação ambiental no Piauí.
Nas últimas semanas de agosto, para cumprir a determinação do MPF, uma equipe do ICMBIO sediada no Parque Nacional da Serra da Capivara fez uma vistoria na fazenda Bate Bate. Segundo a analista ambiental Melina Rangel, que coordenou a fiscalização, na análise superficial do desmate ficou claro que a empresa não tinha conhecimento das regras que precisam ser seguidas em um Plano de Manejo Florestal Sustentável. Irregularidades como derrubada de árvores jovens ou porta-sementes foram comprovadas na área. O relatório agora deve ser encaminhado para o parecer do procurador da república Tranvanvan Feitosa.
Fora a questão ambiental, a Agrosilvipastoril pode ter sua licença cassada caso fiquem comprovadas as irregularidades trabalhistas. “Um Plano de Manejo Florestal Sustentável exige que todas as áreas estejam devidamente regularizadas e a questão trabalhista está incluída. É claro que se as denúncias forem comunicadas oficialmente à Secretaria Estadual do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Piauí, faremos o cancelamento da emissão do Documento de Origem Florestal (DOF), que permite a retirada e o transporte da madeira”, afirma o superintendente Carlos Moura Fé, que ironicamente é o responsável pela aprovação de dezenas de PMFS dentro da Secretaria.
O caso também repercutiu no Congresso Nacional. Na tribuna da Câmara, o deputado federal José Francisco Paes Landim (PTB-PI) contestou as decisões da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Piauí, que tem aprovado projetos de desmatamento em uma área tão frágil, cercada por dois parques nacionais: “Fica aqui o questionamento: estamos autorizando a supressão da vegetação nativa da Caatinga, nosso maior patrimônio natural, sem nenhuma vantagem para o povo do Piauí, já que a empresa Galvani tem sede na Bahia e todos os impostos oriundos de suas atividades minerais são recolhidos no estado vizinho, deixando em nosso território apenas a terra devastada e as consequências futuras com secas ainda mais graves e o empobrecimento da população”.
Em seu site oficial, a mineradora Galvani explica que teve origem na década de 1930 como uma indústria de bebidas e uma empresa de transportes, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Entre as décadas de 1960 e 1970, especializou-se no transporte e no manuseio de fertilizantes. Somente em 1983 iniciou em Paulínia a implantação de um dos maiores complexos industriais de produção de fertilizantes do Brasil, envolvendo a fabricação de ácido sulfúrico, superfosfato, granulação, mistura e ensaque.
Em 1992, instalou-se em Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia, com uma fábrica de fertilizantes líquidos. Em seguida, vieram a primeira fábrica de superfosfato da Bahia, uma planta de granulação e a segunda unidade de sulfúrico do estado, além da única indústria de fertilizantes da região. Atualmente a empresa realiza atividades de mineração, beneficiamento, industrialização e distribuição de fertilizantes fosfatados, com unidades em São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso e Ceará, empregando cerca de 1.800 pessoas, entre trabalhadores próprios e terceirizados. O faturamento anual é de aproximadamente R$ 720 milhões de reais. Em dezembro de 2014, formou uma joint venture (união de duas ou mais empresas já existentes com o objetivo de iniciar ou realizar uma atividade econômica comum) com a europeia Yara, que passou a ter 60% das ações da empresa. Curiosamente, a Galvani divulga ter entre seus compromissos prioritários a busca de soluções para reduzir os impactos ambientais gerados pelo
seu processo de produção de fertilizantes.
Contrariando essas diretrizes, na ata da audiência entre a empresa e o Ministério Público do Trabalho, ficou comprovado que o combustível empregado na etapa de secagem do minério fosfato é a biomassa oriunda de florestas nativas, já que a empresa não tem propriedades na área com produção de madeira exótica como pinos, eucalipto ou outras espécies para consumo próprio.
Não é preciso ser um ambientalista fervoroso para enxergar que, se abrissem mão de parte do lucro na cadeia de produção, as indústrias poderiam substituir o uso de madeira nativa por florestas cultivadas ou outras opções ambientalmente mais controladas. Quando decidem alimentar seus fornos comprando madeira com procedência duvidosa, oriunda em alguns casos da exploração degradante do trabalho humano, empresas como a Galvani e a Yara causam consequências sérias – e muitas vezes sem volta – ao território brasileiro.
Passagem para a Vida Silvestre
Corredor Ecológico ligando a Serra da Capivara e a Serra das Confusões, no Piauí, não cumpre a promessa de proteger a região
O Corredor Ecológico Capivara-Confusões foi criado pela ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva em março de 2005. São 412 mil hectares unindo as porções de Caatinga que ligam os parques nacionais da Serra da Capivara (Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco, com 130 mil hectares) e da Serra das Confusões (a maior reserva de Caatinga do planeta, com 825 mil hectares). O Corredor Ecológico equivale a mais de 400 mil campos de futebol e deveria ser uma espécie de “estrada verde” entre as duas unidades de conservação, ajudando a recuperar e preservar o ambiente natural da região e facilitando a dispersão de vegetais e a circulação de animais de diferentes espécies. A área engloba terras dos municípios piauienses de Caracol, Jurema, Guaribas, Anísio de Abreu, Bonfim, São Raimundo Nonato, São Braz, Tamboril, Canto do Buriti e Brejo do Piauí.
A ideia de garantir a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais do lugar parece ter ficado apenas no papel. Cercado por dezenas de assentamentos de semterra e abandonado pelas autoridades ambientais, o Corredor se transformou em uma espécie de Disneylândia para caçadores e empresas que realizam desmatamentos ilegais. Sem nenhum tipo de fiscalização, a impunidade reina na área. O governo do Piauí tentou ajudar na preservação, criando, em 2008, a Estação Ecológica da Chapada da Serra Branca, uma reserva estadual com 24 mil hectares, mas infelizmente o projeto não andou. Se estivesse sendo preservada, toda a região, que soma mais de 1 milhão de hectares de Caatinga, poderia ser tombada pela Unesco como Patrimônio Natural e Cultural da Humanidade.
O duplo título que poucos lugares do mundo ostentam poderia ajudar a retirar um pedaço do Piauí dos mapas dos piores indicadores sociais do Brasil.
Com o Poder do Euro
Empresa norueguesa Yara, com mais de 60% das ações da Galvani, é conivente com as atividades da companhia brasileira
A Noruega tem histórico de ações focadas em sustentabilidade e em defesa da natureza. No Brasil, por exemplo, a nação é a mantenedora do Fundo Amazônia, que destina milhões de euros para a conservação da floresta. A empresa Yara foi fundada no país em 1905 para, segundo seus criadores, solucionar o então crescente problema da fome na Europa. Hoje é uma multinacional com presença em vários continentes e vendas para 150 países. No Brasil desde 1977, tem escritórios em Porto Alegre e em São Paulo. Diz usar seu know-how de companhia global para oferecer “soluções para a agricultura sustentável e para o meio ambiente, adotando em todas as suas unidades no mundo os padrões mais exigentes de ética e conformidade”.
Para atender o segmento agrícola no Brasil, a empresa conta com três unidades de produção, granulação e ensaque de fertilizantes e 25 unidades industriais, com presença nos principais portos e polos de produção agrícola. Aparentemente, o código de conduta da Yara fica apenas na retórica. A empresa afirma que “ética e conformidade são inegociáveis e nunca permitimos que sejam comprometidos”. E ainda desafia: “Nunca os comprometemos. Mas, afinal, por que a Yara adota essa política de tolerância zero? Porque entendemos que o sucesso só pode ser comemorado quando obtido da forma correta”. No papel, soa lindo– infelizmente, as palavras ditadas pela empresa não estão valendo para a Caatinga piauiense.